«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

domingo, 15 de setembro de 2013

A DEPRESSÃO - SOMBRA DO MEIO-DIA [imperdível!]

Entrevista com Andrew Solomon

Andrew Solomon - escritor norte-americano
Mônica Manir

Dor ou alegria, sol ou nuvens, para a depressão tanto faz. Quando ela decide atacar, a única defesa é atacar antes, diz autor de best-seller

Quando Andrew Solomon escreveu O Demônio do Meio-Dia, mergulhou fundo nas imagens. Só assim, quem sabe, alguém que nunca viu a cara da depressão poderia entender essa dor. Uma das imagens era a da trepadeira que tomou conta de um carvalho centenário. "Só bem de perto se podia ver como haviam sobrado poucos ramos vivos, e quão poucos e desesperados gravetos brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco maciço."

O carvalho centenário era o carvalho da sua infância, e a trepadeira de fato o sugou. A depressão Solomon a viveu na alma, num estágio severo, depois de a mãe morrer num suicídio assistido, após longo tratamento de câncer. "No final, eu estava compactado e fetal, esvaziado por essa coisa que me esmagava sem me abraçar." Esse americano-britânico, a um mês dos 50 anos, tinha 31 na época. Levou mais cinco anos para compor uma anatomia da doença que em 2001 ganhou o National Book Award e em 2002 foi finalista do Pulitzer.

Se O Demônio do Meio-Dia, lançado no Brasil pela editora Objetiva, emerge aqui nessa semana, é por causa do Dia Internacional de Prevenção ao Suicídio. Na terça-feira foi lembrada a taxa mundial de suicídio divulgada pela OMS: entre 10 e 30 por 100 mil habitantes. O Datasus soltou o número de 9.852 brasileiros que se mataram em 2011. Considerando-se a subnotificação, presume ser maior. No geral, com o que corroboram vários estudos, cerca de 90% dos suicídios estão associados a estados depressivos.

"Depressão e suicídio são entidades separadas que com frequência coexistem, influenciando-se mutuamente", afirma Solomon. Por falta de uma, ele propõe políticas públicas para as duas, com formação de profissionais de saúde e ferramentas na medida para distúrbios ainda sub ou sobretratados.

Nesta entrevista, feita a partir de Cleveland, Ohio, o escritor menciona o novo livro, Longe da Árvore, que será lançado em outubro pela Companhia das Letras. São mil páginas sobre o universo de famílias cujos filhos são marcados pela excepcionalidade. Seu foco na nossa conversa, porém, é o tratamento daquilo com que Solomon precisa conviver eternamente, à espreita de que a trepadeira queira subir novamente pelos seus pés: "Toda manhã e toda noite, olho para as pílulas na minha mão: branca, rosa, vermelha, turquesa. Às vezes parecem uma escrita, hieróglifos dizendo que o futuro pode ser muito bom, e que devo a mim viver para vê-lo".

O senhor costuma dizer que a depressão ceifa mais anos do que a guerra, o câncer e a aids juntos. Em suas palavras, ela pode ser "a maior assassina da Terra". Como explicar a escala do problema?

Andrew Solomon: A variação do estado de ânimo é uma vantagem da evolução da espécie. Sem a capacidade de ser triste, por exemplo, não teríamos o amor como o conhecemos, já que ele contém necessariamente a sensação da perda antecipada, que aumenta nosso apego à pessoa. A depressão é uma disfunção desse espectro. No entanto, como é contígua à tristeza e à ansiedade, é difícil regulá-la. Ainda assim, provavelmente temos mais casos de depressão nestes tempos modernos do que tivemos ao longo da história. São tempos eletrônicos, superconectados e superpovoados, que nos impõem tensões não vividas no passado. Com novos discernimentos, diagnosticamos a doença com mais frequência. E porque temos um tratamento mais eficaz, há um incentivo para que as pessoas se identifiquem com essa condição. Contudo, apesar dessas ferramentas clínicas (drogas, psicanálise, terapia cognitivo-comportamental, terapia eletroconvulsiva, etc), a maioria das pessoas com depressão não recebe tratamento, o que é um desastre para a saúde pública.

Por que não recebem tratamento?
 

