Que catolicismo é esse?
“A ascensão das forças de direita no catolicismo
é uma cruel decepção”
Entrevista com Henri Tincq
Ex-cronista
religioso do jornal francês «Le Monde»
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HENRI TINCQ |
Bernadette
Sauvaget
Libération
02-04-2018
O ex-jornalista especializado em questões
religiosas no Le Monde explica seu desânimo com a evolução da Igreja. Ele deplora a estigmatização dos “católicos de
esquerda” e a ascensão dos
“católicos intransigentes”, muitas vezes próximos à extrema direita.
A eleição presidencial de 2017 revelou um
fato importante: o catolicismo francês é
cada vez mais poroso às ideias da extrema direita. Ex-cronista religioso do
Le Monde, Henri Tincq alarma-se em seu último livro, La Grande Peur des Catholiques de
France [O Grande Medo dos Católicos da França] (Éditions Grasset). Esse
mundo católico, que se tornou minoritário, é atravessado por dúvidas, muito
dividido desde a oposição frontal conduzida pelo movimento La Manif pour tous contra a Lei Taubira.
Eis a entrevista.
Você é um católico ferido?
Henri
Tincq: Em
parte, sim. Eu não reconheço mais a Igreja da minha juventude, o catolicismo em
que fui educado, onde militava quando era jovem e sobre o qual escrevi muito no
início da minha carreira como jornalista. Era um catolicismo social, aberto, generoso, missionário, ecumênico, que
buscava o diálogo com outras religiões e com o mundo ateu. A ascensão das
forças de direita, e até de extrema direita, no catolicismo francês é uma cruel
decepção. Ela se traduz em reflexos identitários, neoconservadores, que
desfiguram a história e o patrimônio da Igreja em nosso país.
Em 2017, a eleição presidencial foi um choque?
Henri
Tincq: Um
choque, sim. Um de cada dois católicos
praticantes votou em François Fillon no primeiro turno. Não havia,
portanto, uma moralidade, digamos, “duvidosa” quanto à sua relação com o
dinheiro? Mas, no segundo turno, quatro
de cada dez católicos praticantes votaram em Marine Le Pen. O que é
surpreendente é que entre os dois turnos, o
episcopado não ousou pronunciar-se explicitamente para que os eleitores
católicos vetassem Marine Le Pen. Isso é uma novidade. Eu me lembro das
repetidas, fortes e combativas declarações dos cardeais Jean-Marie Lustiger e Albert
Decourtray nos anos 80 e 90 contra a Frente Nacional e as advertências do
episcopado contra o voto em Jean-Marie Le Pen nas eleições presidenciais de
2002.
Existe uma radicalização católica?
Henri
Tincq: Eu
não uso muito a palavra “radicalização”, mais reservada às evoluções que há no
Islã. Eu prefiro falar em “intransigência”,
em “catolicismo intransigente”. Esse
é o termo que os historiadores usam para descrever o catolicismo no século XIX
e começo do século XX, contrário a qualquer adaptação às evoluções da sociedade
moderna. O intransigentismo foi
conceituado por Emile Poulat, grande
historiador e sociólogo, para descrever a luta dos católicos contra as ideias
da Revolução, dos Direitos Humanos e da República.
Eu tenho medo de uma espécie de filiação entre esse catolicismo
“intransigente” do passado e o catolicismo “identitário” de hoje. Ele é
jovem, assenta-se sobre um CLERO JOVEM que quer reafirmar mais contundentemente
as raízes e os valores católicos. Não devemos confundi-los com os
“tradicionalistas”, herdeiros do bispo cismático francês Marcel Lefebvre
(1903-1991), que rejeitaram o legado modernista do Concílio Vaticano II. Mas a fronteira é cada vez mais porosa entre
esse novo catolicismo intransigente e os tradicionalistas em processo de
reconciliação com o Vaticano.
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Tradução do título da obra de Henri Tincq: "O Grande Medo dos Católicos da França" |
Uma das contribuições do seu livro é enfatizar o vigor
desse catolicismo integrista. Houve algum erro de apreciação a seu respeito?
