«Tem ouvidos, mas não ouvem; olhos, mas não veem!»
Ultraconservadores acusam Papa Francisco de propagar
em seus escritos sete posturas heréticas sobre o
matrimônio, a moral e a recepção dos sacramentos
Cameron Doody
Religión
Digital
29-09-2017
“É importante o diálogo,
inclusive dentro da Igreja”. Com estas palavras, o cardeal Secretário de Estado da Santa Sé, Pietro Parolin, reivindicou sensatez no
debate sobre a exortação apostólica Amoris
Laetitia, que neste final de semana chegou a um ponto culminante, após a
publicação da chamada “correção filial”
ao Papa Francisco [leia o seu texto, clicando aqui].
Nesta quinta-feira [dia 28 de setembro], o “número
dois” do Vaticano se tornou a primeira figura da hierarquia a se referir a esta
“correção filial” [em latim: Correctio Filialis] assinada por meia
centena de teólogos e acadêmicos. Através de uma carta, estes
ultraconservadores acusaram o Pontífice de propagar em seu escrito e em seus
“atos” palavras e omissões” subsequentes, sete posturas heréticas sobre o
matrimônio, a moral e a recepção dos sacramentos.
Falando em Roma, tendo como pano de fundo uma
conferência sobre a perseguição que sofrem os cristãos iraquianos, o cardeal Parolin afirmou que aqueles que
não estiverem de acordo com o Papa são livres para se expressar, “mas nesses assuntos se deve ponderar e
encontrar formas de nos entender mutuamente”.
Embora nenhum dos assinantes da “correção filial”
seja cardeal e nenhum seja bispo, a não ser o líder do grupo tradicionalista da
Fraternidade Sacerdotal São Pio X,
ou lefebvrianos, Bernard Fellay, a
publicação de tal escrito desatou, neste final de semana, uma onda de manchetes
que pressagiam um “cisma” potencial na Igreja.
BERNARD FELLAY Bispo cismático da Fraternidade Sacerdotal São Pio X - conhecidos como "lefebvrianos" |
A “correção filial” também reavivou o debate sobre
as dubia
[trad.: dúvidas] dos quatro cardeais acerca da Amoris Laetitia, apresentadas ao Papa no ano passado, ainda que os
responsáveis da nova “correção filial” decidiram, nesta ocasião, que seja “uma
iniciativa independente”, não impulsionada – ao menos diretamente – pelo cardeal Raymond Burke, “líder da
oposição” a Francisco na Cúria.
Por sua parte, e em declarações ao jornal Avvenire, o teólogo e secretário
especial do Sínodo da Família, Bruno
Forte, se referiu ao documento “anti-Bergoglio”
como “uma operação contra o Papa e contra a Igreja”.
Na opinião de Forte, a Amoris Laetitia “responde a
uma pergunta pastoral – se os divorciados em segunda união podem comungar –
perfeitamente legítima e evangélica, baseada na caridade”. Por isso,
considera tanto as dubia como a “correção” um “ataque grave e instrumentalizado”.
Além disso, o prelado aponta que se trata da “expressão de um grupo absolutamente
minoritário que não captou a mensagem de fundo da Amoris Laetitia”. E que fecham a porta ao “espírito do Concílio
Vaticano II que Francisco está encarnando”.
E ainda que o cardeal Parolin convide ao diálogo
sobre a abertura aos sacramentos que a Amoris
Laetitia propõe aos católicos divorciados e em segunda união, cabe recordar
que, nesta mesma quinta-feira, La Civiltà
Cattolica publicou as mais extensas reflexões do Papa Francisco sobre o
debate, das quais se teve constância até a data.
