«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Entendes o que lês?

Sobre interpretações bíblicas na atualidade

Marcus Mareano*

Como qualquer livro antigo, a Bíblia deve ser compreendida no seu contexto histórico e social e considerando os diferentes gêneros literários
e os recursos das línguas e da cultura.
Ícone: o diácono Felipe e o eunuco etíope

Certa vez, um alto funcionário etíope lia um trecho do profeta Isaías. Filipe o encontra e o questiona: “entendes o que lês?” (At 8,30). O etíope, que voltava de Jerusalém, respondeu solicitando ajuda para a compreensão das Escrituras. Filipe explica-lhe o texto à luz do mistério de Cristo e ele pede o batismo. Esse relato se confere em At 8,26-40.

O episódio citado pode ser interpretado como uma metáfora para se refletir sobre a hermenêutica bíblica nos tempos atuais. Ler a Bíblia sempre foi uma tarefa desafiadora. A história das interpretações de vários textos confirma as diferentes possibilidades de compreendê-los e transmiti-los. Inclusive, o tempo também demonstra o quanto leituras errôneas causaram danos, como por exemplo, as “guerras santas”, as cruzadas, a discussão em defesa do geocentrismo, a justificação da escravidão, muitas mortes, a submissão das mulheres aos homens e, mais recentemente, a homofobia. Textos que deveriam libertar oprimiram inúmeras pessoas.

Como qualquer livro antigo, a Bíblia deve ser compreendida:
a) no seu contexto histórico e social,
b) considerando os diferentes gêneros literários e
c) os recursos das línguas e
d) da cultura.
Por isso, o papel do exegeta e do hermeneuta consiste em aprofundar os estudos e a experiência de fé a fim de entender e ensinar as Escrituras para que outros desfrutem das maravilhas dessa literatura e conheçam sua mensagem de salvação, a exemplo de Filipe no encontro com o etíope (At 8,26-40). Assim, as questões contemporâneas podem ser refletidas à luz da Revelação de Deus nas Escrituras, contudo, sem tomar jamais algumas passagens para justificar a própria opinião desconexa do conjunto da Palavra de Deus como dicta probantia [trad.: texto-prova].

Recentemente, assistimos à veiculação de discursos de homofóbicos [contra homossexuais] com aparatos religiosos cristãos. Ora, seria contraditório um discípulo de Jesus pregar a exclusão e o preconceito, pois o próprio mestre anunciou e viveu (por isso sofreu até a morte) a inclusão e a participação de todos no reinado de Deus. No tempo de Jesus, pagãos, mulheres, coxos, leprosos, impuros, prostitutas, publicanos, samaritanos, siro-fenícios e outras classes de pessoas não tinham acesso pleno aos ensinamentos de Deus por meio daqueles mestres da lei. Jesus, ousadamente, opta por essas pessoas e as considera em seu seguimento e como anunciadoras da Boa-Nova. Tais pessoas formaram as primeiras comunidades cristãs cuja mensagem chegou até nós séculos depois.

Na antiguidade, embora a homossexualidade já existisse, os autores bíblicos não compreendiam o fenômeno como nós podemos saber atualmente e desconheciam a diversidade sexual e de gênero que há no momento. O tema da homossexualidade não ocorre muitas vezes na Bíblia. Nunca foi assunto principal para as Escrituras. Quando encontramos alguns textos, eles abordam a homossexualidade masculina e algumas vezes de forma aludida.

Como já apresentei em uma entrevista ao Dom Total, no Antigo Testamento, o episódio de Sodoma e Gomorra (Gn 19,1-19) condena mais a violência e o desprezo pelo estrangeiro do que a relação homossexual, por isso, quando outras passagens do Antigo Testamento se referem ao pecado de Sodoma e Gomorra não se menciona a homossexualidade (Is 1,9-10; 3,9; 13,19; Jr 49,18; 50,40; Ez 16,49-50; Am 4,11; Mt 10,15; 11,23-24; Lc 17,28). Ainda no Antigo Testamento, os textos de Lv 18,22 e 20,13 devem ser lidos com os capítulos completos para compreender que os versículos se inserem em um conjunto de normas sobre a “santidade” do povo de Israel, que consistia, dentre outras coisas, em se manter distante dos outros costumes para afirmar a própria identidade religiosa e cultural. Logo, a preocupação era primeiramente religiosa e cultual antes do que moral (Lv 18,1-4; 20,1-2).

Igualmente, as passagens do Novo Testamento (Rm 1,26-31; 1Cor 6,9-10; 1Tm 1,9-10) podem ser melhor compreendidas quando pensamos no contexto de Paulo. Ele conhecia os costumes dos pagãos decorrentes da religião do Império Romano e queria reafirmar a vivência da fé cristã (um grupo minoritário naquele tempo). Esses textos querem mais apresentar a maneira de ser dos cristãos em relação aos pagãos do que distinguir o homossexual do heterossexual.

À propósito do texto no qual se lê literalmente: “Deus criou homem e mulher” (Gn 1,27), não indica que os homens e as mulheres criados por Deus sejam heterossexuais e cisgêneros. Os diferentes da heteronormatividade majoritária são igualmente criação de Deus e, como tal, chamados à participação de sua glória com os dons próprios trazidos de sua sexualidade. Se Deus rejeitasse essas pessoas (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais etc.), ele não seria o amor revelado na vida de Jesus.

Jesus, no seu tempo, viveu um embate com os fariseus, escribas e mestres da lei por causa da interpretação e vivência das Escrituras (Mt 23,1-36). Aqueles religiosos se apegavam aos preceitos menores e, com isso, causavam mal a muitas pessoas, esquecendo-se do essencial:
* a justiça,
* a misericórdia e
* a fidelidade (Mt 23,23).
Não muito diferente nos nossos dias, alguns grupos pequenos fazem um rouco barulho para condenar cristãos e cristãs que se propõem a viver o Evangelho. Os hipócritas, os insensatos, as serpentes, os sepulcros caiados, as raças de víboras da atualidade, como Jesus os chamou (Mt 23,27.33), pretendem diminuir a força do Evangelho que se destina a todas as pessoas (Mt 28,19). Com tantas preocupações externas e periféricas, esquecem-se do interior e do mais importante (Mc 7,14-23).
Pe. Marcus Mareano
Autor deste artigo

Portanto, saibamos buscar e encontrar a presença de Deus misericordioso que se mostra nos textos das Escrituras. Sua Palavra gera amor e fraternidade, não ódio, divisões e rixas. Não é à toa que o episódio de Filipe com o etíope acontece após relatos de perseguição de um fariseu à comunidade cristã (At 8,1-3) e expansão da mensagem cristã para territórios fora da Judeia (At 8,4-25). Novos desafios geram novas estratégias de desenvolvimento e novas modalidades de trabalho.

 Os escribas e fariseus do presente com sua ignorância e violência contribuem para reconhecer quem são os verdadeiros seguidores de Jesus. O critério é o amor (Jo 13,35). Conhecemos as árvores pelos frutos. Entendes o que lês?

* MARCUS MAREANO é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Doutor em Teologia pela mesma faculdade e pela Universidade Católica de Lovaina-Bélgica. Presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte (MG). Professor de Teologia da PUC-MG.

Fonte: Dom Total – Religião – Sexta-feira, 23 de novembro de 2018 – Internet: clique aqui.

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