«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 19 de março de 2013

O verdadeiro poder de Deus é o poder de reter-se

André Wénin, exegeta belga, 
analisa Gênesis 1-4

Márcia Junges

Um trabalho de exegese e de transposição para compreender a Bíblia em nossos dias. Esse é um dos grandes esforços empreendidos pelo exegeta belga André Wénin, que está na Unisinos de 18 a 20 de março ministrando diversas atividades ligadas a uma análise do primeiro livro bíblico, o Gênesis. O evento faz parte do cronograma da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “É preciso ter em consideração que em suas origens a Bíblia foi escrita em hebraico, portanto se trata de uma matriz cultural radicalmente diferente da grega, latina e mesmo europeia”, disse na manhã desta segunda-feira, na abertura do curso Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1 – 4.


ANDRÉ WÉNIN - biblista belga
Quem é André Wénin

André Wénin, jesuíta, nasceu em 1953, em Beaurang, e é teólogo belga. Ensina a exegese do Antigo Testamento e as línguas bíblicas (grego e hebraico bíblicos) na faculdade de teologia da Universidade Católica de Louvain, da qual foi decano de 2008 a 2012. Também foi professor convidado de teologia bíblica do Pentateuco na Universidade Gregoriana de Roma e secretário da Rede de Pesquisa em Análise Narrativa dos Textos Bíblicos (RRENAB).

Diplomado em filologia clássica pelas Faculdades Universitárias Notre-Dame de la Paix, em Namur (FUNDP), em 1973, obteve o título de Bacharel em teologia pela Universidade Católica de Louvain (UCL), em 1978, e de Doutor em ciências bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, em 1988. Sua tese de doutorado intitulou-se Samuel e a instauração da monarquia (1 S 1-12), foi defendida em junho de 1987, obtendo Summa cum Laude e publicada em 1988. Coordenou o Seminário “Tradições bíblicas” (Paul Beauchamp) no Centro Sèvres (Paris 1983-1986).

Privilegiando a análise narrativa e retórica do Antigo Testamento, suas pesquisas se dedicam principalmente à Bíblia Hebraica, em particular, ao Gênesis e aos livros dos Juízes e de Samuel. Interessa-se também pela antropologia e pela teologia dos textos bíblicos. É orientador de pesquisas nestas áreas.

É autor de extensa produção bibliográfica, da qual destacamos, em português, De Adão a Abrão. Ou as errâncias do humano (Loyola); José ou a invenção da fraternidade e O homem bíblico (Loyola).


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Wénin frisou que a natureza desses textos é peculiar, pois podem ser qualificados como míticos, embora não sejam mitos em seu sentido próprio. “A Bíblia é escrita num contexto monoteísta, por isso não fala em deuses, mas em Deus. A narrativa, assim, vai se tornar algo que não é um mito no sentido próprio do termo. Contudo, é mítica porque contém uma explicação do começo do mundo. Suas primeiras palavras são ‘no princípio’”, acrescentou. 


E por que os homens contaram mitos? Isso ocorre em quase todas as culturas para tentar compreender o mundo em que se encontram. O mundo chamado de primitivo é tido como algo que amedronta e que não desvendamos. Então, os mitos devem ser compreendidos como narrativas que organizam o mundo dentro de uma história. De acordo com Wénin, “conta-se história para organizar o mundo. É dessa maneira que encontramos os elementos da natureza. Também encontramos aquilo que será contado para se compreender como tais elementos se relacionam entre si”.

O mito é a filosofia através de uma história narrada. Na Bíblia, então, os mitos não estão ali. O que há é uma narrativa mítica, legível no primeiro capítulo do Gênesis. Tais relatos se organizam em uma sequência narrativa que se sucede. Essa sequência leva ao primeiro ancestral de Israel, que é Abraão. Todos esses relatos são contados como se fossem as primeiras coisas que aconteceram na humanidade. Tais narrativas pretendem fornecer o que é válido por toda parte e sempre, embora tratem de uma cultura particular. O trabalho do leitor consiste em observar se essa pretensão ao universal está nos textos, ou se não é simplesmente o fato de uma cultura particular. 