PAPA FRANCISCO |
“Escuto
muitos comentários – respeitáveis porque os dizem filhos de
Deus, mas equivocados – sobre a
Exortação apostólica pós-sinodal”, admitiu o Papa a um grupo de jesuítas,
com quem se reuniu durante sua recente visita à Colômbia. Mas, “para compreender Amoris Laetitia é necessário lê-la do início ao fim. Começar com o
primeiro capítulo, continuar pelo segundo... e assim seguindo... e refletir”,
continuou.
“Uma segunda coisa”, prosseguiu Francisco
neste encontro em Cartagena das Índias. “Alguns
sustentam que a moral que está na base da Amoris
Laetitia não é uma moral católica ou, ao menos, que não é uma moral segura.
Diante disto, quero reafirmar com clareza que a moral da Amoris Laetitia é tomista, a do grande Tomás. Podem falar disto com
um grande teólogo, entre os melhores de hoje e entre os mais maduros, o cardeal
Schönborn”.
“Quero dizer isto”, afirmou o Pontífice, “para que
ajudem as pessoas que acreditam que a moral é pura casuística. Ajudem elas a
perceber que o grande Tomás tem uma
riqueza muito grande, capaz de também hoje nos inspirar. Mas, de joelhos,
sempre de joelhos...”.
Traduzido pelo Cepat.
Sobre a Amoris laetitia,
sete manipulações contra o
Papa
Entrevista com Giuseppe Lorizio
Teólogo italiano, professor de Teologia Fundamental
na Universidade Lateranense (Roma), membro do Comitê Nacional para os estudos superiores
em Teologia e de Ciências Religiosas da Conferência Episcopal Italiana (CEI)
Luciano Moia
Jornal
«Avvenire»
25-09-2017
Um documento assinado por 62
estudiosos afirma que na Exortação
pós-sinodal Amoris laetitia haveria posições heréticas.
Mas tais frases no documento
não existem
GIUSEPPE LORIZIO Teólogo italiano |
Sete considerações para acusar o Papa de heresia.
Sete considerações tiradas de Amoris
laetitia para afirmar que sobre o matrimônio, a vida moral e o recebimento
dos sacramentos, Francisco fez uma revisão da doutrina afastando-se da tradição
e do magistério. Pena que as sete
alegadas "posições heréticas" não representem de forma alguma o que o
Papa escreveu na Exortação pós-sinodal mesmo que no documento sejam colocadas
entre aspas.
Podem
parecer citações, mas não o são [veja no artigo seguinte]. Trata-se,
aliás, de uma síntese normativa capenga que representa exatamente o oposto
daquilo que Francisco – e com ele dois Sínodos dos Bispos – diz explicitamente
que quer evitar, ou seja, uma lista de permissões e proibições. O texto
divulgado na noite do último dia 24 de setembro, é na verdade um tipo de
explicitação legalista das considerações pastorais expressas em Amoris laetitia.
Os
62 signatários da chamada "correção filial"
"concernente à propagação de heresias" (este é o título do documento)
começam por uma premissa que ignora a
realidade, tem a pretensão de inverter a perspectiva escolhida por um percurso sinodal que envolveu toda a Igreja
e, sobretudo, atribuem ao Papa o que ele nunca disse em tais termos.
O documento, divulgado na noite entre sábado e
domingo, simultaneamente, nos Estados Unidos e na Europa, foi publicado na
Itália por alguns sites tradicionalistas que há vários meses, justamente com
base em Amoris laetitia, atacam o
pontificado de Francisco.
[...]
Entre
os 62 signatários do documento aparecem, entre outros, o
banqueiro Ettore Gotti Tedeschi, o
superior geral dos lefebvrianos Bernard
Fellay, o professor Antonio Livi
e outros especialistas menos conhecidos. Pelo que afirmado no longo e confuso
texto, o Papa teria "causado escândalo para a Igreja em matéria de fé e
moral, através da publicação de Amoris
laetitia e mediante outros atos" com os quais teria encorajado uma
leitura herética da Exortação pós-sinodal.
