DEBATE: MAIORIDADE PENAL

PROIBIDO PARA MENORES

Entrevista com: Peter Messitte *

Mônica Manir


Juiz americano diz que a tendência é aumentar, não diminuir, a maioridade penal à medida que sabemos mais do desenvolvimento do adolescente
PETER MESSITE - juiz federal norte-americano
Foi um menor de idade? Ficou automático perguntar, antes mesmo do fim da perícia (quando há), se o autor de um crime tem mais ou menos que 18 anos. A sociedade brasileira está extremamente sensível ao tema e, na cruzada para endurecer, arrefecer ou manter a coisa como está, um recurso é olhar o direito penal do vizinho "civilizado". Ver quando e como punem seus jovens infratores. Pegar exemplos. Fazer um control C e aplicar um control V em algo que parece sem controle.

Especialista em direito comparado, o juiz federal americano Peter Messitte diz que a maioridade penal é uma preocupação de praticamente todos os países. Mas consenso é o que não há. Nos próprios Estados Unidos, cada Estado estabelece seu limite e a Suprema Corte, até agora, só conseguiu unificar a proibição da pena de morte para os menores de 18. Milhares deles, no entanto, estão condenados à prisão perpétua, sem direito a condicional. Saíram permanentemente do convívio da sociedade. Lá estão, lá ficarão. Ainda assim o sistema gera críticas pela falta de políticas educacionais dentro desses presídios. "Por que desistir do ser humano?", questiona o juiz, que conhece o Brasil de outros tribunais, quando voluntário de 1966 a 1968 do Corpo de Paz em São Paulo, e mais recentemente como diretor do Programa para Assuntos Jurídicos Brasil-EUA, em Washington, em que americanos e brasileiros trocam informações sobre sua Justiça lá e aqui.

É a maior sensibilidade mundial aos direitos humanos, aliada à percepção de que o desenvolvimento físico e intelectual do adolescente tem suas peculiaridades, que levam Peter Messitte a apostar na ampliação da maioridade penal. E a acreditar nas atividades preventivas, como maior acesso dos jovens à educação, à saúde, ao lazer, à cultura. Não pra ontem nem pra agora. Coisa pro futuro. Enquanto isso, o debate deveria prosseguir, "sob ou não o calor da hora".

Cabem comparações sobre a maioridade penal entre os países, considerando que cada um tem sua cultura jurídica e social?
Peter Messitte: Essa questão é universal. Até certa medida, todo o mundo está preocupado com a idade a partir da qual uma pessoa pode ser considerada responsável criminalmente por seus atos. Eu diria que é provavelmente impossível para um país condenar como adulto uma criança de 5 anos. Há diferenças evidentes entre uma fase e outra. O desafio estaria em definir isso na faixa dos 16, 18 anos. Nos EUA, há que se levar em conta que cada um dos 50 Estados tem competência sobre a maioridade penal. É uma determinação em nível estadual. No federal, existem questões semelhantes, mas não tão extensivas. Em convenções internacionais, inclusive das Nações Unidas, a idade mínima para a culpabilidade também vem sendo discutida.

Qual seria, para o senhor, esse limite de idade para a culpabilidade?
Peter Messitte: Eu me pergunto, na verdade, se deveríamos fixar automaticamente uma idade para determinar o desfecho ou deixar aberta a questão e fazer isso com certa flexibilidade, dependendo da maturidade emocional e intelectual do indivíduo que cometeu o crime. Na mesma linha, penso que deveríamos avaliar quando levar esse indivíduo a um tribunal especial ou quando submetê-lo a um tribunal para adultos. E qual deveria ser a pena. Essa é uma diferença importante entre os EUA e o Brasil: vocês têm um limite de até 30 anos para qualquer crime. Aqui não.