Andrew Solomon: A depressão é, em geral, resultado de uma vulnerabilidade genética desencadeada por circunstâncias externas. Podemos supor que a vulnerabilidade atinja todas as classes sociais - e, em seguida, perceber que a experiência dos pobres é mais estressante e, portanto, deve levar a uma maior taxa de depressão. A questão é que pessoas com uma vida confortável que se sentem arrasadas o tempo todo tendem a perceber a estranheza desse sentimento e procuram tratamento. Já os pobres acham que o que sentem é compatível com suas vidas, e não lhes ocorre que estejam deprimidos. Muitas vezes, nem estão deprimidos por causa de problemas externos, mas a depressão os desvitaliza de tal forma que os impede de melhorar de vida.

Não externar fragilidades também pode dificultar o diagnóstico? Vivemos em uma sociedade que não suporta lamúrias?
 

Andrew Solomon: Não acho que o lamento tenha alguma vez sido popular. Como um amigo meu disse certa vez, "autopiedade não dá bilheteria". Mas acho que devemos fazer uma distinção entre choramingar num encontro social e identificar a depressão num quadro clínico. Depressão é uma experiência de dor intensa, por vezes tão intensa que a única opção parece ser o suicídio. Buscar tratamento para essa dor é a coisa sensata a fazer. Manter-se em silêncio não traz benefício a ninguém.

A vida virtual e a fragilidade nas relações sociais e familiares podem aumentar o sentimento de vazio existencial?
 

Andrew Solomon: Sem dúvida. Seres humanos precisam interagir com outros seres humanos; quando interagem principalmente com uma tela de computador ou com um aparelho de televisão, tornam-se alienados e descontentes. A depressão é uma doença da solidão, e aqueles com relações familiares frágeis partem de um lugar ainda mais solitário. Muitas vezes, as pessoas que estão deprimidas acham a interação humana estressante, e se isolam. É importante lembrar que exigir reação de uma pessoa muito deprimida pode exacerbar a doença. Mas fazê-la perceber quão realmente é amada é essencial na sua recuperação.

Há muito charlatanismo nos tratamentos?
 

Andrew Solomon: Há um charlatanismo sem fim. Mas, às vezes, o charlatanismo funciona. Se você tem câncer no cérebro e alguém disser que ficará melhor se plantar bananeira por 20 minutos toda manhã, você continuará com o câncer no cérebro e provavelmente morrerá com ele. Mas se você tem depressão, alguém disser o mesmo e você se sentir melhor com essa prática, então de fato está melhor naquele momento: afinal, a depressão é uma doença do sentir. Fazendo essa ressalva, acho perigoso perseguir tratamentos alternativos e adiar os comprovados, porque, quanto mais tempo procrastinar o tratamento da depressão, pior ela vai ficar. E tudo que se quer é dar a volta por cima quanto antes. Há pessoas que tomam medicamentos de que não precisam, e há pessoas que não recebem a medicação necessária. Estou mais preocupado com os da segunda categoria, mas ambos são problemas.

O gatilho para a depressão é necessariamente negativo?


 Andrew Solomon: O gatilho é geralmente uma forma de estresse, e eventos positivos podem ser tão estressantes quanto os negativos. Uma interrupção de estabilidade, uma ruptura do status quo, tudo isso pode levar à depressão. Algumas pessoas ficam deprimidas quando mudam de emprego, mesmo que quisessem fazê-lo. O mesmo acontece quando algumas se casam ou têm filhos.

Como lidar com a possibilidade de um novo colapso?
 

Andrew Solomon: A depressão é uma doença cíclica, e a maioria das pessoas que teve um episódio terá outro. A primeira coisa é saber disso e estar preparado. A segunda é certificar-se de que você tem um bom tratamento. Eu, por exemplo, tomarei medicação e farei terapia o resto da vida. Mas, além disso, conheço os sinais de alerta e tento ser sensível a eles. Quando começo a me sentir mal, volto a ser rigoroso com meus horários de sono, com os exercícios, com tensões desnecessárias. É importante planejar essas estratégias enquanto você está se sentindo bem, caso a depressão volte a bater à porta. Às vezes, com terapia e medicação, é possível evitar uma recaída, mas muitas vezes não é. Quase sempre é possível, no entanto, que as recaídas sejam menos frequentes e profundas.

A depressão varia de cultura para cultura?
 

Andrew Solomon: Na essência, é a mesma. Eu me propus a quebrar a ideia de depressão como uma doença da modernidade ocidental e de classe média, demonstrando que existe ao longo do tempo (Hipócrates fez uma das melhores descrições do distúrbio); que existe em todas as culturas (fui olhar a depressão entre os inuits da Groenlândia, entre os sobreviventes do Khmer Vermelho no Camboja e examinar rituais tribais para tratar a doença na África Ocidental); e em todas as classes. A ansiedade aguda pode ter um foco diferente, por exemplo. Mas sua característica fundamental é surpreendentemente consistente.

