O FUTURO ? ? ?
Os ultrarricos preparam um mundo pós-humano
Douglas
Rushkoff
Professor
de Teoria dos Meios e Economia Digital da Universidade do Estado de Nova York
Uma elite ínfima – porém poderosa ao
extremo – crê que o planeta
tornou-se inviável e quer isolar-se
após o “Evento”.
O que isso revela sobre a grande crise
civilizatória em que mergulhamos
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DOUGLAS RUSHKOFF |
No
ano passado, fui convidado a fazer conferência num resort superluxuoso para um
público que, imaginei, seria de
aproximadamente cem banqueiros de
investimento. Era de longe a maior remuneração que jamais me foi oferecida
por uma palestra – metade do meu salário anual como professor – tudo para fornecer algumas dicas sobre o tema “o
futuro da tecnologia”.
Nunca
gostei de falar sobre o futuro. A sessão de perguntas e respostas sempre acaba
mais como um jogo de salão, em que me pedem para opinar sobre as últimas
tendências da tecnologia como se fossem dicas precisas para potenciais
investimentos: blockchain, impressão 3D, CRISPR. As audiências raramente estão interessadas em aprender sobre essas
tecnologias ou sobre seus impactos potenciais, além da escolha binária entre
investir nelas ou não. Mas o dinheiro chama; por isso, entrei no show.
Ao
chegar, fui introduzido no que me pareceu ser a sala reservada principal. Mas,
ao invés de receber um microfone ou ser conduzido a um palco, simplesmente me
sentei numa mesa redonda e minha audiência começou a chegar: cinco sujeitos super-ricos – sim, todos
homens – do alto escalão do mundo dos
fundos hedge. Depois de um pouco de conversa, percebi que eles não tinham
interesse nas informações que eu havia preparado sobre o futuro da tecnologia.
Haviam preparado suas próprias perguntas. Começavam com aparente ingenuidade. Ethereum ou Bitcoin? A computação quântica é real? Mas, lenta e seguramente,
concentraram-se em suas verdadeiras preocupações.
Qual região seria menos
impactada pela crise climática que vem aí: Nova Zelândia ou Alasca? O Google está realmente
construindo um “lar” para o cérebro de Ray
Kurzweil e sua consciência viverá durante a transição, ou ele morrerá e
renascerá inteiramente novo? Finalmente, o executivo-chefe de uma corretora
explicou que havia quase concluído a construção de seu próprio sistema
subterrâneo de abrigo e perguntou: “Como
faço para manter a autoridade sobre minha força de segurança após o evento?”
O Evento. Esse era o eufemismo que
usavam para o desastre ambiental, a agitação social, a explosão nuclear, o vírus
incontrolável ou os hackers-robôs
que destroem tudo.
Essa
única pergunta os ocupou pelo resto do tempo. Sabiam que guardas armados viriam para proteger seus complexos das
multidões enfurecidas. Mas como pagariam os guardas, já que o dinheiro não
teria valor? O que evitaria que os guardas escolhessem os próprios líderes?
Os bilionários consideravam usar fechaduras de combinação especial que só eles
conheciam para guardar sua provisão de comida. Ou fazer com que os guardas
usassem colares disciplinares de algum tipo, em troca de sua sobrevivência. Ou
talvez construir robôs para servir de guardas e trabalhadores – se essa
tecnologia fosse desenvolvida a tempo.
Foi quando me bateu. Para
esses senhores, essa era uma conversa sobre o futuro da tecnologia. Seguindo as dicas de Elon Musk colonizando Marte, Peter Thiel revertendo o processo de
envelhecimento, ou Sam Altman e Ray Kurzweil inserindo suas mentes em
supercomputadores, eles estavam se
preparando para um futuro digital que tinha muito menos a ver com tornar o
mundo um lugar melhor, do que com transcender inteiramente a condição humana e
isolar-se do perigo hoje real das mudanças climáticas, aumento do nível do
mar, migrações em massa, pandemias globais, pânico e esgotamento de recursos. Para eles, o futuro da tecnologia tem a ver
com uma única coisa: escapar.
Não
há nada de errado com avaliações loucamente otimistas de como a tecnologia pode
beneficiar a sociedade humana. Mas o movimento atual de uma utopia pós-humana é
outra coisa. É menos uma visão da migração da humanidade para um novo estado do
ser do que uma busca de transcender tudo
o que é humano: corpo, interdependência, compaixão, vulnerabilidade,
complexidade. Como filósofos da tecnologia vêm apontando há anos, a visão transhumanista reduz muito
facilmente toda a realidade a dados, concluindo que “humanos não passam de objetos processadores de informação”.