Há muitos Estados americanos que aplicam a prisão perpétua para adolescentes?
Peter Messitte: Falando antes de pena capital, faz poucos anos que a Suprema Corte determinou que a pena de morte abaixo dos 18 anos é inconstitucional. Foi no caso Roper versus Simmons, em 2005. Até aquele ponto, mais de 20 Estados incluíam a pena de morte para crianças e adolescentes no seu sistema penal. Já quanto à prisão perpétua, uma minoria de Estados a aplica. O debate mais recente é nesse sentido: se deve continuar existindo no país prisão perpétua, sem possibilidade de condicional, para adolescentes. Ele estaria influenciado pela Oitava Emenda da Constituição, que proíbe penas inúteis e cruéis. Em 2010, no caso Graham versus Florida, o Supremo se embasou nessa emenda para proibir a prisão perpétua sem condicional para jovens não homicidas. Naquela época, 37 dos 50 Estados seguiram a recomendação. Mas note que o Supremo deixou de fora os homicídios. Ohio, por exemplo, condenou recentemente à prisão perpétua sem condicional o jovem Thomas "T. J." Lane. Ele tinha 17 anos quando matou três estudantes.

Pesquisa sobre a vida dos jovens em prisão perpétua nos EUA - The Lives Of Juvenille Lifers, feita pelo The Sentencing Project, mostra que a maioria dos condenados é negra, pobre e sofreu abusos físicos e sexuais quando criança. Programas educacionais e políticas de trabalho para esses jovens são limitados porque eles não conseguiriam voltar à sociedade. O senhor conhece essa pesquisa? Poderia comentar os resultados?
Peter Messitte: Sim, eu conheço esse estudo e não me surpreende o perfil desses jovens delinquentes. Provavelmente não é diferente do perfil da maioria dos adultos infratores. Alguns podem concluir que isso é fruto do racismo, o que pode ser verdade em alguns casos. Mas falta uma pesquisa nacional a respeito. Quanto a não oferecer educação ou treinamento profissional a esses jovens, isso realmente nos ofende. Por que desistir do ser humano? Mas isso não é necessariamente cínico. Pode ser uma visão realista. Os recursos públicos são limitados. Pensando na segurança da sociedade em primeiro lugar, muito do dinheiro vai para a construção de presídios e contratação de guardas. Mesmo pensando nos presos, é necessário cuidar de sua alimentação, de seu espaço físico e da segurança no presídio. Depois, presumivelmente, viria a educação - uma boa coisa, com certeza. Mas a fila para os recursos é muito longa e ela fica para trás.
Existem equipes multidisciplinares nos EUA que podem avaliar os jovens antes do aprisionamento?
Peter Messitte: Sim, isso se faz com psiquiatras, psicólogos, médicos que avaliam a dependência de drogas, por exemplo. Todos os Estados aqui, como no Brasil, têm varas especializadas para tratar de jovens até os 17 anos e 364 dias de vida. Temos que cuidar deles, nos esforçar para lhes dar educação, tratar da saúde, aumentar-lhes a autoestima, cuidar de doenças mentais, e ao mesmo tempo precisamos pensar em segurança pública, porque alguns representam ameaças à sociedade.

No Brasil, os presídios são vistos como escolas do crime. Qual a imagem deles nos Estados Unidos?
Peter Messitte: Jovens com menos de 18 anos ou estão em reformatórios (usando uma expressão do passado) ou estão em alas separadas dos adultos. No entanto, mesmo entre os jovens, um mais experiente influencia o outro. E há problemas de estupro dentro de presídios em geral, drogas, corrupção. Houve inclusive um escândalo no mês passado aqui, no Estado de Maryland, que chocou a população. Descobriram um esquema de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro dentro de uma prisão em Baltimore que era pilotado por uma gangue e contava com a participação de guardas. Quatro das guardas femininas, aliás, estavam grávidas de um dos líderes. É como digo: sempre haverá pessoas manipulando o sistema penal e sempre haverá indignação quanto a isso. Temos que ser mais efetivos. Não pode ser uma coisa cosmética.

No Brasil, a reincidência em unidades de internação para adolescentes (13%) é bem menor do que em presídios (mais de 60%). Como é, nos Estados Unidos, a questão da reincidência de adolescentes?
Peter Messitte: O Departamento de Justiça tem dito que, nos últimos 30 anos, reduziu-se em quase 25% o número de condenações de jovens com menos de 18 anos em crimes como homicídio. Me parece que há mais crimes cometidos por jovens do que antes, mas não vou contrariar as estatísticas.