No ano 2000, 815 mil pessoas tiraram a própria vida. No Brasil, tivemos um aumento de 30% na mortalidade por suicídio entre os mais jovens, homens especialmente, nas últimas duas décadas. Mas pouco se trata do tema. O tabu em torno do suicídio pode comprometer o diagnóstico da depressão, considerada uma de suas principais causas?


 Andrew Solomon: É verdade: quase todo suicídio é resultado da depressão. Algumas pessoas cometem suicídios racionais porque têm, por exemplo, uma doença terminal avançada e não querem morrer sentindo uma dor insuportável. Mas, em geral, o suicídio é o ponto final de uma depressão não tratada. A natureza epidêmica do suicídio é resultado da nossa falta de cuidado com a saúde mental, a visão corrente de que as doenças mentais não são doenças reais. Elas são doenças reais, e elas matam pessoas. Prevenção é um imperativo urgente para os governos e agências de serviços sociais. As pessoas podem ser resgatadas da beira do precipício.

A depressão cresce entre as crianças?


Andrew Solomon: Sim, em parte pelas razões pelas quais está aumentando em toda a sociedade, mas também porque as crianças estão sob mais pressão, são mais superestimuladas, mais levadas a se movimentar de um lugar para o outro e de escola para escola. Isso acontece porque os pais estão ambos trabalhando fora, e as crianças têm ficado com uma variedade de cuidadores que as amam menos que os pais. Isso acontece por causa do colapso da família.

No seu último livro, Longe da Árvore, o senhor conta histórias de pais que não apenas aprendem a lidar com seus filhos deficientes como acham um significado profundo em fazer isso. Por que escolher esse tema?


 Andrew Solomon: Eu sou o filho gay de pais heterossexuais, e sempre me impressionei com quão difícil era para a minha família me entender. Se compartilhássemos a mesma qualidade definidora de identidade, talvez fosse mais fácil. Tempos depois, numa missão jornalística, descobri que a maioria das crianças surdas nasce de pais que ouvem, e que elas se aproximam entre si na adolescência. Em seguida, um amigo de um amigo teve uma filha anã, e percebi que a maioria dos anões nasce de pais de estatura padrão. Enfim, constatei um padrão de pais que têm filhos profundamente diferentes deles, e vi que todas essas crianças tinham algo em comum, assim como essas famílias tinham semelhanças entre elas. Quando se conhece a experiência de negociação entre pais e filhos tão diferentes, de repente se está falando da maioria da humanidade. Nossas diferenças nos unem. Eu queria escrever um livro não sobre o sofrimento, mas sobre o amor - sobre quantos tipos de amor podem prosperar mesmo quando as circunstâncias parecem se armar contra eles.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 15 de setembro de 2013 - Pg. E2 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,sombra-do-meio-dia,1074699,0.htm

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A DOR E A PERFORMANCE 

Joel Birman *

As taxas de suicídio se incrementam num contexto marcado pela incerteza e perplexidade, e os mais expostos são os jovens que, tendo de construir seu percurso em espaços de alta competitividade, infelizmente sucumbem
Joel Birman - psicanalista
A intenção deste artigo é a de colocar em pauta um conjunto de questões em decorrência do suicídio do músico Champignon, da banda Charlie Brown Jr., em seguida à morte por overdose do seu colega Chorão. A esse cenário trágico deve-se acrescentar o suicídio há alguns meses, por enforcamento, do músico Peu de Souza. A história de suicídio de Champignon se complica, já que esse músico, que substituiu o colega morto, foi seguidamente hostilizado por fãs da banda como traidor por ocupar sua posição em uma nova banda. Nessa medida, a tragédia em questão se situa numa linha tênue entre a dor pela perda do amigo e as múltiplas agressões verbais sofridas da parte de seus fãs. Isso porque tais agressões, nessas circunstâncias, tiveram possivelmente o efeito de incrementar a culpa que se coloca para qualquer sujeito na experiência do luto.