Foi
completamente ignorado o fato de que Amoris
laetitia acolhe em 87% as duas Relatio
Synodi 2014-2015 [relatórios finais do Sínodo] e que, portanto, o que o texto propõe não é
o fruto de uma invenção do Papa, mas de um processo sinodal, que envolveu mais
de trezentos bispos, cardeais e teólogos. Mas não só: os temas abordados no
longo debate sinodal surgiram a partir de duas
consultas mundiais. E, nesse contexto, as
dioceses dos cinco continentes tiveram a oportunidade de expressar opiniões,
expectativas e esperanças.
Se os 62 signatários do documento e quem, por trás
deles, orquestraram essa questionável manobra, tivessem tido a oportunidade de
ler as milhares e milhares de respostas recebidas na Secretaria do Sínodo,
teriam finalmente percebido que o
sentimento generalizado do povo de Deus – e daquela parte, principalmente, que tem o cuidado de responder a um
questionário eclesial – está bem
longe de certa rigidez doutrinária e pede à Igreja um olhar renovado de
acolhimento, de compreensão e de ternura. Justamente o processo que o longo
caminho sinodal 2014-2015 procurou implementar. E que agora a extraordinária
recepção do documento em todas as parte do mundo demonstra sem temor de
desmentida.
Em vez disso, o
que tratam de inventar os 62 signatários das acusações de "heresia",
que parece mais uma flagrante manipulação contra Francisco?
Eles compõem um texto no qual, além das sete
acusações – fruto como já afirmado de sua livre
interpretação – listam uma série de passagens de Amoris laetitia que serviria para "propagar as posições
heréticas" e, depois, uma infinidade de outras citações do magistério
passado e recente, do Evangelho para concluir com o Modernismo e Lutero.
Porque, inclusive sobre estes dois pontos, Francisco teria desviado.
Mas
de onde nasce um texto que mostra uma radical incapacidade de se distanciar de
uma visão da Igreja toda normas e julgamentos?
Como é possível que existam teólogos católicos ou, de qualquer forma,
estudiosos incapazes de compreender que "a
misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade
de Deus"? (Amoris laetitia, n°
311).
Monsenhor
Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental na
Universidade Lateranense, membro do Comitê Nacional para os estudos superiores
em Teologia e de Ciências Religiosas da CEI, não mediu palavras: "Há um problema de honestidade intelectual e
de incompetência teológica. A honestidade intelectual pediria que não se
colocassem entre aspas, usando-as como proposições de acusação, frases que o
Papa nunca disse nem escreveu. E, por nunca tê-las dito ou escrito, no
documento não aparece evidentemente qualquer citação a propósito de tais
"acusações". Trata-se,
portanto, de considerações extraídas de uma livre e questionável interpretação
da mensagem do Papa e de Amoris laetitia".
SÍNODO DOS BISPOS SOBRE A FAMÍLIA Papa Francisco assumindo seu lugar à mesa de coordenação |
Eis a entrevista.
Em suma, um problema metodológico que torna pouco
credível todo o resto. Mas, quanto aos conteúdos?
Giuseppe Lorizio: Muitas perplexidades. Já
na primeira das suas afirmações haveria muito a dizer. A propósito da
justificação mostra-se uma visão
automática e estática da Graça, que ao contrário é um fato dinâmico, que sempre devemos invocar e que, de qualquer
forma, não provém do nosso mérito, mas de um dom de Deus. Nesse sentido, essa
dinâmica da graça comporta que até mesmo a pessoa que se confessou, recebeu o
perdão e, portanto, está em um estado de graça, não é perfeita. E se não é
perfeita, precisa de conversão. Esse é o caminho por onde os sacramentos nos
ajudam e nos sustentam.
Como avaliar a observação sobre a Eucaristia para
os divorciados que voltaram a casar?
Giuseppe Lorizio: A
Eucaristia não pode ser concebida como o pão daqueles que já são perfeitos.
