Fábulas do desengano [Sensacional, leia!]

Roberto Pompeu de Toledo
FYODOR DOSTOIEVSKI - escritor russo

Uma das passagens mais conhecidas de Dostoievski é a história do Grande Inquisidor, relatada no livro Os Irmãos Karamazov. O cenário é Sevilha, nos tempos da Inquisição. Ainda na véspera, uma centena de hereges havia sido queimada, para maior glória de Deus, num soberbo auto de fé. Eis que agora... quem aparece, caminhando suavemente, na mesma praça? Ele mesmo: Jesus! Estava escrito que um dia voltaria. Decidiu voltar, bem de acordo com seu conhecido gosto pelas estratégias de risco, num momento da história em que os que se fizeram de donos de sua mensagem adotaram a política de silenciar pelas chamas os insubmissos, os desobedientes, os desviantes ou os considerados como tais.

A multidão se aglomera diante dele. Vem um cego e pede: “Senhor, cura-me”. Um gesto, e o cego vê. O povo rejubila-se, canta hosanas. No momento em que adentra a catedral, encontra o pequeno caixão de uma criança morta. A mãe se aproxima, entre lágrimas. ‘‘Ressuscita minha filha.” Ele ordena à criança: “Levanta-te” — e ela se levanta. Nesse momento, surge em cena o Grande Inquisidor. É um velho alto, de face seca e olhar no qual brilha um sinistro clarão. Ele viu tudo: o cego que agora enxerga, a criança que voltou à vida. Aponta o dedo para o autor dos milagres e ordena aos guardas: “Prendam esse homem”. O preso é recolhido ao calabouço dos hereges. À noite, o Grande Inquisidor aparece na cela. É um homem muito ciente de seus deveres e de sua autoridade e por isso lhe comunica que, no dia seguinte, será queimado. Não dá ao condenado nem o direito de palavra. Ordena-lhe: "Não digas nada, cala-te. Que poderias tu dizer? Não tens o direito de acrescentar uma só palavra ao que disseste outrora”.

Dostoievski tinha em mente Jesus e os descaminhos de sua herança nas mãos dos que dela se apropriaram. Uma moral expandida da fábula poderia incluir os grandes pensadores, os políticos, os economistas ou os artistas em nome dos quais seus seguidores, admiradores ou intérpretes haurem prestígio e autoridade. E se eles voltassem? Se Marx voltasse, ou Freud, ou Darwin? Como reagiriam os chefes de suas respectivas igrejas? Para ficar mais perto, e se Bolívar voltasse à Venezuela? Teria ele o direito de acrescentar alguma palavra ao que disse outrora?
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Fonte: Revista VEJA - Edição 2320 - Ano 46 - Nº 19 - 8 de maio de 2013 - Pg. 134 - Edição impressa.

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