Os índios, a legislação e quem a desrespeita [Revoltante!]

Washington Novaes
Índio caiová-guarani com a Constituição Brasileira em suas mãos
Diz o relatório anual O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, divulgado pela Anistia Internacional (BBC Brasil, 22/5), que "vivemos em um país sob um déficit de justiça muito grande" em vários setores, principalmente indígenas e de moradores de favelas, como sintetizou seu diretor executivo no Brasil, Átila Roque. Segundo ele, o "marco institucional" garante os direitos, "mas na prática isso não se realiza".

Como é observado no documento, para os indígenas 2012 foi um ano de "acirramento da violência", usada como "instrumento para favorecer interesses econômicos" - com "brutalidade chocante", de que o caso dos índios caiovás-guaranis, de Mato Grosso do Sul (MS), é um dos exemplos. E poderá haver muitos outros se prosperarem projetos em tramitação no Congresso Nacional, como o de emenda constitucional que propõe retirar da Fundação Nacional do Índio (Funai) - e passar para o Congresso - a atribuição de demarcar terras indígenas. Ou a proposta da "bancada ruralista" de CPI para analisar as relações da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com organizações não governamentais (ONGs). A bancada cobra ainda a volta da portaria da Advocacia-Geral da União que autoriza o governo a contratar a implantação de rodovias, hidrelétricas, linhas de transmissão de energia em terras já demarcadas.

Por enquanto, a Casa Civil da Presidência mandou suspender processo de demarcação de terras no Paraná - onde há divergências entre a Funai e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) - e o ministro da Justiça promete para até o fim do ano novas regras para demarcação, que valerão para cem processos já em andamento (O Globo, 11/5). Mas ele diz ser contra a transferência de atribuições da Funai para o Congresso, pois "seria inconstitucional" (Folha de S.Paulo, 20/4). Já a ministra-chefe da Casa Civil, sabe-se, prepara um "pacote de mudanças no processo de demarcação" (Estado, 9/5) que altera os processos de identificação e demarcação de terras, basicamente para contemplar os "ruralistas" e impedir que passem a se opor ao Executivo no Congresso. A chefe da Casa Civil ainda lembrou que o Executivo aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em embargos declaratórios no processo sobre a demarcação da área dos índios ianomâmis, de 2008.

Enquanto isso, parece iminente a ameaça de conflito armado entre 45 mil índios caiovás-guaranis e fazendeiros que disputam suas terras em MS. É tema sobre o qual o autor destas linhas escreve há décadas. Centenas deles já morreram nos conflitos. E um jovem guarani suicidou-se no dia seguinte ao de seu casamento; enforcou-se numa árvore e deixou escrito na terra, sob seus pés: "Eu não tenho lugar" (sem terras, não teria como viver segundo sua cultura; fora delas, estaria condenado a ser boia-fria, mendigo, alcoólatra, como tantos outros).

É oportuno que, numa hora difícil, venha à luz o livro O Profeta e o Principal, do antropólogo Renato Sztutman (USP), que trata da obra do antropólogo francês Pierre Clastres, que morreu muito moço, mas conheceu várias etnias brasileiras, entre elas a dos guaranis. Um dos livros de Clastres trata exatamente dessa etnia - e do que ele designava como "sociedade contra o Estado". Esse é o título de outra obra sua, onde mostra que nós, não índios, nos habituamos a descrevê-los não pelo que têm, e sim pelo que não têm - não usam roupas, não detêm nossas tecnologias, não vivem como brancos. Com isso nos esquecemos do que têm e pode ser muito importante: 
1) a não delegação de poder (o chefe não dá ordens; é o conhecedor da história e da cultura, o grande mediador de conflitos, mas não dá ordens - até porque seria recebido com espanto); 
2) a autossuficiência no nível pessoal (um índio, na força de sua cultura, sabe fazer sua casa, plantar sua roça, colher, fazer seus instrumentos de trabalho e adorno, sua rede, conhece as plantas nativas úteis, etc., não precisa de ninguém para nada); e 
3) o privilégio de conviver com a informação aberta, ninguém dela se apropria para transformar em instrumento político ou econômico.