Essa sensação poderia vir da exposição sensacionalista dos casos?
Peter Messitte: Não é fácil determinar exatamente a taxa de crimes cometidos por jovens e a reincidência. Há muitas variantes entre os Estados. Mas é claro que o sensacionalismo às vezes prejudica a racionalidade. Talvez a mídia pudesse zelar pela calma no meio do transtorno. É importante entender a natureza de determinado caso, de não apresentar reação inapropriada, porque essas questões sempre estão presentes.

Nesse sentido, em que medida se deve legislar sob a influência da revolta provocada por um crime bárbaro?
Peter Messitte: Não vejo problema com relação a isso porque o povo está sempre avaliando vários aspectos de sua vida, se tem emprego, se pode alimentar a família, se tem segurança. Um escândalo ou um crime bárbaro levantam novamente a questão e o debate continua. E às vezes, dependendo da gravidade do problema, haverá mudanças. Tivemos aqui massacres como o de Newtown. Veja a proposta feita pelo presidente Obama de se verificar os antecedentes do comprador das armas. Era uma iniciativa que tinha mais de 90% de apoio da população, mas não passou no Congresso, não passou no Senado. Contudo, o horror do massacre pelo menos trouxe à tona, mais uma vez, com muita força, a necessidade de enfrentar a questão do controle de armas. Assim como o fará o caso desse menino de 5 anos que matou a irmã com um rifle feito especialmente para crianças. Como ele pode diferenciar a realidade de um videogame da de um assassinato?

Para onde o senhor acha que caminha o debate sobre a maioridade penal?
Peter Messitte: Eu poderia dizer que ele corre mais na direção de aumentar a idade de responsabilidade da maioridade penal. Por quê? Porque estamos entendendo melhor o aspecto físico da falta de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Nos EUA, criamos a primeira vara de infância, se não me engano, em 1899, e veja o que temos hoje. Veja o que vocês têm no Brasil. Há uma série de estudos, descobertas científicas. Se haverá mudanças no futuro - e não posso dizer o prazo -, será na direção de minimizar a culpabilidade da criança e do adolescente e, mais importante, concentrar forças nas atividades preventivas. É lamentável a falta de dinheiro nesse sentido, o que nos limita. Mas também somos mais sensíveis hoje aos direitos humanos do que éramos 50 anos atrás. É realmente a direção da vida. É um fato.

* PETER MESSITTE É JUIZ FEDERAL, PROFESSOR DE DIREITO COMPARADO E DIRETOR DO PROGRAMA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS BRASIL-EUA.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 5 de maio de 2013 - Pg. E2 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,proibido-para-menores,1028472,0.htm
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A IDADE DE CADA UM


Christian Ingo Lenz Dunker *


Muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto: em cada caso se decide a maioridade ou minoridade penal
DR. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER

Primitivamente, o tema da minoridade não é educativo, psicológico ou jurídico, mas filosófico. No século 18, Kant veio a definir a maioridade como uso livre da razão no espaço público introduzindo o conceito de autonomia, em oposição à minoridade da infância, na qual somos tutelados pela família e pelo Estado. Desde então, autonomia associa-se a um percurso de individuação, envolvendo competências morais, discursivas e cognitivas convergentes com o processo de incorporação da lei. Geralmente entendemos que esse processo se conclui quando o sujeito é capaz de seguir a lei porque ela adquiriu um sentido impessoal e necessário, não porque estamos coagidos pelo medo ou pelo desejo, orientados por inclinações ou interesses, movidos por exemplos e normas, mas porque livremente escolhemos nos submeter a lei. Daí que autonomia carregue consigo o sentido da autoridade, como se fôssemos todos autores da lei. Essa é a teoria moral do dever, que encontrou seu correlato psicológico em Piaget e Kohlberg e seu equivalente sociológico em Habermas e Rawls. Ser autônomo é ser capaz de se reconhecer nas leis que nos governam e se fazer reconhecer perante elas, inclusive de modo a aplicar, questionar ou transgredi-las. A psicanálise acrescentou um importante adendo a essa concepção ao notar que nossa relação com a lei é homóloga à relação que temos com o desejo.