Mas é o panis viatorum, ou seja,
daqueles que estão no caminho. Se todos nós devêssemos atender a plenitude da
união com Deus para ter acesso à Eucaristia, ninguém podia acessá-la. Tanto é,
que alguns instantes antes de recebê-la todos, do celebrante ao último dos
fiéis, dizem: "Senhor, eu não sou
digno que entreis em minha morada". Este “não ser digno”, significa que a Eucaristia é também oferecida à
nossa fragilidade. Além disso, se a graça é a amizade com Deus, Deus nos
oferece a sua amizade por meio dos sacramentos. Mas não esqueçamos que as relíquias do pecado permanecem ainda na pessoa
que celebrou o sacramento da reconciliação.
O que é afirmado no documento sobre a
reconciliação, parece fruto de uma visão pré-conciliar, concorda?
Giuseppe Lorizio: Só que pior ainda; em um
ponto significativo do capítulo 12 do Decreto sobre a reconciliação do Concílio
de Trento – e, portanto, estamos em plena tradição – afirma-se que ninguém pode ter a certeza absoluta de ser
agraciado ou predestinado, o que significa que ninguém pode considerar-se em
uma situação de "certeza" no que diz respeito à graça. O Papa,
com Amoris laetitia, engaja-se nessa
tradição. Quem diz o contrário, como transparece no documento, evidencia um
problema de imperícia teológica.
E a parte final sobre o Modernismo e Lutero?
Giuseppe Lorizio: Não é possível liquidar
de forma tão trivial enormes questões históricas. Hoje as pesquisas nos
ofereceram uma compreensão mais profunda da teologia de Lutero, e temos muitos
mais documentos para enquadrar a questão do Modernismo, de forma que ventilar esses fantasmas neste momento
significa estar fora da história e ignorar o fruto das pesquisas mais recentes.
No entanto, com base em tais conhecimentos
instáveis, atribuem-se ao Papa posições heréticas.
Giuseppe Lorizio: Estamos no paradoxo. O certificado de heresia não é dado pelos
teólogos e estudiosos. Eventualmente, quem o dá é o magistério. Aqui
estamos diante de um confronto improvável, o
"magistério" desses supostos doutores sobrepõe-se ao magistério
eclesial. Um teólogo ou um grupo de teólogos pode expressar um parecer, não
acusar de heresia. A Exortação
pós-sinodal tem uma qualificação de magistério ordinário e, portanto, deve ser
acolhida como tal, não é a posição de uma escola teológica. É a expressão
de um percurso de Igreja. Como pode ser ignorado? Como é possível ignorar que a intenção da Exortação é primordialmente
pastoral.
Oferece uma visão
do amor como fundamento do casamento que vai além de uma análise normativa.
E dizendo que é pastoral, não estamos dizendo que se trata de um nível inferior
em relação à teologia. Estamos dizendo exatamente o contrário, porque a pastoral compreende e inclui a teologia.
E não o oposto. Caso contrário, o cristianismo seria uma espécie de
intelectualismo, justamente o que o Papa afirma que quer evitar.
Traduzido do italiano por Luisa Rabolini.
Essa “correção” gera “dúvidas”
Sandro Magister
Settimo
Cielo
29-09-2017
Comentário de um filósofo do
direito, questionando aquilo
que os autores escreveram
Francesco
Arzillo é magistrado administrativo em Roma e estudioso de
filosofia e direito. Seu comentário a correctio dirigida ao Papa
Francisco, por sete heresias das quais este teria se tornado propagador, soa
como o início deste diálogo sobre a interpretação da Amoris Laetitia que o secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, definiu, ontem, como “importante também
dentro da Igreja”.
Abaixo, segue o artigo de Francesco Arzillo.
Algumas perguntas antes de falar de heresia
1. A publicação de uma
“correctio” formal dirigida ao Papa suscita diversas interrogações
É possível corrigir os corretores? A tradição
especulativa medieval nos diz que sim. Basta pensar no famoso Correctorium fratris Thomae de William de la Mare, por sua vez respondido por vários Correctoria corruptorii, obra de
diversos autores.
