Controlando pessoas, mesmo com democracia!
Não é 64: dá para torturar democracia
com Congresso, Supremo, com tudo
Fausto
Salvatori*
Jornalista
Mesmo que o governo Bolsonaro respeite
a Constituição, sem recorrer a qualquer rompimento institucional ostensivo, há
outras formas de torturar horrivelmente a democracia brasileira
Não
estamos em 1964.
Muita
gente à minha volta está crente de que nos próximos meses veremos tanques
avançando na Praça dos Três Poderes, a dissolução do Congresso e o Supremo
Tribunal Federal fechado por um cabo e um sargento. Tem amigos que já se
imaginam pendurados no pau-de-arara de um Doi-Codi recriado especialmente para
caçar os autores de textões subversivos no Facebook. E tem outros que trocaram
o Whatsapp pelo Signal por terem certeza de que o novo governo estará de olho em
todos os nudes que andaram distribuindo.
Acho que não é por aí. Não
estamos em 1964. Provavelmente não voltaremos a estar.
Não são temores que vieram
do nada, é claro. Acabamos de eleger um defensor entusiasmado da ditadura militar,
acompanhado por um vice que durante a campanha eleitoral defendeu a
possibilidade de um autogolpe de Estado. Sim, Bolsonaro é motivo de sobra para
ter medo. E eu mesmo tenho muito. Mas eu começo
a me perguntar se o medo de rompimento institucional que rondou a sua
candidatura não acabou funcionando como uma cortina de fumaça que desviou a
atenção para as outras ameaçadas envolvidas em seu projeto político, que
podem ser aplicadas sem romper com as regras formais da democracia.
Veja como Bolsonaro
conseguiu fazer de sua cerimônia de vitória um evento positivo. Havia tanto temor que o
capitão estivesse preparando um golpe de Estado que, quando ele tirou do bolso
um discurso claramente protocolar, em que afirmava
compromisso com as liberdades, a defesa da democracia e a Constituição,
itens que deveriam ser o feijão-com-arroz de qualquer político eleito, isso foi recebido pela opinião pública com o
entusiasmo de uma revelação. Foi destaque em todas as manchetes. “Jura
defender democracia e liberdade”, saudou O
Globo. No Estadão: “promete defender reformas, liberdades e democracia”. E a Folha destacou que o presidente eleito
“promete respeitar a Constituição”.
Se
a lógica da notícia é destacar o inusitado, o homem que morde o cachorro, é muito louco imaginar que a gente tenha
chegado a um ponto em que os jornais considerem notícia que um presidente
eleito prometa respeitar a Constituição. E não é que Bolsonaro conseguiu
transformar sua fama de autoritário num fato positivo? É como se todos tivessem
ficado tão aliviados por ele não ter anunciado a criação de pelotões de
fuzilamento logo em seu primeiro pronunciamento que deixaram de destacar outros fatos bem mais sinistros, como a oração que o presidente de um Estado supostamente
laico fez questão de fazer ao vivo, de mãos dadas com um pastor-parlamentar
acusado de promover cruzadas morais à custa de falsas acusações de pedofilia,
ou o fato de ter exibido em sua mesa, ao lado da Bíblia,
um livro do ideólogo embusteiro Olavo de Carvalho.
É o
que me leva a perguntar até que ponto parte dos sinais, fortes sinais que
apontavam riscos de um golpe de Estado não tenham sido deliberadamente
plantados por Bolsonaro como uma forma de testar os limites da opinião pública,
usando a técnica de nos assustar com o
que é absurdo-para-caralho para no final nos detonar com o que é apenas absurdo.
É o que Bolsonaro parece estar fazendo agora, por exemplo, com a proposta de redução da maioridade penal:
o presidente fala em reduzir para 14 anos, o que é tão absurdo e assustador
que, se ao final de muitos protestos, choro e ranger de dentes, o Congresso aprovar
“apenas” uma redução para 17 anos, não parecerá tão ruim.
Acho
que erramos feio ao subestimar a inteligência dessa extrema direita.
Sim,
as suas pautas mais chamativas são burras,
mas
explorar a ignorância e o medo de seus
eleitores
é justamente o que esses políticos fazem
de melhor e o que os levou tão longe. Essa gente sabe
muito bem que nunca existiu um kit gay
nas escolas
e
que os museus não são antros de
pedofilia,
mas
fabricou esses fantasmas para
enfraquecer o
PT e a classe artística e abrir caminho
para controlar as escolas e a cultura.
Não
há porque achar que deixarão de fabricar esse tipo de factoide agora que foram
eleitos, pelo contrário. É importante manter
o povo distraído com histórias de doutrinação marxista nas escolas ou
debatendo se Haddad perdeu ou não uma Bíblia enquanto o governo vai ao que interessa, que é a implantação do
programa de governo ultraliberal de Paulo Guedes, sobre o qual até agora se
sabe muito pouco.
Um
dos poucos analistas que vi apontar como Bolsonaro e seu pelotão são muito mais
inteligentes do que as ideias que defendem foi Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e
especialista em estratégia militar, em entrevista à Folha de S. Paulo e El País.
Leirner defendeu que as confusões e
desentendimentos entre Bolsonaro, seu vice e seu economista — e, agora,
possivelmente, também entre seu economista e seu futuro ministro da Casa Civil
— fazem parte de uma estratégia
deliberada para confundir pessoas, instituições e imprensa, que só vão
entender o que está acontecendo e para onde a coisa está caminhando ao ouvir um
pronunciamento do Capitão Bolsonaro, que “reaparece
como elemento de restauração da ordem, com discurso que apela a valores
universais e etéreos: força, religião, família, hierarquia”.