É
uma redução da evolução humana a um videogame em que alguém vence encontrando a
saída de emergência e deixando alguns de seus melhores amigos pelo caminho.
Serão Musk, Bezos, Thiel… Zuckerberg? Esses bilionários são os vencedores presumíveis da economia digital – o
mesmo cenário de sobrevivência do mais apto que alimenta a maior parte dessa
especulação.
Claro
que nem sempre foi assim. Houve um breve momento, no início dos anos 1990, em
que o futuro digital parecia aberto a nossa invenção. A tecnologia estava se
tornando um playground para a
contracultura, que via nela a oportunidade de criar um futuro mais inclusivo,
igualitário e pró-humano. Mas os
interesses de lucro do establishment viram somente novos potenciais para a
velha exploração, e muitos tecnólogos foram seduzidos pelos unicórnios das
bolsas de valores. O futuro digital passou a ser compreendido mais como
ações futuras ou mercadorias futuras – algo a ser previsto e em que apostar.
Assim, quase todos os discursos, artigos, estudos, documentários ou documentos
técnicos eram considerados relevantes apenas na medida em que apontavam para um
símbolo de corporação global. O futuro
tornou-se menos uma coisa que criamos através de nossas escolhas ou esperanças
pela humanidade, do que um cenário predestinado no qual apostamos com nosso
capital de risco, mas ao qual chegamos passivamente.
Isso liberou todo mundo das implicações morais de suas atividades. O desenvolvimento da
tecnologia tornou-se menos uma história de florescimento coletivo do que de sobrevivência pessoal. Pior, como vim
aprender, chamar atenção para isso era ser involuntariamente considerado um
inimigo do mercado ou um rabugento antitecnológico.
A
esta altura, ao invés de tecer
considerações éticas sobre empobrecer ou explorar muitos, em nome de poucos, a
maioria dos acadêmicos, jornalistas e escritores de ficção científica passou a
se dedicar a enigmas muito mais abstratos e fantasiosos:
* é justo um operador nos
mercados financeiros usar drogas inteligentes?
* As crianças devem receber
implantes para línguas estrangeiras?
* Queremos que veículos
autônomos priorizem a vida dos pedestres, em detrimento dos passageiros?
* Devem as primeiras colônias
de Marte ser administradas como democracias?
* Mudar meu DNA prejudica
minha identidade?
* Os robôs devem ter
direitos?
Fazer esse tipo de pergunta,
embora filosoficamente divertido, é um substituto pobre para o exame dos
verdadeiros dilemas morais associados ao desenvolvimento
tecnológico desenfreado, em nome do capitalismo corporativo. As plataformas
digitais já tornaram um mercado explorador e extrativista (pense na Walmart), em um sucessor ainda mais
desumanizador (pense na Amazon). A maioria de nós tornou-se consciente desse
lado sombrio na forma de empregos automatizados, trabalho temporário e o fim do
varejo local.
Porém,
os impactos mais devastadores desse
capitalismo digital que avança recaem sobre o meio ambiente e os pobres do
mundo. A produção de alguns de nossos computadores e smartphones ainda usa
redes de trabalho
escravo. Essas práticas estão tão profundamente arraigadas que uma
empresa chamada Fairphone, fundada a
partir do zero para produzir e comercializar telefones éticos, verificou que
era impossível (Agora o fundador da empresa se refere a seus produtos como
telefones “mais justos”).
Enquanto
isso, a mineração de metais raros e o
descarte de nossas tecnologias altamente digitais destroem habitats humanos,
substituindo-os por depósitos de lixo tóxico — recolhido por crianças
camponesas e suas famílias, que vendem materiais utilizáveis de volta aos
fabricantes.
Essa
externalização — “fora da vista, fora da mente” — da pobreza e do veneno não
desaparece apenas porque cobrimos nossos olhos com óculos de realidade virtual
e ficamos imersos numa realidade alternativa. Quanto mais ignoramos as repercussões sociais, econômicas e ambientais,
mais elas se tornam problemáticas. Isso, por sua vez, motiva ainda mais privação, mais isolacionismo e fantasia
apocalíptica – e tecnologias e planos de negócios mais concebidos em
desespero. O ciclo se retroalimenta.