Um primeiro comentário sobre isso é que, paralelamente, no Rio de Janeiro, nos últimos meses alguns jovens de classe média alta se suicidaram de forma violenta e inesperada, causando uma grande comoção entre amigos e familiares. Da mesma forma como Champignon se suicidou abruptamente após um jantar afável com a mulher grávida e amigos, histórias parecidas ocorreram nos suicídios dos cariocas.

Portanto, a primeira questão que se impõe é por que tantos suicídios acontecem com jovens bem-sucedidos na atualidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que não ocorram suicídios como esses em faixas etárias outras. Porém, o fato de ocorrerem com jovens tem a potência de nos consternar particularmente, pois se trata de pessoas que tinham uma vida pela frente e muitas possibilidades de resolução dos impasses existenciais que se colocam para todos nós. Por que então esses jovens são lançados abruptamente para o gesto fatal contra si mesmos, sem reconhecerem os horizontes que ainda existiam para eles?

Para responder a isso, é necessário o reconhecimento de que se trata de um fenômeno complexo, que exige uma reflexão que lance mão de um conjunto de saberes, para que não se caia numa banalização psicologista e psicopatológica desse acontecimento limite. Com efeito, é preciso aludir não apenas à teologia e à política, como também ao arsenal das ciências humanas.

Como se sabe, os suicídios não são geralmente divulgados pela mídia. Existe uma interdição em relação a isso, pois se supõe que as narrativas de suicídios possam gerar outros, numa espécie de reação em cadeia. Além disso, essa interdição visa a proteger os familiares dos suicidas, em decorrência do estigma presente nesse tipo de ato fatal.

Contudo, não se pode esquecer que o suicídio é um ato proibido por uma longa tradição religiosa no Ocidente, pois, se Deus nos concedeu a vida, só ele teria o poder de retirá-la. O que implica dizer que, nessa tradição, o indivíduo não teria a liberdade de decidir sobre a própria vida/morte, de forma que se impõe a ele ter que suportar as angústias da existência, inventando formas de lidar com elas.

Esse imperativo religioso foi refundado com a constituição da sociedade moderna, de acordo com Foucault em Vigiar e Punir. Segundo ele, a modernidade se forjou pelo imperativo de promover a vida e afastar a sedução da morte, na medida em que a vida se transformou no campo fundamental para o exercício do poder. Com efeito, se pelo poder disciplinar e pelo biopoder a vida é promovida e a morte apenas acontece quando se torna inevitável, no poder soberano pré-moderno o soberano fazia morrer e deixava viver. Foi em decorrência disso que a modernidade foi marcada por uma intensa e disseminada medicalização do espaço social, na medida em que a saúde foi transformada num dos indicadores fundamentais da qualidade de vida da população e da riqueza do Estado-nação. Daí porque a eutanásia foi proibida em nossa tradição, interdição essa que se mantém ainda hoje, não obstante as múltiplas reações provocadas face a isso na atualidade, em decorrência dos sofrimentos de doentes terminais.

Como se pode reconhecer, a interdição do suicídio conjuga intimamente uma dimensão religiosa com uma dimensão política, de forma que a vida seria regulada pelo poder de Deus e do Estado. Não é, pois, espantoso que o suicídio seja objeto de estigma, provocando horror na população em geral e nos familiares e amigos dos suicidas. No que concerne a isso, é preciso reconhecer que se a perda de alguém que nos é próximo, seja amigo ou familiar, nos é sempre dolorosa, a morte por suicídio é trágica. Com efeito, para esses casos a pergunta que sempre se impõe é se não poderíamos ter impedido o desfecho trágico, se não ficamos cegos e surdos aos múltiplos sinais enviados pelo sujeito. Portanto, a culpa é inevitável entre aqueles que foram próximos dos sujeitos que se mataram, culpa essa que vai marcar suas vidas. Enfim, se os suicidas tiveram que fazer a transgressão limite para realizarem seu ato fatal, pelos interditos religiosos e políticos que delineiam o campo dessa experiência, os familiares e amigos se sentem igualmente responsabilizados por não terem impedido o desfecho.

É inegável que na nossa tradição o ato suicida implica uma situação limite para o sujeito, que se reconhece encontrar num beco sem saída para realizar tal ato. O que implica dizer que, para perpetrar tal transgressão, o sujeito atravessa uma profunda experiência de angústia indizível. Porém, pode-se dizer também que essa experiência se conjuga com o estatuto do individualismo moderno, na medida em que o sujeito aqui em causa não se inscreve numa totalidade social que o subsuma, como ocorria nas sociedades pré-modernas. Nessas, a morte e mesmo o suicídio se inscrevem numa gramática coletiva, ganhando assim foros de heroísmo e grandiosidade, sendo o ato de tais personagens marcados pela coragem e pelos valores éticos superiores. Não é isso que ainda vemos e podemos constatar em diversas culturas asiáticas e árabes, onde os homens-bomba e os camicases se transformam em heróis de suas comunidades, louvados pela coragem e pelos valores fundamentais que os impulsionaram para a morte.