Estão na Bíblia todas as grandes perguntas que até hoje nos fazemos, afirmou o pesquisador belga. Assim, nas Escrituras se interroga pelos relacionamentos entre pais e filhos, irmãos e cônjuges  sobre o que é o amor, o motivo do nosso sofrimento e por que existe a violência. “A essas perguntas damos respostas espontaneamente através do nosso modo de viver e da forma como nos comportamos em relação aos animais, por exemplo”. 

Tais questões são universais, para as quais os textos trazem suas respostas. Ler um relato como esse é necessariamente questionar-se a si mesmo. Dialogar, fazer com que nossas respostas inconscientes dialoguem com as respostas do texto. Paul Ricoeur disse que tais textos exigem uma dupla hermenêutica. “A interpretação que dou, portanto, é a minha própria, uma vez que se interpreta a partir do que se é. O texto, assim, também me interpreta. A via é dupla”, raciocinou Wénin.

Harmonia do mundo

Ao iniciar sua fala, André Wénin assinalou que os textos a serem estudados não são “textos de catecismo, nem são dogmáticos. Mas são histórias”. E acrescentou: “Eu proponho a Bíblia para pensar. Em outras palavras, eu diria que tais textos não nos dão certezas. Eu me distancio da dogmatização desses textos, no sentido do que eles pretensamente diriam a verdade acabada”. Os textos, continuou, não são teologia, mas são relatos de questões teológicas. Servem para nos ajudar a refletir sobre tais questões teológicas, e não para nos dar certezas.


A leitura que Wénin propõe se baseia numa leitura narrativa dos textos.  Não se trata de uma exegese histórica, portanto. O que interessa mais a esse pesquisador é lê-los como relatos e o apreender o que eles têm a dizer sobre os humanos em sua existência.

Falando sobre a criação do universo narrada pelo Gênesis, o estudioso belga disse que esta nada tem de científico. Ele exibiu uma representação do Universo feita por ele próprio com desenhos. Em seu ponto de vista, o que há no Gênesis não é uma visão científica, que tem apenas a vontade de classificar e fazer distinções. Tal raciocínio procura distinguir e nomear as coisas. O que o texto procura dizer é que tal universo criado e ordenado é  resultado de uma transcendência de um ser que não pertence a esse mundo

A narrativa da criação do mundo é muito bem composta nessa passagem, observou. Dessa forma, nos primeiros dias, Deus organiza o ambiente que irá receber os elementos que serão colocados nos dias seguintes. São três dias de separação e outros três de ornamentação. Esse esquema demonstra que o mundo foi criado de maneira lógica e organizada, exposto num texto extremamente bem escrito e calibrado. “Esse texto procura nos mostrar essa harmonia do mundo”.

Humanidade inacabada

A seguir, Wénin realizou uma tentativa de compreensão do Gênesis 1 – 4. “Trata-se de um texto onde não há uma única negação. Tudo está na forma positiva. Tentem escrever um texto de 420 palavras sem usar nenhum advérbio de negação”, desafiou o exegeta. Nesse trecho da Bíblia dois dos grandes questionamentos feitos são: qual é o lugar do ser humano e quais são seus deveres no Universo.

Wénin questiona sobre o sentido do plural “façamos” quando Deus fala em criar o homem. Trata-se de fazer algo totalmente novo, jamais visto. Deus já fala com os humanos, e faz sua parte, que é criar - o que somente Ele pode. O ser humano é incompleto e sabemos que somos seres inacabados. “A humanidade é uma realidade inacabada. É o agir, a ação é que permitirão acabar essa criação”.

Quando se refere à humanidade, Deus não termina os versículos no Gênesis dizendo “que isto estava bom. Se retomarmos a Escritura, veremos que esse refrão aparece em toda parte, exceto quando Deus criou o céu e depois houve manhã e tarde. “Não estava escrito que estava bem porque não estava terminado”, acrescentou Wénin. Trazemos em nós a imagem de Deus, mas essa imagem precisa se tornar a imagem do original, submetendo a Terra por nossa ação, caminhando rumo à semelhança.