Diante de um ato
tão grave e singular, que supera com audácia o fosso que separa o dubium do julgamento em uma matéria tão
delicada, é possível se limitar, agora, a algumas perguntas relacionadas às
sete propostas consideradas como “falsas e heréticas” e as supostas
correspondências que emergem da leitura de todo o texto.
2. Comecemos com duas questões
de método
2.1.
Em primeiro lugar, as propostas
individualizadas como heréticas já parecem constituir o fruto de uma
hermenêutica das declarações e dos documentos papais, além das –
cumulativamente – ações e omissões atribuídas ao mesmo. Trata-se, por assim
dizer, de propostas “de segundo grau”.
A primeira pergunta é, por conseguinte, dupla:
*
Por que não se reproduziram, na parte central do texto formulada em latim,
direta e exclusivamente, as propostas originais dos textos papais?
* No caso de
que as propostas façam referência também aos comportamentos ativos e omissos do
Papa, proporcionou-se uma demonstração suficiente sobre a congruência das
mesmas em relação a tais comportamentos?
2.2.
A segunda pergunta é:
* A
qualificação como heresia é considerada, aqui, em seu sentido próprio, concernente
às doutrinas que requerem o assentimento da fé teologal (doutrinas de fide credenda), segundo o can. 750, parágrafo 1 do Código de Direito Canônico?
* Ou
os redatores pretendem atribuir a qualificação de “heresia” também às
afirmações que contrastam só com as doutrinas de fide tenenda, segundo o can. 750, parágrafo 2 do Código, entre as
quais, de acordo com a nota doutrinal ilustrativa da Congregação para a
Doutrina da Fé anexa ao Motu proprio de 1998 Ad tuendam fidem, é preciso incluir também não poucas
verdades de ordem moral? E, em caso
positivo, como se justificaria esta qualificação, que não parece estar de
acordo com as indicações da própria nota?
3. Procedamos, agora, com as
seguintes perguntas ao pé da página, presentes nas setes propostas definidas
“falsas e heréticas”
1) “Uma
pessoa justificada não tem a força, com a graça de Deus, para seguir as
exigências objetivas da lei divina, como se qualquer um dos mandamentos de Deus
fosse impossível para os justificados; ou como significando que a graça de
Deus, quando produz a justificação do indivíduo, não produz invariavelmente, e
de sua própria natureza, a conversão de todo o pecado grave, ou não é
suficiente para a conversão de todo pecado grave”.
Em
que ponto de seu ensinamento o Papa fala de impossibilidade de observar os
mandamentos por parte de quem está justificado?
Com isto, faz-se referência a uma impossibilidade
absoluta ou a uma dificuldade concreta mais ou menos grave, ainda que seja
temporal?
As duas hipóteses são equiparáveis em relação à
doutrina exposta no capítulo 11 do decreto sobre a justificação do Concílio de
Trento?
2) “Os
católicos que obtiveram o divórcio civil do cônjuge com o qual estão
validamente casados e contraíram um matrimônio civil com alguma outra pessoa,
durante a vida de seu cônjuge, e que vivem more
uxorio com sua parceira(o) civil, e que escolhem permanecer neste estado
com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento da
vontade do ato, não estão necessariamente em um estado de pecado mortal, e
podem receber a graça santificante e crescer na caridade”.
3) “Um
crente católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e optar por
violá-la voluntariamente em uma matéria grave, mas não estar em um estado de
pecado mortal como resultado deste ato”.
Considerando que no n° 305 da Amoris Laetitia se diz que “por causa dos condicionamentos ou
fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva
de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –,
possa viver na graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de
graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, em que sentido esta passagem refletiria as
afirmações presentes nas propostas “heréticas” 2 e 3, ao passo que parece, ao
contrário, contradizê-las certamente, com referência ao requisito da
culpabilidade subjetiva?
