6º Domingo da Páscoa – Ano C – Homilia
Evangelho: João 14,23-29
Naquele
tempo, disse Jesus a seus discípulos:
23 «Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o
amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.
24 Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra
que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou.
25 Isso é o que vos disse enquanto estava convosco.
26 Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu
nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.
27 Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o
mundo. Não se perturbe nem se intimide o vosso coração.
28 Ouvistes que eu vos disse: “Vou, mas voltarei a vós”. Se
me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que
eu.
29 Disse-vos isto, agora, antes que aconteça, para que,
quando acontecer, vós acrediteis.»
Adroaldo Palaoro
Sacerdote jesuíta
Deus não é nosso hóspede, mas a essência de nosso ser
Continuamos
com o discurso de despedida de Jesus,
depois da Última Ceia. O tema do domingo passado era o amor manifestado na entrega aos demais.
Terminávamos dizendo que esse amor era a expressão de uma experiência interior,
relação com o mais profundo de nós mesmos que é Deus.
Hoje o
evangelho nos fala do que significa essa
vivência íntima. A Realidade que somos, é nosso verdadeiro ser. O verdadeiro Deus não é um ser separado que
está em alguma parte da estratosfera, mas o fundamento de nosso ser e de
cada um dos seres do universo. Tudo está admiravelmente condensado e expresso
nesta frase com a qual se inicia o evangelho de hoje: “viremos a ele e faremos nele
nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus, no sentido mais
profundo que possamos imaginar.
Quem toma
consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo
Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a unidade com
todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus
e Jesus são o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa
identidade mais profunda. Deus Trindade abraça e se expressa em toda a
realidade; habita tudo e em tudo se manifesta; envolve tudo e em tudo está
presente. É o que experimentaram e proclamaram os místicos: “Meu Eu é Deus e
não reconheço outro Eu que a Deus mesmo” (Santa Catarina de Gênova).
São João da Cruz escreve: “A alma mais parece Deus que alma, e ainda é
Deus por participação”.
Não se trata, portanto, de que Deus habite unicamente
naqueles
que cumprem a palavra de Jesus, num retorno
à religião dos méritos e das recompensas.
Deus habita
já todos os seres:
nada poderia existir “fora” d’Ele. Tudo é morada de Deus.
Segundo Santo Inácio “Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a
vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida
intelectiva. Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o
entender. E também fazendo de mim o seu templo” (EE. 235).
Tudo está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é
profano.
Deus não
permanece exterior a nós, mas habita no
mais profundo de cada um; somos o que somos devido à presença de Deus em
nós.
A dignidade e o significado último de cada ser humano
não provêm dele mesmo,
mas da presença de
Deus em seu interior.
Além disso,
nós nunca estamos fora de Deus. Tudo
que somos e temos é manifestação de sua força, bondade e amor. Com-viver com
Deus tem sempre algo de aventura que assusta e encanta. É a chamada
“experiência numinosa”.
Pois, Deus e o ser humano não são adversários,
mas “diferenças que se amam”.
Por isso,
ao abraçarmos cada pessoa, estaremos tomando nos braços não apenas os seus
limites, fragilidades e sombras, mas também o seu infinito mistério: Deus
mesmo.
Igualmente, distanciar-se
do outro é expulsar-se de Deus,
e quem se fecha à
novidade do outro,
inevitavelmente
limita a ação do Criador no próprio interior.
E para onde
quer que olhemos, lá está Ele: silencioso, como nosso próprio mistério. Está
presente na distante profundeza do universo como suprema fecundidade e nosso
Pai, na proximidade dos seres humanos como humildade e nosso irmão, em nós
mesmos como sentido e o vigor que nos faz viver.
Jesus viveu uma profunda identificação com o Pai que não
podemos expressar com palavras. “Eu e o Pai somos um”. Nós também
somos chamados a viver essa mesma identificação. Fazer-nos uma coisa só com Deus, que é presença e que não está em
nós como hóspede agregado que chega e sai, mas como fundamento de nosso ser,
sem o qual nada pode existir em nós. Essa presença de Deus em nós não altera em
nada nossa individualidade. Nós somos
totalmente nós mesmos e totalmente de Deus. Viver esta realidade é o que
constitui a plenitude do ser humano.