Foi na tradição individualista moderna que o suicídio se transformou num ato maldito. Em decorrência disso, a figura do suicida se transformou na figura do anti-herói e mesmo do covarde, isto é, daquele que não teve coragem para suportar os obstáculos que a vida lhe impôs. Por isso mesmo, nessa configuração antropológica o ato suicida foi transformado num sintoma grave de perturbação psíquica, associado principalmente à experiência da melancolia, mas podendo também ser inserido em outras psicoses.

Em sua leitura do sujeito moderno, Freud procurou pensar a melancolia e o suicídio a partir da experiência do luto. Vale dizer, em face da perda de um objeto amado ou de um ideal, o sujeito vive uma experiência de luto, numa espécie de confrontação ética com a figura do morto, num acerto de contas com suas memórias face ao objeto perdido. Dessa maneira, a melancolia seria uma impossibilidade para o sujeito de aceitar a perda do objeto de amor e dele se separar, de forma a ficar identificado com a figura do morto. Enfim, o ato suicida poderia ser então um ato fatal do sujeito para arrancar de si o objeto que se perdeu, ou então continuar a ele ligado para sempre pela morte.

Contudo, toda essa discussão na atualidade assume novos aspectos cruciais, considerando-se as condições psíquicas do sujeito na contemporaneidade. Assim, face à feroz competição generalizada que existe hoje no contexto social do neoliberalismo, em que a performance se colocou como um imperativo fundamental, a promoção de si mesmo se impôs como uma marca indiscutível da subjetividade contemporânea. Superar os adversários se transformou numa moral disseminada, implicando uma aceleração das formas de viver que são correlatas da aceleração do tempo que se impõe no fluxo das mercadorias e das informações em escala global. Nesse contexto, cada indivíduo se transformou numa microempresa para promoção de si mesmo e da venda de seus produtos, sejam esses materiais ou imateriais, numa multiplicação assintótica de suas performances.

Não é por acaso que o consumo de drogas, sejam essas lícitas ou ilícitas, se transformou numa forma de vida. Com efeito, por esse consumo os indivíduos procuram promover sua performance para estar à altura da competição frenética existente no espaço social. Face a esse excesso intensivo, o sujeito fica turbinado, mas, em contrapartida, nem sempre dispõe de instrumentos simbólicos para lidar com isso. Os efeitos disso são múltiplos, nas tentativas dos sujeitos de lidarem com tais excessos. Se esses forem descarregados sobre o corpo podemos reconhecer a origem das múltiplas doenças psicossomáticas na atualidade, assim como da síndrome do pânico. Contudo, se forem descarregadas para o exterior teremos uma chave para a compreensão da multiplicação da violência e da crueldade na atualidade, assim como para a disseminação das adicções no contemporâneo, que se realizam com diversos objetos, num eixo que se polariza entre a comida e as drogas. Além disso, esse excesso intensivo pode se fazer presente como um corpo estranho para o sujeito, que perde assim suas referências identificatórias, sendo lançado em situações melancólicas.

Assim, pode-se depreender facilmente dessa cartografia como a morte nos assalta como possibilidade, de múltiplas maneiras. Isso porque o excesso como dor não pode ser transformado e metabolizado como sofrimento, pela fragilidade dos operadores simbólicos de que o sujeito dispõe. Com isso, o desamparo que é constitutivo do sujeito, segundo Freud, se transforma em desalento, pois num espaço social permeado pela competição generalizada o sujeito não pode mais contar com o outro como amigo e aliado.

Não é espantoso que as taxas de suicídio se incrementem nesse contexto, marcado pela incerteza e perplexidade. Além disso, não é inesperado que os jovens estejam mais expostos a esses processos, pois tendo que construir seus percursos no espaço de alta competitividade, muitos deles infelizmente sucumbem.

* JOEL BIRMAN É PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 15 de setembro de 2013 - Pg. E3 - Internet: 
http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-dor-e-a-performance,1074702,0.htm

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