Como a ciência explica o ódio eleitoral
Somos mais intolerantes do que admitimos
Rodrigo da
Silva
Editor do
site Spotniks e autor do livro
“Guia
politicamente incorreto da política brasileira” (LeYa, 2018)
Fomos programados para sentir prazer
quando alguém
repete nossas crenças. Num mundo
dividido em bolhas,
esse é um belo atalho para o
obscurantismo
As
pesquisas de rejeição deixam claro: Jair
Bolsonaro e Fernando Haddad são odiados.
Quem vota em um rejeita total e
absolutamente o outro. Para entender exatamente por que isso acontece, não
tem outro jeito. Precisamos esquecer por alguns instantes os valores e planos
de governo de cada um e focar num objeto inquestionavelmente mais complexo: nosso cérebro. E ele traz à tona
uma resposta incômoda, a de que somos
mais intolerantes do que admitimos.
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Publicado no Brasil pela Editora Record, em setembro de 2018 |
É o
que aponta o neurocientista americano
Joshua Greene, de Harvard, em seu livro Tribos
Morais – A Tragédia da Moralidade do Senso Comum. Greene defende um pilar
da psicologia evolutiva: o de que nosso
cérebro não foi projetado para encarar a tarefa de viver em grupos complexos.
Nossos instintos não toleram a ideia de conviver com quem pensa de forma
distinta – muito menos oposta.
A evolução nos conduziu para
a vida tribal. Entenda “tribal” não como algo primitivo, mas como uma família
estendida. Fomos programados para
conviver em grupos pequenos, com indivíduos que encaram a vida de uma forma
parecida com a nossa – que comungam das mesmas crenças, hábitos e valores.
Quem não comungasse era um inimigo, um predador humano, alguém pronto para
roubar sua comida e matar você ao longo do processo.
Foi
dessa forma que organizamos nossa vida coletiva por centenas de milhares de
anos. O cérebro criou mecanismos para
proteger os laços tribais. Um deles é o “viés de
confirmação”:
Somos recompensados com
pequenas doses de dopamina, o neurotransmissor do prazer, cada vez que ouvimos
alguém repetir crenças e valores iguais aos nossos. Isso indica que o sujeito é
um membro em potencial da sua família estendida. Alguém que irá lhe proteger.
Por
volta de dez mil anos atrás o mundo
começou a ficar melhor, e menor. A agricultura, o comércio e as primeiras cidades nos obrigaram a
conviver com outras tribos, outras famílias estendidas, que
cultivavam valores distintos.
Era
uma vitória do neocórtex, a parte mais complexa
do cérebro – que nos difere basicamente de qualquer outro animal. Graças a ele conseguimos manter os
instintos na rédea curta e conviver de forma civilizada (não é à toa que a
palavra “civilizada” vem de “cidade”).
Mas
esses dez mil anos não bastaram para reprogramar a massa cinzenta. Como diz Steven Pinker, colega de Greene em
Harvard, nossos cérebros jamais saíram
para valer das cavernas. O viés de confirmação segue firme. E os predadores
humanos só mudaram de nome. Para quem vota em Haddad, esses predadores foram
batizados como “bolsominions” e “fascistas”. Para quem vota em Bolsonaro,
eles atendem por “petralhas”, “comunistas”.
Algumas
diferenças, de acordo com Greene, são menos conciliáveis que outras. As “tribos
morais” de hoje tendem a discordar com mais veemência justamente nos temas que
atiçam nossos instintos primitivos: sexo e morte. A sexualidade alheia gera estresse
basicamente por lidar com um impulso primitivo. Logo, o homofóbico espuma ao falar sobre homossexualidade. E o defensor dos direitos LGBTs também irá
reagir de forma sanguínea se detectar algum sinal de homofobia no discurso
alheio – mesmo que se trate de um alarme falso.
Outro tema que aciona o lado
selvagem é o combate ao crime, pois é algo
ligado ao conceito de morte. Daí o tom alto de quem defende a pena capital,
o fim das políticas de direitos humanos para presidiários, o atirar para matar.
Cada expressão dessas é uma torrente
dopaminérgica para quem compartilha dessas crenças e valores. As reações
são destemperadas do outro lado também. Às vezes, basta não seguir certas
cartilhas de pensamento para virar alvo. Exemplo: quem acha que a prisão não
serve apenas para recuperar o condenado, mas também para puni-lo, pode acabar
tachado de “assassino”.
Se sexualidade e morte
ativam ódios, aborto talvez seja o mais
espinhoso de todos os temas, já que envolve sexo e morte. Desnecessário elencar aqui
os argumentos pró e antiescolha. O ponto é que se trata de um debate que, não raro, decai para a barbárie – o
neocórtex sabe que quem é a favor da legalização do aborto não é “matador de
crianças”; sabe que o povo contra não é “nazista”. Mas o sistema límbico, o pedaço primitivo da massa cinzenta, não sabe de
nada. E parte para o ataque sujo contra quem vai contra a posição da sua
bolha, seja ela qual for.
Para
deixar as coisas ainda piores, agora
temos uma máquina anticivilizatória. Uma ferramenta criadora de bolhas, que nos faz voltar aos tempos
tribais: as redes sociais. Como o algoritmo do seu Facebook,
interessado em vê-lo dedicar longas horas conectado a ele, apresenta conteúdo com base naquilo que você se interessou no passado
– textos que parou para ler, vídeos que assistiu, imagens que curtiu –, a tendência é que ele reforce ideias
preconcebidas, concentrando no seu perfil postagens de páginas e amigos que
replicam conteúdo que em geral você concorda.
Ou
seja, as redes sociais alimentam um
isolacionismo das tribos morais. Nós não estamos apenas ouvindo cada vez
menos uns aos outros, interessados em alcançar exclusivamente o nosso próprio
grupo social; nós também estamos
acirrando os ânimos em relação a quem pensa diferente, reforçando
os nossos preconceitos.
Esse comportamento tribal
enfraquece a nossa capacidade de usar a razão na hora do voto, colocando superstições no centro das nossas
escolhas.
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RODRIGO DA SILVA Autor deste artigo |
A
cada dia que passa, então, nós aumentamos a possibilidade de sermos engolidos
pela histeria, provocados por uma leitura maniqueísta da realidade.
É
nesse cenário que chegamos às eleições presidenciais de 2018 – enviesados pelos códigos morais
excludentes das nossas tribos; influenciados
por apelos estéticos; radicalizados
pela crença de que nossos opositores políticos representam um clã selvagem
inimigo, perfeitamente capaz de destituir as normas que regem a organização de
nossa tribo da noite para o dia.
Bolsonaro
e Haddad representam as principais tribos morais em evidência no País. Salvo
exceções, a vasta maioria de seus eleitores é formada por pessoas absolutamente
normais que frequentam os mesmos postos de trabalho, cruzam as mesmas esquinas
e alimentam os mesmos sonhos sociais. Mesmo assim, cada uma delas afirma defender o lado mais virtuoso dessa
equação.
Entender
as motivações que levam essas
pessoas a essas escolhas – sem a condescendência arrogante da superioridade
moral – passa necessariamente pelo processo de distanciamento das bolhas que condicionam as nossas tribos.
Ouvir não é o bastante – é preciso
colocar-se no lugar do outro.
Caso
contrário, corremos o risco de internalizar de forma inconsciente o mantra
autoritário eternizado por Millôr Fernandes:
«Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim».
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