A humanidade não está acabada. A tarefa dela está em tornar-se acabada em função da perfeição de Deus. Essa potencialidade precisa ser desdobrada. O ser humano tem de emergir da sua humanidade para ir em direção a Deus. Não se trata de negar a animalidade, contudo.

Deus criou o humano à sua imagem. Mas que Deus é esse de que fala o Gênesis? Temos cada um a nossa imagem de Deus. Os exegetas não podem, contudo, dizer que imagem é essa de Deus. Eles devem se perguntar que Deus é esse que inspira a imagem a partir da qual fomos criados. É preciso retomar o relato para ver de que Deus está sendo trazida a representação.


Um poder que liberta

Muitas vezes os comentadores dizem que o Deus do capítulo primeiro do Gênesis é o Todo Poderoso. “Isso é um pouco fácil, porque se fosse necessário dizer isso, não seria necessário escrever 415 palavras para prová-lo”, rebateu André Wénin. “Gostaria de mostrar as nuances que devem ser acrescentadas à noção de Deus Todo Poderoso. Deus não cria a partir do nada, mas a partir de um material caótico: as trevas, o abismo e o vento. Quando Deus trabalha esse material, não elimina nada. As trevas vão permanecer, o abismo continua e fica nas águas de baixo e de cima, será canalizado. Esse abismo é limitado, colocado no seu lugar, e não estará mais presente em toda parte”. O vento, por sua vez, emenda Wénin, é necessário para a emissão dos sons que serão ditos. A Bíblia em hebraico contém os primeiros sons emitidos por Deus, que estava metrificando-os para criar a palavra. Assim, os três elementos são transformados e dominados por Deus. Quando Deus cria, não destrói nada. O conjunto é harmonioso. Trata-se de um poder todo poderoso que não destrói. Quando cria a vida, a cada momento, Deus acrescenta vidas que ele não vai continuar controlando. Ele planta as plantas que irão produzir suas próprias sementes e que poderão se reproduzir sozinhas. Deus dá a vida, mas o faz de maneira generosa. É um poder todo poderoso que dá, mas que não controla, que não quer reter, mas ao contrário, que liberta.

Quando lemos no Gênesis que Deus “viu que estava bom”, Ele conclui seu trabalho e se distancia para poder contemplá-lo. A mais bela metáfora que se pode dar disso é o afastamento do artista de sua obra de arte.  Deus, ao se afastar, se admira daquilo que saiu de suas mãos, mas que não é ele próprio. Isso é fundamental, diz Wénin. Para que uma criança cresça e se desenvolva, é indispensável que ela seja olhada com admiração por alguém, disse usando outra metáfora. É preciso, para um crescimento sadio, que essa criança tenha um espaço do olhar do outro, no qual se sinta considerada e admirada – isso é o que dá confiança em si. 

Portanto, um Deus que se afasta de sua obra e permite a esta se desenvolver sobre seu olhar admirado, não é poder absoluto ou potência. O verdadeiro poder é o poder que é capaz de reter-se.

