Entendes o que lês?

Sobre interpretações bíblicas na atualidade

Marcus Mareano*

Como qualquer livro antigo, a Bíblia deve ser compreendida no seu contexto histórico e social e considerando os diferentes gêneros literários
e os recursos das línguas e da cultura.
Ícone: o diácono Felipe e o eunuco etíope

Certa vez, um alto funcionário etíope lia um trecho do profeta Isaías. Filipe o encontra e o questiona: “entendes o que lês?” (At 8,30). O etíope, que voltava de Jerusalém, respondeu solicitando ajuda para a compreensão das Escrituras. Filipe explica-lhe o texto à luz do mistério de Cristo e ele pede o batismo. Esse relato se confere em At 8,26-40.

O episódio citado pode ser interpretado como uma metáfora para se refletir sobre a hermenêutica bíblica nos tempos atuais. Ler a Bíblia sempre foi uma tarefa desafiadora. A história das interpretações de vários textos confirma as diferentes possibilidades de compreendê-los e transmiti-los. Inclusive, o tempo também demonstra o quanto leituras errôneas causaram danos, como por exemplo, as “guerras santas”, as cruzadas, a discussão em defesa do geocentrismo, a justificação da escravidão, muitas mortes, a submissão das mulheres aos homens e, mais recentemente, a homofobia. Textos que deveriam libertar oprimiram inúmeras pessoas.

Como qualquer livro antigo, a Bíblia deve ser compreendida:
a) no seu contexto histórico e social,
b) considerando os diferentes gêneros literários e
c) os recursos das línguas e
d) da cultura.
Por isso, o papel do exegeta e do hermeneuta consiste em aprofundar os estudos e a experiência de fé a fim de entender e ensinar as Escrituras para que outros desfrutem das maravilhas dessa literatura e conheçam sua mensagem de salvação, a exemplo de Filipe no encontro com o etíope (At 8,26-40). Assim, as questões contemporâneas podem ser refletidas à luz da Revelação de Deus nas Escrituras, contudo, sem tomar jamais algumas passagens para justificar a própria opinião desconexa do conjunto da Palavra de Deus como dicta probantia [trad.: texto-prova].

Recentemente, assistimos à veiculação de discursos de homofóbicos [contra homossexuais] com aparatos religiosos cristãos. Ora, seria contraditório um discípulo de Jesus pregar a exclusão e o preconceito, pois o próprio mestre anunciou e viveu (por isso sofreu até a morte) a inclusão e a participação de todos no reinado de Deus. No tempo de Jesus, pagãos, mulheres, coxos, leprosos, impuros, prostitutas, publicanos, samaritanos, siro-fenícios e outras classes de pessoas não tinham acesso pleno aos ensinamentos de Deus por meio daqueles mestres da lei. Jesus, ousadamente, opta por essas pessoas e as considera em seu seguimento e como anunciadoras da Boa-Nova. Tais pessoas formaram as primeiras comunidades cristãs cuja mensagem chegou até nós séculos depois.

Na antiguidade, embora a homossexualidade já existisse, os autores bíblicos não compreendiam o fenômeno como nós podemos saber atualmente e desconheciam a diversidade sexual e de gênero que há no momento. O tema da homossexualidade não ocorre muitas vezes na Bíblia. Nunca foi assunto principal para as Escrituras. Quando encontramos alguns textos, eles abordam a homossexualidade masculina e algumas vezes de forma aludida.

Como já apresentei em uma entrevista ao Dom Total, no Antigo Testamento, o episódio de Sodoma e Gomorra (Gn 19,1-19) condena mais a violência e o desprezo pelo estrangeiro do que a relação homossexual, por isso, quando outras passagens do Antigo Testamento se referem ao pecado de Sodoma e Gomorra não se menciona a homossexualidade (Is 1,9-10; 3,9; 13,19; Jr 49,18; 50,40; Ez 16,49-50; Am 4,11; Mt 10,15; 11,23-24; Lc 17,28). Ainda no Antigo Testamento, os textos de Lv 18,22 e 20,13 devem ser lidos com os capítulos completos para compreender que os versículos se inserem em um conjunto de normas sobre a “santidade” do povo de Israel, que consistia, dentre outras coisas, em se manter distante dos outros costumes para afirmar a própria identidade religiosa e cultural. Logo, a preocupação era primeiramente religiosa e cultual antes do que moral (Lv 18,1-4; 20,1-2).

Igualmente, as passagens do Novo Testamento (Rm 1,26-31; 1Cor 6,9-10; 1Tm 1,9-10) podem ser melhor compreendidas quando pensamos no contexto de Paulo. Ele conhecia os costumes dos pagãos decorrentes da religião do Império Romano e queria reafirmar a vivência da fé cristã (um grupo minoritário naquele tempo). Esses textos querem mais apresentar a maneira de ser dos cristãos em relação aos pagãos do que distinguir o homossexual do heterossexual.

À propósito do texto no qual se lê literalmente: “Deus criou homem e mulher” (Gn 1,27), não indica que os homens e as mulheres criados por Deus sejam heterossexuais e cisgêneros. Os diferentes da heteronormatividade majoritária são igualmente criação de Deus e, como tal, chamados à participação de sua glória com os dons próprios trazidos de sua sexualidade. Se Deus rejeitasse essas pessoas (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais etc.), ele não seria o amor revelado na vida de Jesus.

Jesus, no seu tempo, viveu um embate com os fariseus, escribas e mestres da lei por causa da interpretação e vivência das Escrituras (Mt 23,1-36). Aqueles religiosos se apegavam aos preceitos menores e, com isso, causavam mal a muitas pessoas, esquecendo-se do essencial:
* a justiça,
* a misericórdia e
* a fidelidade (Mt 23,23).
Não muito diferente nos nossos dias, alguns grupos pequenos fazem um rouco barulho para condenar cristãos e cristãs que se propõem a viver o Evangelho. Os hipócritas, os insensatos, as serpentes, os sepulcros caiados, as raças de víboras da atualidade, como Jesus os chamou (Mt 23,27.33), pretendem diminuir a força do Evangelho que se destina a todas as pessoas (Mt 28,19). Com tantas preocupações externas e periféricas, esquecem-se do interior e do mais importante (Mc 7,14-23).
Pe. Marcus Mareano
Autor deste artigo

Portanto, saibamos buscar e encontrar a presença de Deus misericordioso que se mostra nos textos das Escrituras. Sua Palavra gera amor e fraternidade, não ódio, divisões e rixas. Não é à toa que o episódio de Filipe com o etíope acontece após relatos de perseguição de um fariseu à comunidade cristã (At 8,1-3) e expansão da mensagem cristã para territórios fora da Judeia (At 8,4-25). Novos desafios geram novas estratégias de desenvolvimento e novas modalidades de trabalho.

 Os escribas e fariseus do presente com sua ignorância e violência contribuem para reconhecer quem são os verdadeiros seguidores de Jesus. O critério é o amor (Jo 13,35). Conhecemos as árvores pelos frutos. Entendes o que lês?

* MARCUS MAREANO é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Doutor em Teologia pela mesma faculdade e pela Universidade Católica de Lovaina-Bélgica. Presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte (MG). Professor de Teologia da PUC-MG.

Fonte: Dom Total – Religião – Sexta-feira, 23 de novembro de 2018 – Internet: clique aqui.

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