Quanto mais comprometidos
estamos com essa visão de mundo, mais passamos a ver os seres humanos como
problema e a tecnologia como solução. A própria essência do que significa ser humano é
tratada menos como uma característica do que como defeito intrínseco, um bug. As tecnologias são declaradas neutras, a
despeito dos preconceitos nelas incorporados. Quaisquer que sejam os
comportamentos ruins que induzam em nós, eles seriam apenas um reflexo de nosso
próprio núcleo corrompido. É como se
alguma selvageria humana inata fosse a culpada pelos nossos problemas.
Assim como a ineficiência de um mercado de táxi local pode ser “resolvida” com
um aplicativo que leva motoristas humanos à falência, as incômodas incoerências
da psiqué humana podem ser corrigidas
com um upgrade digital ou genético.
Em
última análise, segundo a ortodoxia tecnosolucionista, o futuro humano chega ao clímax se inserir nossa consciência num computador
ou, talvez anda melhor, aceitar que a própria tecnologia é nossa sucessora na
evolução. Como os membros de um culto gnóstico, ansiamos por entrar na
próxima fase transcendente de nosso desenvolvimento, eliminando nossos corpos e
deixando-os para trás junto com nossos pecados e problemas.
Nossos
filmes e programas de televisão encenam essas fantasias por nós. Seriados de
zumbis mostram um pós-apocalipse em que as
pessoas não são melhores que os mortos-vivos – e parecem conhecê-los. Pior,
esses filmes convidam os espectadores a
imaginar o futuro como uma batalha de soma zero entre os humanos remanescentes,
onde a sobrevivência de um grupo depende da morte de outro. Mesmo Westworld – baseado num romance de
ficção científica em que robôs correm descontroladamente – encerrou sua segunda
temporada com a revelação definitiva: os
seres humanos são mais simples e previsíveis do que as inteligências
artificiais que criamos. Os robôs aprendem que cada um de nós pode ser
reduzido a apenas algumas linhas de código e que somos incapazes de fazer
escolhas intencionais. Caramba, naquela
série até mesmo os robôs querem escapar dos limites de seus corpos e passar o
resto de suas vidas numa simulação de computador.
A
ginástica mental requerida por essa profunda
inversão de papéis entre humanos e máquinas depende do pressuposto subjacente de que os humanos são
péssimos. Vamos mudá-los ou nos afastar deles para sempre.
Então,
temos bilionários da tecnologia lançando carros elétricos ao espaço – como se
isso simbolizasse algo mais que a capacidade de um bilionário promover-se na
corporação. E se poucas pessoas conseguem escapar e de alguma forma sobreviver
numa bolha em Marte – a despeito de nossa incapacidade de manter tal bolha até
mesmo aqui na Terra, em qualquer dos dois testes multibilionários feitos na
Biosfera – o resultado será menos a continuação da diáspora humana que um salva-vidas para a elite.
Quando
os financistas de fundos hedge perguntaram sobre a melhor maneira de manter a
autoridade sobre suas forças de segurança depois do evento, sugeri que sua
melhor aposta seria tratar muito bem essas pessoas, desde já. Deviam
envolver-se com suas equipes de segurança como se estas fossem formadas por
membros de suas próprias famílias. E quanto
mais eles pudessem expandir esse espírito de inclusão para o resto de suas
práticas de negócios, gerenciamento da cadeia de suprimentos, esforços de
sustentabilidade e distribuição de riqueza, menor a chance de haver um evento,
em primeiro lugar. Toda essa magia tecnológica poderia ser aplicada desde já,
para fins menos românticos, porém muito mais coletivos.
Eles ficaram pasmos com meu
otimismo, mas na verdade não o aceitaram. Não estavam
interessados em como evitar uma calamidade; estavam convencidos que já fomos
longe demais. Apesar de toda a sua riqueza e poder, não acreditam que possam afetar o futuro.
Estão simplesmente aceitando o mais sombrio de todos os cenários e, em seguida,
trazendo todo o dinheiro e tecnologia
que podem usar para isolar-se – especialmente se não conseguirem um lugar
no foguete para Marte.
Felizmente,
aqueles de nós sem dinheiro para considerar a negação de nossa própria
humanidade têm disponíveis opções muito melhores. Não precisamos usar a
tecnologia de modo tão antissocial e atomizante.
Podemos nos
tornar os consumidores e perfis individuais em que nossos dispositivos e
plataformas desejam nos transformar, OU podemos
nos lembrar que o humano verdadeiramente evoluído não
caminha sozinho.
Ser
humano não tem a ver com sobrevivência ou saída individual. É um esporte
coletivo. Seja qual for o futuro dos
humanos, será de todos nós.
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