Postular a redução da maioridade penal deveria basear-se em uma concepção de responsabilidade e autonomia. Essa depende de como, para um determinado sujeito, combinam-se suas condições para agir, saber e posicionar-se diante do prazer. Contudo, o litoral entre saber e gozo é um mar revolto durante a adolescência. Em uma semana o sujeito dá mostras do mais elevado pensamento lógico formal e reflexivo, para na situação seguinte agir por princípios de flagrante heteronomia irreflexiva ou mera impulsividade. A capacidade de contrapor casos e regras, definir exceções e generalizações, criar e negociar a lei pela qual os laços com o outro se organizam, dão forma ao saber que chamamos de responsabilidade. A terrível travessia adolescente é ainda mais perigosa porque, além de princípios, o sujeito é convocado a dar provas de maioridade, ou seja, a produzir atos.

Atos de reconhecimento e bravura, testes de desafio e incerteza, obediência e fé em um líder humano, inumano ou extra-humano ao qual supomos autoridade fazem parte da lógica do acesso à maioridade. O domínio do corpo, das emoções e dos prazeres, de seus usos e abusos, compõe o terceiro ângulo de verificação da responsabilidade. A antiga noção de caráter nada mais era do que essa amálgama entre experiências corporais, geralmente decorrentes do mundo do trabalho, experiências de saber, criadas pelos dispositivos de educação moral e as experiências de teste, prova ou qualificação, chamadas pelos antropólogos de rituais de passagem.

A forma como a lei de seu desejo se articula narrativa e discursivamente com o Outro social deveria definir o regime de retribuição, reparação ou de equilíbrio a que ele deve se submeter. É por isso que muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto, no qual em cada caso decide-se a maioridade ou minoridade penal do infrator. No Brasil, curiosamente, essa ideia não pegou. Talvez porque isso incremente imaginariamente a excepcionalidade do infrator que instrumentaliza sua condição de menor para praticar crimes.

Nos países que adotam uma estratégia mais gradualista para a decisão de imputabilidade, essa depende de uma junta formada por instâncias jurídicas, educativas, médicas e psicológicas. Distribuem-se assim as determinações pelas quais a posição de autoridade se exerce na formação do caso social, antes da partição entre caso jurídico ou caso educacional. O que o sujeito diz sobre o que ele fez, o modo como ele se coloca diante de seu ato, define a diferença de seu destino penal ou educativo e indica o tipo de tratamento médico ou psicológico que ele receberá.

Responder pelos atos é uma função de linguagem, que presume a existência de perguntas. Responder não é só pagar, mas também assumir e impor consequências. Pensar que a redução da maioridade penal exercerá um efeito de medo suficiente para criar a autoridade que falta para impedir crimes é apenas mais um exemplo da menoridade de nosso pensamento penal.

* CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER É PSICANALISTA, PROFESSOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP E AUTOR DE ESTRUTURA E CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA (ANNABLUME).

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 5 de maio de 2013 - Pg. E3 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-idade-de-cada-um,1028469,0.htm
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DIREITOS DE TODOS OS HUMANOS


José de Souza Martins *


Aqui, a tendência é ver o criminoso como vítima, resquício de um imaginário criado durante a ditadura. Falta estender essa abordagem a toda a sociedade
JOSÉ DE SOUZA MARTINS - sociólogo
A manifestação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em entrevista ao Estado de S. Paulo, contrária à redução da maioridade penal, apenas indica que o governo brasileiro não tem resposta para a crescente e disseminada violência que aterroriza o País. É compreensível, na retórica jurídica do professor de direito de uma universidade católica, a afirmação de valores da civilização contra o clamor repressivo dos que têm medo. Mas a entrevista não o é quando indica que a política do governo, de que ele é membro, se limita a resistir à alteração penal que muitos pretendem. O ministro teme que reduzir a maioridade penal e ampliar o tempo de permanência na cadeia de jovens assassinos os torne criminosos porque a cadeia é uma escola de crime. Mas, eles já são criminosos de crimes violentos! O que mais podem aprender os autores de crimes recentes que se situam no âmbito da pura barbárie? O que não quer dizer que a extensão da pena para os criminosos violentos que sejam menores de idade vá resolver o problema grave das causas da criminalidade juvenil.