Henri
Tincq: Em
1988, eu participei, como jornalista do Le
Monde, em Ecône, na Suíça, da ordenação ilegal de bispos pelo bispo
Lefebvre, líder dos integristas católicos. Ao lado de muitos outros
observadores, eu dizia para mim mesmo que esse pequeno movimento contrário a
qualquer evolução da Igreja e do Concílio Vaticano II acabaria como uma pequena
seita. Não foi exatamente isso que aconteceu. E é uma surpresa para mim. Este pequeno mundo integrista fez mais do
que resistir. Ele continuou a prosperar. Os “lefebvristas” têm 600 padres ao redor do mundo, a grande maioria
dos quais estão na França. Atualmente, eles
têm mais de 200 seminaristas. Este número deve ser comparado com o dos 650
seminaristas somente na formação atualmente nas dioceses clássicas da França. A
Igreja está perdendo muitos sacerdotes. Mas os tradicionalistas e as comunidades católicas, chamadas “novas”, que
são próximas a eles, dispõem de tropas jovens e determinadas.
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MARINE LE PEN Candidata em 2017 à presidência da República na França do partido ultradireitista "Frente Nacional" |
Quais são as características desse novo
“intransigentismo” católico que você vê surgir na França?
Henri
Tincq: Eu
distingo essencialmente três. Esse
catolicismo “neoconservador” desafia fortemente a hegemonia cultural e moral da
esquerda. Nós vimos isso no La Manif
pour tous. Essa não foi apenas uma contestação da Lei Taubira e dos casais
gays, mas um questionamento mais global do modelo cultural de uma esquerda considerada por eles “laxista”
e até “imoral”. Prossegue com os projetos de expansão da procriação
medicamente assistida (PMA) e da gestação subrogada (GPA) [barriga de aluguel].
A segunda característica diz respeito ao
islamismo. Esses católicos
neo-intransigentes questionam a tradição de diálogo que a Igreja sempre quis
ter com o mundo muçulmano. Eles estão em clara oposição ao Papa Francisco,
que diz e reitera a necessidade de acolher os refugiados. Também a laicidade é
cada vez mais um tema de discórdia. Esses
neoconservadores acreditam que a reafirmação da laicidade foi longe demais.
Vemos isso, por exemplo, na questão das creches, na proibição de ostentar
cruzes em prefeituras, como em Ploërmel, ou nos cemitérios.
Em seu livro, você se
insurge contra o que está acontecendo com os “católicos de esquerda”. Por quê?
Henri
Tincq: Acredito
que estamos perdendo um legado que não diz respeito apenas ao catolicismo, mas
a toda a sociedade francesa: dos católicos liberais, muito minoritários no
século XIX, dos católicos sociais, dos “abades democratas”, dos católicos
resistentes sob a Ocupação. Após um século de batalhas, os católicos franceses
“aproximaram-se” da República. E para
alguns, eles se tornaram os motores da luta pós-guerra pela liberdade e a
democracia, ativos na reconstrução da França.
Na época, o sindicalismo cristão era
tão poderoso quanto a CGT. Edmond
Mayor, Jacques Delors e Michel Debatisse passaram pelos
movimentos de ação católica. Esses “católicos
de esquerda” realizam uma ligação óbvia entre o seu compromisso de fé e o dever
de agir na sociedade pelo seu progresso. Como podemos ignorar esse legado?
E desacreditar este catolicismo sob o pretexto de que alguns estavam próximos
do mundo operário e das formações marxistas?
Esses católicos de esquerda desapareceram? Ou são
inaudíveis?
Henri
Tincq: O envelhecimento do catolicismo francês
afeta particularmente esses católicos ditos de esquerda. Eles não representam
mais as forças militantes do passado. Eles
tiveram que enfrentar duas grandes frustrações. A primeira está relacionada
aos pontificados de João Paulo II e
Bento XVI, durante os quais esses católicos viram o descenso do grande
fôlego do Vaticano II. A segunda é o resultado dos fracassos da esquerda,
incluindo a “segunda esquerda” rocardiana [referência a Michel Rocard, falecido em 2016] próxima a eles, que não respondeu
às suas esperanças.
No entanto,
estes “católicos de esquerda” continuam ativos na vida das paróquias e das
associações,
cada vez mais engajados em formas militantes muito concretas: a reinserção dos
desempregados, a acolhida dos refugiados, o apoio à moradia social, a luta
contra a precariedade. É um compromisso
discreto, mas próximo da realidade dos sofrimentos, a serviço de uma transformação
concreta da sociedade. São formas de ação muito louváveis, que nada têm a
ver com o ativismo e o triunfalismo da Igreja de outrora, e com as quais,
pessoalmente, concordo e me tranquilizam.
Traduzido do
francês por André Langer. Acesse a
versão original, clicando aqui.
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