Espaço da autonomia e responsabilidade

Wénin mencionou que há um detalhe “esquisito” na narração do sétimo dia, no Gênesis. Assim, relembrou à plateia de que Deus termina sua obra ao cessar de trabalhar. “Isso é extremamente importante, porque o mundo não seria completo se Deus não se retirasse dele. Deus foi procedendo por uma série de separações, e a última delas é a separação Dele próprio da sua obra. O mundo só é completo a partir da retirada de Deus. E quando se retira, o que faz Ele? Como explicar o repouso de Deus?”, questionou. Durante seis dias, Deus colocou em exercício seu poder organizador para ordenar os espaços e criar a vida. Trata-se de um Deus que agiu e lançou mão de seu poder. No sétimo dia, contudo, Deus não exerce mais seu domínio – ele coloca um ponto final ao seu domínio e o recurso de seu poder. Isso é crucial. Deus põe termo ao seu domínio sobre a criação. Ele é, assim, mais forte que o seu próprio poder. É um mestre de seu poder. Mais forte que sua força
CRIAÇÃO DE ADÃO (1510)
Afresco no teto da Capela Sistina - Vaticano
Autor: Michelagelo Buonarroti
No livro da Sabedoria há uma passagem que diz que Deus pode ser clemente e doce porque Ele domina sua força. Deus domina sua própria força, e dominar sua própria força é ser Todo Poderoso. É ter poder sobre o próprio poder, controlar e limitar seu próprio poder. No texto do Gênesis, não se trata do poder sem limites, mas sim daquele capaz de se autolimitar. Nesse sentido é que podemos falar na doçura, não aquela do cordeiro, mas daquela do poderoso que é capaz de limitar o exercício do seu poder. Esse é o primeiro aspecto desse sétimo dia. 

Porém existe ainda outro, já não relacionado com Deus, mas com o mundo. Quando Deus controla seu próprio poder, manifesta que não deseja preencher tudo, mas deixa um espaço para a criação do ser humano. Para esse ser humano há um espaço de responsabilidade. Deus não preenche todo o espaço, mas dá um espaço de autonomia e responsabilidade para o ser humano em relação à criação. É aqui que se podem compreender o sentido das palavras em particular. 

Abençoar sua obra significa fazer do sétimo dia um dia de vida. A benção é uma palavra eficaz de Deus para o desenvolvimento da vida em termos de qualidade. Tem-se, por isso, um dia abençoado por Deus ter se retirado e deixado a autonomia ao homem. O verbo santificar está sempre ligado a um conceito de separação, distinção. “Lembrem-se que na visão de Isaías, capítulo 6, se fala em Deus do Universo. O sétimo dia é santificado porque é diferente dos outros dias. É o dia em que Deus dá ao ser humano seu próprio espaço de responsabilidade. Nesse texto, então, qual é a imagem de Deus? Certamente de um Deus poderoso, mas essa força e poder são nuançados, pois Ele não destrói nada, integra na harmonia geral até mesmo aquilo que pode parecer negativo”.

Em segundo lugar, continua Wénin, trata-se de uma potência de apelo à vida que se mostra generoso e que não guarda para si a chave da vida. Em terceiro lugar, é um Deus que pode interromper sua potência para olhar e admirar o que vê. Por fim, é uma força que sabe limitar-se e dominar-se para dar ao Outro o seu lugar e autonomia, dando ao ser humano seu lugar de responsabilidade.

Raízes do antropocentrismo?

A tarefa do homem no Gênesis é dominar os animais. Mas o que significa isso? A comida que Deus destina para os homens é somente vegetal, aponta o exegeta belga André Wénin. Deus diz que o homem deve dominar os animais, mas deve comer somente os vegetais. Dominar o animal sem matá-lo é colocar um limite no seu próprio domínio. Como Deus, os homens devem dominar, mas precisam fazê-lo controlando seu domínio para que seu poder não se torne fonte de morte. “A imagem do homem será igual à de Deus à medida que irá dominar os animais estabelecendo limite para seu domínio. O homem deve então, prevalecer, mas deve fazê-lo sem violência. Se o ser humano quiser contribuir com a harmonia da criação, deverá respeitar a vida do animal”. 

Quando o cristão lê os textos bíblicos e não entende ou não gosta de algo, tenta dar um jeito, brincou Wénin. Quando se vai à igreja e as Escrituras são lidas, se tira tudo que é estranho. Novamente dá-se um jeitinho. Mas quando o texto é difícil, significa que há espaço para a interpretação humana. É o caso daquilo que se diz a respeito da dominação dos animais pelo homem.