Vários dos autores de crimes hediondos, do noticiário recente e remoto, são indivíduos, menores aí incluídos, que não frequentaram a escola de crimes que a cadeia seria. Os crimes foram aprendidos e maquinados fora da prisão, em casa, na vizinhança, nas ruas. Os que querem a redução da maioridade penal querem mais tempo de cadeia para autores de crimes medonhos, crimes inexplicáveis, como o assassinato da dentista de São Bernardo do Campo, queimada viva. Ou, nos mesmos dias, a pouco noticiada violência sofrida por uma idosa e sua filha, na roça no interior da Bahia, com estupro e assassinato de uma delas, com um tiro, depois de lhe terem enfiado uma escopeta na vagina. Ou o caso do assassinato dos jovens Liana Friedenbach e Felipe Caffé, torturados (ela estuprada) e assassinados bárbara e cruelmente na zona rural de Embu Guaçu, há dez anos, por um grupo de que fazia parte um menor de idade.

A retórica jurídica pode convencer na sala de aula, mas não convence nem tranquiliza quem vive cotidianamente situações de risco na rua e até em casa. Ao c0ntrário, só aumenta a certeza de que o Estado brasileiro não sabe o que fazer. Nosso liberalismo livresco não gerou convicções nem se enraizou na cultura popular. Liberdade, aqui, acaba sendo entendida como permissividade na concepção de que tudo é lícito desde que se escape. Aqui, a liberdade não é propriamente um direito dos cidadãos, mas um álibi dos espertos. A liberdade ingenuamente concebida apenas cria inimigos da liberdade, na disseminação da convicção de que o direito é um instrumento do crime. O mesmo vale para os chamados direitos humanos, justos, porém mal justificados e pior compreendidos. A liberdade é, sem dúvida, um direito e um bem, que, no entanto, se nutre e justifica pelo recíproco reconhecimento da liberdade e da vida alheias como um direito e um bem do outro. É um bem social e não apenas individual. A liberdade e os direitos humanos são aquisições cotidianas, pelas quais se paga reconhecendo os direitos humanos do outro. Os inadimplentes ficam em débito com a sociedade, cabendo à Justiça cobrar a dívida em nome do credor, que é a sociedade desarmada.

O sistema judicial liberalizante e benevolente, na cultura do medo, em vez de assegurar justiça estimula a iniquidade do justiçamento popular. A sociedade retoma pela violência o direito originário a justiça quando as instituições falham no desempenho do que é mera representação e condicional delegação de responsabilidades. O Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. Temos de quatro a cinco linchamentos e tentativas de linchamento por semana, nas várias regiões do País. Linchamento é também barbárie e, no fundo, expressão da mesma cultura dos crimes que os linchadores querem vingar. Pesquiso essa modalidade de violência coletiva há anos. Ela é sempre manifestação de descrença na Justiça. Reveste-se, na maioria dos casos, da mesma crueldade que caracteriza os crimes que por meio dela a sociedade da rua pretende punir. Nos casos extremos, o linchamento, além da mutilação de sua vítima, culmina com sua queima ainda viva. A matriz da cultura do crime é a mesma da punição do crime. Ou seja, estamos em face de um problema estrutural da sociedade, um "defeito" de funcionamento, que sob diferentes formas de manifestação, se apresenta como expressão dos "maus" e também dos "bons".

Em outros países, tem cabido geralmente às universidades a realização de pesquisas sociológicas e antropológicas sobre fatores e causas superficiais e profundas da criminalidade e sobre os meios sociais a serem mobilizados para combatê-la. Aqui, a tendência é estudar o criminoso como vítima, como titular de direito, resquício de um imaginário criado durante a ditadura militar. Falta estudar mais amplamente a sociedade como vítima, titular de cidadania e também credora de direitos sociais e dos direitos humanos, sobretudo o direito à vida.

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A SOCIEDADE VISTA DO ABISMO (VOZES).

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 5 de maio de 2013 - Pg. E3 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,direitos-de-todos-os-humanos,1028470,0.htm

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