Uma coisa é
a linguagem e outra a realidade que queremos manifestar com ela. Deus não tem que vir de nenhum lugar para
estar no mais profundo de nosso ser. Está aí desde antes de existirmos. Não
existe “alguma parte” onde Deus possa estar, fora de nós e do resto da criação.
Deus é Aquele que torna possível nossa
existência. Somos nós que estamos fundamentados n’Ele desde o primeiro
instante do nosso existir. Deus já não é esse Outro ao qual temos que ir ou
esperar que venha, senão que forma parte de nossa realidade, um espaço do qual
podemos nos diferenciar, mas não separar.
Descobri-Lo em nós, tomar consciência dessa presença,
é como se Ele viesse a nós. Esta verdade é a fonte de toda experiência
espiritual.
Os místicos
ousam dizer: “temos Deus dentro de nós; é
tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade”.
Aqui está a
grande novidade da mensagem e da experiência de Jesus: revelar que o lugar da
presença de Deus é o ser humano. Ele é experimentado dentro de
nós; mas também é preciso descobri-Lo
dentro de cada um dos outros seres humanos. A presença surge de dentro e
nos sensibiliza a percebê-Lo no outro.
“Deixar Deus ser Deus em nosso interior”
significa entrar no fluxo da dinâmica divina, ou seja, viver encontros
divinizados, sendo presença divinizada, expressando palavras e atos divinizados...
A presença
de Deus em nosso interior fica atrofiada quando nossa vida é carregada do
veneno do preconceito, da intolerância, do julgamento, da suspeita e do medo do
diferente. É justamente essa presença divina no eu profundo que nos diferencia
e nos torna originais. Encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é
fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para
acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele
é morada da Trindade.
O Espírito é o garantidor dessa presença dinâmica do
Pai e de Jesus em nós: “Ele vos
ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. O verdadeiro
Mestre – nosso “mestre interior” – que nos irá conduzindo até a verdade é o
Espírito de Deus, que se expressa no mais profundo de todo ser humano. É a
“voz” de Deus em nós, à qual temos acesso a partir da abertura e
disponibilidade interior.
O teólogo Schillebeeckx afirmou: “Se pudesse tirar de mim o que há de mim,
ficaria Deus; se pudesse tirar de mim o que há de Deus, ficaria nada”.
Ao nos
reconhecermos nessa morada interior, podemos receber a paz da qual fala Jesus;
não só isso: descobrimos que somos Paz. Não é a “paz do mundo”, que sempre será
oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas as situações da vida,
porque estamos ancorados naquilo que realmente somos.
O “shalom” judaico é muito mais rico que
nosso conceito de paz; mas o evangelho de João acrescenta um “plus” de
significado sobre o já rico significado judaico.
A paz, de
que fala Jesus, tem sua origem no interior de cada um. É a harmonia total, não
só dentro da pessoa, mas com os outros e com a criação inteira.
Corresponde
ao fruto primeiro das relações autênticas em todas as direções; expressa a
consequência do amor que é Deus em cada um, descoberto e vivido. A paz não é buscada diretamente; ela é
fruto do amor. Só o amor, ativado e
manifestado no próprio interior, conduz à paz verdadeira. Poder-se-ia dizer
que esta “paz” não é algo diferente do Espírito. É a paz de quem permanece ancorado
em sua identidade profunda, sem identificar-se com os altos e baixos das
circunstâncias, nem perder-se com o “vai-e-vem” da mente.
É a paz que
supera toda razão, porque nasce de um “lugar” que está mais além da razão, mais
além da mente, na compreensão do Mistério que somos, e que não se vê afetado
pelo que ocorre em nosso eu.
Para meditar na oração
Considerar,
como devo, de minha parte, amar as
pessoas de tal maneira que me faça transparente, para que através de mim os outros possam conhecer
quem é Deus.
-
Eu devo deixar “transparecer” a imagem
de Deus, através da bondade, justiça, serviço... Deus “habita em mim”, deixando suas pegadas; através delas sou
movido a dar testemunho de quem é Deus.
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