Noé é aquele que através da não violência reuniu os animais de forma que eles não se alimentassem uns dos outros. O mundo pode ser de paz e harmonia à medida em que o ser humano possa controlar sua força, potência e animalidade. “Lembrem-se que no Gênesis há menção ao macho e à fêmea. Nisso somos aparentados com os animais. Contudo, a animalidade de que fala o Gênesis não é apenas a externa. Mas é a animalidade que está dentro do próprio ser humano, com suas forças, dinamismos e energias. A palavra animal, em hebraico, é construída sobre a palavra viver, por isso ‘vivente’. Certas energias que precisam ser canalizadas, dominadas para que se tornem verdadeiramente humanas. Isso vale não somente para a pessoa humana isolada, mas para os grupos como um todo”, lembrou Wénin.

Recuperando a máxima hobbesiana do “homem como lobo do homem”, Wénin perguntou à plateia como é possível controlar essa animalidade sem destruir essas forças que a compõe? Tais forças devem ser, isso sim, domesticadas, destacou. Domesticar um animal pressupõe estabelecer limites a ele, educando seu instinto. 

E como o ser humano faz para dominar os animais? Observem que ele utiliza não somente golpes, mas a palavra. Quando o animal se torna domesticado, basta que se fale com ele para que faça o que o amo quer. É através da palavra, sobretudo, que se domestica. Nomear os animais é identificar e distinguir para organizar suas próprias forças, reconhecê-las e dar lugar a elas. De modo cifrado, estamos à frente de um aspecto curioso do texto. O ser humano se dedica a dominar sua animalidade, que não é só externa, mas muito antes, interna. Por outro lado, o ser humano é incapaz de encontrar seu alimento sem que Deus o diga. E o ser humano será imagem de Deus quando puder organizar seu próprio mundo interno e externo através da palavra. Assim, o homem pode dominar sua força e poder para que não se torne violento.

Violência canalizada


PAUL BEAUCHAMP
Quando ouviu o jesuíta Paul Beauchamp explicar esse texto, recordou Wénin, ele dizia que no Gênesis havia uma espécie de caixa na qual existem coisas. Quando transportadas, normalmente marcamos a caixa para que esta não seja virada. Tudo é frágil porque depende da posição que o ser humano vai assumir em relação ao seu poder no Universo. A criação é um risco que Deus corre apostando no fato de que a humanidade possa se cumprir à sua imagem

Relembremos o dilúvio. Esse evento acontece porque a violência se apossou do homem e estava destruindo a Terra. Deus “apaga” sua obra e recomeça do zero com Noé. O ser humano mostrou que, ao invés de dominar sua violência e poder, caiu no excesso. Deus constatou que o ser humano que tinha recebido um programa para controlar seu próprio domínio não conseguiu fazê-lo. O que deve ser feito dessa violência humana para tratá-la? Então, após o dilúvio, Deus dá a oportunidade para o homem canalizar a violência ingerindo os animais. Há limites, evidentemente, como a exortação de não comer o sangue dos animais. Trata-se de uma proibição ritual, acrescenta Wénin. Um ritual sempre tem um sentido metafórico, um segundo sentido. O sangue é a vida, e por isso não pode ser ingerido. O ser humano não pode absorver a vida do outro. Beber o sangue seria destruir o outro sem possibilidade alguma de redenção. Fazer isso significa o ódio. Não se pode, entretanto, proibir alguém de odiar, mas sim de agir de acordo com seu ódio para a destruição do outro. O preceito ritual visa, na verdade, a proibição do ódio. Essa violência não deve estar a serviço do ódio, da destruição total do outro e da vida. A primeira coisa que Deus faz é colocar o ser humano em guarda contra o motor da violência, que é o ódio. Em segundo lugar, Deus vai pedir contas de suas vidas. Se matar os animais não só para comê-los e se matar outros seres humanos, Deus vai colocar-se do lado da vítima e pedir contas dos atos do agressor. Ele se coloca como protetor da vida humana contra a violência. Quando lhe tomarem a vida, exigirei conta de qualquer vivente, disse Deus. Aquele que comete a violência corre o risco de ele próprio sofrer dela. 