Leia uma ótima entrevista com Piero Leiner,
clicando aqui.
Há cada vez mais indícios de
que Bolsonaro não é um Forrest Gump/Mr. Deeds do mal que chegou ao poder num
momento triste da nação, mas alguém perfeitamente alinhado com forças
externas poderosas. Os tweets
e telefonemas calorosos com que Donald Trump e Benjamin Netanyahu saudaram
Bolsonaro parecem indicar algo nesse sentido. As entrevistas do Goebbels de Trump, Steve Bannon, que retratam Bolsonaro
como representante de um novo movimento direitista mundial, alinhado aos
Estados Unidos da América [EUA] e
contrário à China, também.
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Manifestação contra lei de Donald Trump impedindo imigração de certos árabes para os Estados Unidos. No cartaz maior está escrito: "Somos todos imigrantes" |
Bom,
e o que vem agora? Nada de bom, é certo. Mesmo que o governo Bolsonaro respeite
a Constituição, sem recorrer a qualquer rompimento institucional ostensivo, há
outras formas de torturar horrivelmente a democracia brasileira. Há muitas atrocidades que governantes podem
cometer mesmo dentro dos limites da democracia formal. Donald Trump
conseguiu:
* proibir a entrada de
imigrantes muçulmanos nos EUA com base em discriminação religiosa, ainda que
não oficial, e também
* foi capaz de separar
milhares de crianças pequenas de seus pais, um crime digno das piores
ditaduras, e tudo isso dentro dos marcos legais da maior democracia do mundo.
Por
aqui, então, os limites são mais largos ainda. Dentro da democracia brasileira cabem crimes como a execução sumária de
111 presos no Carandiru, em 1993, que até hoje permanece impune. Também cabe o que o governo tucano fez em maio de
2006, quando policiais e grupos de extermínio mataram 493 pessoas em dez dias,
mais do que a ditadura militar em 20 anos — e nem por isso alguém disse que o
Brasil teria deixado de ser uma democracia.
Seguindo
nessa linha, dá para imaginar que o governo Bolsonaro consiga limitar boa parte
do que resta de democracia no Brasil sem precisar rasgar a Constituição que
jurou defender.
Censura
e perseguição a jornalistas?
Hoje
nenhum governo precisa mais instalar censores pagos dentro das redações, um
expediente caro e trabalhoso.
A internet está repleta de censores,
tanto robôs
quanto gente de carne, osso e ódio
pronto para atacar jornalistas
que Mestre Bolsonaro decretar que são
desonestos e produtores de fake news.
A
técnica de linchamento
virtual, que é especialmente covarde por se voltar menos às empresas
e mais às pessoas físicas dos jornalistas, incluindo seus familiares, é algo
que foi aprimorada à perfeição nos últimos anos, especialmente por grupos
ligados ao Movimento Brasil Livre.
Na prefeitura, João Doria beneficiou-se quando essa rede atacou uma repórter da
rádio CBN que denunciou o uso de jatos
d’água por funcionários municipais contra moradores de rua. A mesma técnica
foi usada contra os jornalistas de empresas de fact-checking que foram
contratadas pelo Facebook para um projeto de combate a fake news: vários desses
profissionais, bem como seus familiares, foram perseguidos exaustivamente nas redes.
E o que falar da Folha de S. Paulo? A repórter Patrícia de Campos Mello,
autora da principal denúncia contra Bolsonaro, teve o celular hackeado e o
jornal precisou pedir investigação à Polícia Federal. Com exércitos virtuais assim, ninguém precisa dos poucos, caros e
lentos burocratas da velha Censura Federal.
Vigilância
sobre o trabalho de professores?
Ninguém
precisa mais de agentes disfarçados como estudantes em salas de aula e fazendo
relatórios aos órgãos de vigilância. A
perseguição macarthista passará a ser feita, de graça, pelos próprios
estudantes, agora convertidos em legítimos agentes da repressão. Quem
precisa de Dops quando os próprios donos
e reitores de escolas e
universidades vão assumir o papel de pressionar
os professores para que evitem falar de temas incômodos?
Censurar
artistas?
De
novo, é desnecessário. Como Roger Waters
e, principalmente, Marília Mendonça
aprenderam, a nova censura cidadã já
é poderosa o bastante.
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Fausto Salvadori Autor deste artigo |
Execução
de inimigos e desafetos do governo?
Sim,
as polícias certamente ajudarão muito nesse serviço. Mas não dá para esquecer
do papel das “pessoas comuns”, que,
mesmo sem cargo público, vão se dedicar
a matar LGBTs, negros e mulheres em nome do seu presidente — desde o
primeiro turno, já foram oito mortes em
mais de 150 ataques praticadas em nome de Bolsonaro, segundo o Mapa da
Violência Política do Opera Mundi.
Não
estamos em 1964. Estamos mesmo em 2018. E isso pode ser até pior.
* FAUSTO SALVADORI: Formou-se em Jornalismo pela Unesp em 1999.
Trabalhou como repórter em sites, revistas e jornais como Vice, Trip, TPM, Revista
Adusp, Galileu, Folha.com, Agora SP, Jornal da Tarde,
Metro, Revista Joyce Pascowitch e Criativa,
entre outros. Durante alguns anos, manteve o blog Boteco Sujo. Desde 2008, é jornalista concursado da Câmara
Municipal de São Paulo, onde trabalha como repórter da revista Apartes. Em 2013, recebeu Menção Honrosa
no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos, na categoria impresso, pela
reportagem “Em busca da verdade”, publicada na Apartes.
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