Fiéis em fuga: de Deus ou do cardeal?

"O campo é o mundo - Caminhos para percorrer de encontro ao humano"
[O que está dito aqui em relação a Itália serve, também, para a nossa realidade]

Marco Politi
Il Fatto Quotidiano
11-09-2013

Rompe-se o mito clerical da Itália, oásis feliz de uma Igreja do povo. A Carta Pastoral recém-publicada pelo cardeal Angelo Scola, de Milão, remove qualquer ilusão e põe sob os refletores o que, no mínimo há 20 anos, o melhor da sociologia italiana – incluindo a praticada pelos católicos convictos – referia em vão à hierarquia eclesiástica. Está em andamento na Itália um constante e crescente descolamento entre a população e a Igreja institucional.

No seu documento, Angelo Scola aponta o dedo contra o "ateísmo anônimo", que está se expandindo entre os fiéis e contra a separação profunda que caracteriza a sua existência cotidiana e o fato de ir à missa aos domingos.

O arcebispo de Milão faz duas perguntas ardentes. 

  • Por que a "palavra cristã sobre o amor parece tão pouco atraente para a sensibilidade do nosso tempo?"
  • E por que a vida das comunidades cristãs parece aos contemporâneos tão "abstrata" e distante da cotidianidade?
Análise mais cruel não se poderia fazer. O que torna mais graves as interrogações é a constatação – expressada pelo próprio cardeal – que o o fenômeno investe contra as gerações "entre os 25 e os 50 anos". Praticamente, a espinha dorsal da população ativa italiana.

Certamente, o fenômeno da secularização de massa que começou no século XX é de longo fôlego – e muitas vezes ele foi considerado superficialmente como em declínio –, mas também há causas específicas da Igreja institucional na Itália, que alimentaram a desafeição.

Se hoje tantos fiéis exclamam entusiasmados que sentem o Papa Francisco tão humano e "próximo" deles, isso significa que a Igreja italiana da cúpula, por tempo demais, colocou-se longe e não inspirou aquele sentimento de humanidade, do qual precisam tantos contemporâneos, crentes ou não.

Ano após ano, a hierarquia se envolveu na proclamação ideológica dos chamados "princípios inegociáveis". Ela não foi capaz de organizar um ensino de religião, que ensinasse os textos e os valores profundos da fé cristã, mas lutou obsessivamente pelo crucifixo na sala de aula, que nenhum dos alunos leva em consideração.

Ela pareceu inimiga – por causa da distância sideral da realidade – dos casais que coabitam, em vez de transmitir o sopro de solidariedade do Samaritano, que cuida do viajante, independentemente de qualquer esquema. A sociedade também não esquece a fúria em negar aos casais homossexuais a possibilidade de estreitar um pacto civil de solidariedade.

"Se um homossexual está em busca de Deus, quem sou eu para julgar?", exclamou Francisco, e de repente um suspiro de alívio atravessou o mundo católico. Mas a desconfiança popular diante da fria abstração da cúpula eclesiástica permanece.

Por outro lado, por que se maravilhar pela escassa penetração da mensagem evangélica, quando ele é anunciado por uma Igreja institucional, cujos manejos com o poder político – muitas vezes por motivos de baixo nível – emergem tão prepotentemente das correspondências de Gotti Tedeschi? [ex-diretor do Ior - banco do Vaticano]. Cabe ao Vaticano lidar com as nomeações estatais?

É evangélico tentar não pagar os impostos sobre as atividades comerciais das entidades religiosas? (No entanto, fiadores como Monti e Letta conseguiram isso em 2013 e 2014, e também para o futuro próximo, como conta Massimo Teodori em Vaticano rapace).

Há anos as pesquisas sociológicas, até em nome da Conferência Episcopal Italiana, assinalavam a escassa incidência pastoral dos bispos, dos quais frequentemente os fiéis não sabem nem o nome. Se o bispo parece ser um chefe de partido ou um prefeito, é escassa a influência exercida sobre a juventude. Há anos, assinala-se que as gerações mais jovens não perderam a relação com "Deus", mas não aceitavam mais a palavra de autoridade dos que presumem falar "em nome de Deus".

O grito de alerta de Scola impõe que o episcopado italiano, na realidade, "verifique o seu próprio testemunho" (para usar as palavras que o arcebispo dirige aos fiéis individuais). Olhando bem, "ateus anônimos" é um rótulo midiaticamente fascinante, mas com o risco de acabar sendo uma caixa vazia. O ateísmo não é o problema.

O fato novo, irreversível, é a autodeterminação de massa pela qual milhões de pessoas, hoje, têm ideias "próprias" sobre Deus, a espiritualidade e os valores. E, diante desses milhões, a Igreja e cada religião tradicional são desafiadas a ser "convincentes", credíveis, portadoras de instâncias que toquem o íntimo das pessoas.


Angelo Scola - cardeal-arcebispo de Milão (Itália)

Não será um acaso que o cardeal Scola, para os próximos meses, convidou para Milão, para falar com os fiéis, precisamente aqueles purpurados [cardeais] que são percebidos como portadores de novidade. 
  • O cardeal austríaco Schönborn, que não teme enfrentar os problemas candentes na Igreja e que por isso foi repreendido pelo Papa Ratzinger. 
  • O cardeal de Boston, O'Malley, que limpou a diocese dos pedófilos. 
  • O cardeal de Manila, Tagle, o "Roncalli" das Filipinas.
Já diz o Evangelho. Vinho novo deve ser posto em odres novos.

Tradução do italiano por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sábado, 14 de setembro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523694-fieis-em-fuga-de-deus-ou-do-cardeal

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