Pode-se viver no caos?
“Aprender a viver no caos pode não ser tão nocivo”
Manuel
Castells
Sociólogo
e referência em teoria da comunicação,
é
professor emérito da Universidade da Califórnia em Berkeley
O texto abaixo integra “Ruptura”,
novo livro do sociólogo espanhol
que a Zahar lança neste mês. Nele, o
autor sustenta que a
antiga ordem político-institucional
foi superada e afirma que
aprender a viver no caos talvez não
seja tão nocivo
No lo que pudo
ser:
Não o que pude ser:
es lo que fue. é
o que fui.
Y lo que fue
está muerto.
E o que fui está morto.
Octavio Paz, “Lección de Cosas”, 1955
![]() |
MANUEL CASTELLS Sociólogo espanhol |
Em tempos de incertezas costuma-se citar Gramsci quando não se sabe o que dizer.
Em particular, sua célebre assertiva de que a velha ordem já não existe e a nova ainda está para nascer. O que
pressupõe a necessidade de uma nova ordem depois da crise.
Mas
não se contempla a hipótese do caos. Aposta-se no surgimento dessa nova ordem
de uma nova política que substitua a
obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em
todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar:
a mente dos cidadãos.
A
crise dessa velha ordem política está adotando múltiplas formas:
* A subversão das
instituições democráticas por caudilhos
narcisistas que se apossam das molas
do poder a partir da repugnância das pessoas com a podridão institucional e a
injustiça social;
* a manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de
serpentes;
* a renovação aparente e transitória da representação política através
da cooptação dos projetos de mudança;
* a consolidação de máfias no poder e de teocracias fundamentalistas,
aproveitando as estratégias geopolíticas dos poderes mundiais;
* a pura e simples volta à brutalidade irrestrita do Estado
em boa parte do mundo, da Rússia à China, da África neocolonial aos
neofascismos do Leste Europeu e às marés ditatoriais na América Latina.
E,
enfim, o entrincheiramento no cinismo
político, disfarçado de possibilismo
realista, dos restos da política partidária como forma de representação.
Uma lenta agonia daquilo que foi essa ordem política.
De
fato, a ruptura da relação institucional
entre governantes e governados cria uma situação caótica que é
particularmente problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa
existência como espécie no planeta azul. Isso
no momento em que se questiona a habitabilidade deste planeta a partir da
própria ação dos humanos e de nossa incapacidade de aplicar as medidas
corretoras, de cuja necessidade estamos conscientes.
E
no momento em que nosso extraordinário
desenvolvimento tecnológico entra em contradição com nosso subdesenvolvimento
político e ético, pondo nossas vidas nas mãos de nossas máquinas.
E
em que as condições ecológicas nas megalópoles, que concentram uma proporção
crescente da população mundial, podem provocar, e de fato provocam, pandemias
de todo tipo, que se transformam em mercado para as multinacionais farmacêuticas, esse malévolo poder que raptou e deformou a ciência da vida para seu
exclusivo benefício.
Um
planeta no qual a ameaça de um
holocausto nuclear continua vigente pela
loucura de endeusados governantes sem controle psiquiátrico. E no qual a
capacidade tecnológica das novas formas de guerra, incluída a ciberguerra,
prepara conflitos possivelmente mais atrozes do que os vividos no século 20.
Sem que as instituições internacionais, dependentes dos Estados, e portanto da
pequenez de objetivos, da corrupção e da falta de escrúpulos daqueles que os
governam, sejam capazes de pôr em prática estratégias de sobrevivência para o
bem comum.
A ruptura da mistificação ideológica
de uma pseudorrepresentatividade institucional tem a vantagem da clareza da
consciência a respeito de que mundo vivemos.
Mas
nos precipita na escuridão da incapacidade de decidir e atuar porque não temos
instrumentos confiáveis para isso, particularmente no âmbito global em que
pairam as ameaças sobre a vida.
A
experiência histórica mostra que do fundo da opressão e do desespero surgem,
sempre, movimentos sociais de diferentes formas que mudam as mentes e, através
delas, as instituições. Como aconteceu com o movimento feminista, com a
consciência ecológica, com os direitos humanos.
Mas
também sabemos que, até agora, as
mudanças profundas demandaram uma substituição institucional a partir da
transformação das mentes. E é nesse nível, o político-institucional
propriamente, que o caos continua imperando. Daí a esperança, abrigada por
milhões, de uma nova política.
Contudo,
quais são as formas possíveis dessa nova
política? Não estaríamos diante do velho esquema da esquerda, de esperar a
solução mediante o aparecimento de um novo partido, o autêntico transformador que
finalmente seja a alavanca da salvação humana? E se tal partido não existir? E se não pudermos recorrer a uma força
externa àquilo que somos e vivemos para além de nossa cotidianidade?
Qual é essa nova ordem que
necessariamente deve existir e substituir aquilo que morre? Ou será que estamos numa
situação historicamente nova, na qual nós, cada um de nós, devemos assumir a
responsabilidade de nossas vidas, das de nossos filhos e de nossa humanidade,
sem intermediários, na prática de cada dia, na multidimensionalidade de nossa
existência?
Ah,
a velha utopia autogestionária. Mas
por que não? E, sobretudo, qual é a alternativa? Onde estão essas novas instituições dignas da confiança de nossa
representação?
Auscultei
muitas sociedades nas duas últimas décadas. E não detecto sinais de nova vida democrática por trás das aparências.
Há projetos embrionários
pelos quais tenho respeito e simpatia, sobretudo porque me emocionam a
sinceridade e a generosidade de tanta gente. Mas não são instituições estáveis, não são
protopartidos ou pré-Estados. São humanos agindo como humanos.
Utilizando
a capacidade de autocomunicação, deliberação e codecisão de que agora dispomos
na Galáxia Internet. Pondo em prática o enorme caudal de informação e
conhecimento de que dispomos para gerir nossos problemas. Resolvendo o que vai
surgindo a cada instante. E reconstruindo
de baixo para cima o tecido de nossas vidas, no pessoal e no social.
Utópico?
Utópico é pensar que o poder destrutivo
das atuais instituições pode deixar de se reproduzir em novas instituições
criadas a partir da mesma matriz. E, já que a destruição de um Estado para
criar outro leva necessariamente ao Terror, como já aprendemos no século 20,
poderíamos experimentar e ter a paciência histórica de ver como os embriões de
liberdade plantados em nossa mente por nossa prática vão crescendo e se
transformando.
Não
necessariamente para constituir uma ordem nova. Mas sim, quem sabe, para configurar um caos
criativo no qual aprendamos a fluir com a vida, em vez de aprisioná-la
em burocracias e programá-la em algoritmos. Dada nossa experiência
histórica, aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto
conformar-se à disciplina de uma ordem.
L I V R O
Título:
RUPTURA
Autor:
Manuel Castells
Tradução:
Joana Angélica D'Avila Melo
Editora:
Zahar
Preço:
R$ 39,90 (152 págs.)
Comentários
Postar um comentário