Renato Sztutman pensa que "por se estruturarem como uma sociedade contra o Estado os guaranis se tornam indesejáveis para a nossa sociedade e o Estado hegemônicos", e ainda cercados pelo agronegócio (Agência Fapesp, 9/4) - embora até no Município de São Paulo haja três aldeias dessa etnia.
PROF. JOSÉ AFONSO DA SILVA - jurista

Nesta hora de graves ameaças aos direitos indígenas - que temos de respeitar - precisamos relembrar o parecer do respeitado constitucionalista José Afonso da Silva no processo em que o STF reconheceu o direitos dos índios ianomâmis a suas terras em Roraima. Catedrático de universidades, assessor de Mário Covas na Constituinte de 1988, secretário de Segurança Pública em São Paulo, o professor José Afonso liquidou a questão ao demonstrar que o reconhecimento dos indígenas a terras por eles ocupadas imemorialmente vem da legislação de Portugal, desde1640. Foi mantido pela legislação do século seguinte, chegou à nossa primeira Constituição, foi preservado nas de 1934, 1967 e 1988 - nesta, com o reconhecimento de que a demarcação de suas terras é um ato "meramente declaratório", antecedido pelo "direito originário" que está no artigo 231. "A demarcação", diz o parecer, "não cria nem extingue direitos, reconhece apenas a situação de fato e o direito consequente". E sendo assim, "a localização e extensão da terra indígena não é determinada segundo critérios de oportunidade e conveniência do poder público, porque o critério que define a localização e a extensão das terras é o da ocupação tradicional, ou seja, a demarcação tem de coincidir, precisamente, com as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, definidas cientificamente por via antropológica". E isso, conclui ele, não ameaça a soberania nacional nem a atuação das Forças Armadas.

Em meio a tantas ameaças aos índios, convém refletir sobre isso.

Fonte: O Estado de S.Paulo - Espaço aberto - Sexta-feira, 31 de maio de 2013 - Pg. A2 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-indios-a-legislacao--e-quem-a-desrespeita-,1037444,0.htm
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Para entidades, Dilma cede a ruralistas
por interesse político

Roldão Arruda
Município de Sidrolândia (MS):
policiais federais e índios entram em confronto durante reintegração de posse
Em nota oficial, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) responsabilizou a presidente Dilma Rousseff e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pela ação da Polícia Federal na madrugada de ontem, em Sidrolândia (MS). A acusação baseia-se no fato de que a força federal só age com o consentimento de Brasília.

O Cimi também levou em conta outras ações já registradas no governo Dilma. Para a organização, que é vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), está em curso no País "uma estratégia mais ampla do governo federal para viabilizar demandas de ruralistas e de latifundiários do agronegócio".

Essa acusação, de que o governo cede espaços maiores à bancada ruralista, em detrimento dos indígenas, para garantir a base de sustentação do governo no Congresso, vem ganhando espaço. Na quarta-feira, um dia antes do conflito em Mato Grosso do Sul, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) divulgou nota oficial na qual também afirma que o governo atrasa os processos de demarcação de terras indígenas para atender aos interesses dos ruralistas.

A associação encerra a nota exigindo respeito à Constituição de 1988, que abordou de maneira clara a questão indígena.

No mesmo dia, no Rio Grande do Sul, o Conselho de Articulação do Povo Guarani acusou Dilma de manter "uma relação promíscua com ruralistas". Essa relação, dizem os indígenas, atrasa a demarcação de suas terras.

Essas duas manifestações foram precedidas por um manifesto coletivo, assinado por uma centena de antropólogos, batendo na mesma tecla. O texto diz que o governo desfigura os processos de regularização das terras para atender interesses econômicos.

O conflito nessa área é grande e tende a se agravar. As populações indígenas representam 0,4% da população e ocupam quase 13% do território nacional.

A quase totalidade de suas terras está localizada na Amazônia, em áreas de florestas. Os conflitos ocorrem nas Regiões Sul e Centro-Oeste, onde a valorização das terras provoca maior resistência dos ruralistas e dificulta a demarcação de terras.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Política/Cenário - Sexta-feira, 31 de maio de 2013 - Pg. A6 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,para-entidades-dilma-cede-a-ruralistas-por-interesse-politico-,1037409,0.htm

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