Além disso, em que outra passagem de seus
documentos ou discursos o Papa afirmou que tais cristãos, em presença da plena
consciência da natureza de sua ação e com plena posse da vontade, não estariam
em pecado mortal?
4) “Uma
pessoa, enquanto obedece uma proibição divina, pode pecar contra Deus por meio
deste mesmo ato de obediência”.
De onde saiu esta proposta, formulada nestes
termos?
5) “A
consciência pode julgar verdadeira e corretamente que os atos sexuais entre
pessoas que contraíram um matrimônio civil entre si, ainda que um, ou ambos,
esteja sacramentalmente casado com outra pessoa, às vezes, podem ser moralmente
corretos ou reivindicados ou, inclusive, mandados por Deus”.
Como se relaciona esta proposta com a da Amoris Laetitia, n° 303, na qual se lê:
“Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não responde
objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com
sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se
pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação
que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites,
embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo”?.
Trata-se de uma diversidade só linguística ou de
tipo expressivo, ou também de uma diversidade no conteúdo?
6) “Os
princípios morais e as verdades morais contidas na revelação divina e na lei
natural não incluem proibições que condenam absolutamente certos tipos de atos,
porque são sempre gravemente ilícitos por causa de seu objeto”.
A afirmação da Amoris
Laetitia n° 304, segundo a qual “é verdade que as normas gerais apresentam
um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não
podem abarcar absolutamente todas as situações particulares”, verdadeiramente, contradiz sob qualquer
aspecto a doutrina do intrinsece malum?
Isto ocorre ali onde se tem em conta, ao avaliar as
situações particulares, os perfis pertinentes à culpabilidade subjetiva, que
enquanto tais não se fixam no objeto das ações?
7) “Nosso Senhor Jesus
Cristo quer que a Igreja abandone sua antiquíssima disciplina de negar a
Eucaristia aos divorciados e novamente casados, e de negar a absolvição aos
divorciados e novamente casados que não expressem nenhuma contrição, nem o
firme propósito de reparar seu atual estado de vida”.
A intenção, aqui, é dizer que o abandono da
disciplina (entendida como disciplina canônica) subsiste também onde se recorra
à clássica probata praxis in foro interno, reconsiderada à luz das
indicações da Amoris Laetitia, no que concerne à absolvição na confissão?
No que concerne à Eucaristia, qual é a relação,
segundo a “mens” dos redatores da correctio,
aos fins que aqui interessam, entre a noção de “pecado mortal” e a noção de
“pecado grave manifesto” do artigo 915 do Código de Direito Canônico, tal como
é interpretada pela Declaração sobre a admissibilidade à Sagrada Comunhão dos
divorciados em segunda união do Pontifício Conselho para os Textos
Legislativos, publicada no ano 2000?
4. As perguntas que se sugerem
aqui não esgotam o tema
Espera-se que provoquem subsequentes reflexões nos
autores da correctio e naqueles que
desejam compartilhar sua proposta, sem nem sequer imaginar a enorme
complexidade das questões em jogo, quando se utiliza a palavra “heresia”, sobretudo quando se aplica
aos textos do magistério.
De qualquer modo, é preciso animar o fiel católico
que presta a necessária “anuência religiosa do entendimento e da vontade” (can.
752) ao magistério ordinário papal, em cujo âmbito entra também Amoris Laetitia, para que se mantenha em
uma disposição de espírito positiva.
Para o restante, a questão da interpretação e a
aplicação deste texto terá futuros desenvolvimentos e contribuições por parte
de pastores, teólogos e fiéis.
Como
também não se deve excluir a possibilidade de posteriores – talvez desejáveis –
intervenções da sede petrina, em um futuro mais ou menos próximo.
Traduzido pelo Cepat.
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