Nesse sentido, continua Wénin, a lei de talião não é uma lei de vingança, mas antes tenta estabelecer proporcionalidade para limitar a violência. Ela tem por objetivo que a violência não prolifere, e evitar a sua escalada.

Deus busca criar um espaço para a violência. Por isso aceita esta como ela é, mas cria um espaço, limitando-a. Se assim não o fosse, a violência se espalharia pelo mundo como era antes do dilúvio. Aquele que exerce a violência será vítima dela. O homem não foi feito para ser violento, embora esse aspecto de sua existência não possa ser excluído.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 19 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518522-o-verdadeiro-poder-de-deus-e-o-poder-de-reter-se-andre-wenin-exegeta-belga-analisa-genesis-1-4
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Decálogo, a revelação de Deus e caminho para felicidade? - André Wénin


Ricardo Machado

Dentro da programação da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência o convidado e exegeta belga André Wénin se debruçou sobre o Decálogo durante o curso Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1 – 4, cuja proposta é realizar um trabalho de exegese e transposição para compreender os textos bíblicos na contemporaneidade. “O título da minha palestra é provocador, afinal como um texto de leis como preceitos pode ser um caminho para a felicidade?”, provocou Wénin durante a abertura da segunda parte do evento, na tarde da segunda-feira, 18 de março.
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Para o professor, o Decálogo, além de ser uma série de preceitos, é antes uma proposta para caminhar rumo à verdade. Os mandamentos aparecem no capítulo 20 do Êxodo e, por isso, Wénin antes de abordar o Decálogo propriamente dito contextualiza onde tais leis de Deus aparecem. “No capítulo 14 do Êxodo, onde é contada a passagem do mar vermelho, é relatado o nascimento do povo Israel, já que eles saem de um lugar fechado onde não há vida, o Egito, pois são escravos, para um lugar aberto, o deserto. Isso tudo acontece pela transposição de um lugar úmido, exatamente como no nascimento”, relaciona Wénin.

A primeira palavra de Deus

O exegeta lembra, que aquele que deu liberdade e a vida tirando um povo da escravidão é o mesmo que oferece palavras para trilhar um caminho livre rumo à felicidade.

Nesse sentido, o pesquisador ressalta que o primeiro texto do Decálogo é uma palavra de afirmação da liberdade de Israel, em relação à escravidão e à morte. “Eu sou o senhor teu Deus, que te libertou do Egito, do antro da escravidão – poderíamos dizer que o Deus que deu a liberdade e a vida dará uma lei para livrar o povo disto”, explica Wénin. Ele ressalta que essa é a única vez na Torá em que Deus fala diretamente ao povo, pois nas demais Moisés é o interlocutor.

A negação

Uma das reflexões que André Wénin propõe sobre o tema é de que as primeiras frases do Decálogo são negativas, mas é justamente isso que liberta as pessoas. Para o estudioso, dizer o que as pessoas devem fazer aprisiona muito mais que dizer aquilo que não deve ser feito. Além disso, o professor destaca que Deus não nos obriga a fazer nada.

“Deus nos diz o que não fazer, por exemplo, não roubar, não matar, não ser violento. Mas e o que fazer? Faça o que quiseres, respeitando essas regras. Ora, como melhor responder a um Deus a não ser vivendo essa liberdade”, pondera Wénin.

A liberdade dada por Deus

De acordo com o professor, no primeiro mandamento, Deus deixa claro que o culto que ele pede a Israel é sobre ele que lhes deu liberdade. “Na verdade se diz que Deus mostra o seu controle suscitando a liberdade. O decálogo nunca diz que deve servir a Deus, a Bíblia diz, mas o Decálogo não. Porque ele liberta, ele nunca se relaciona no sentido de servidão, mas de amar - amar a Deus é praticar suas palavras”, sustenta Wénin.

Quem são os nossos deuses

Para o professor a liberdade dada deve ser protegida contra as escravidões, pois estamos em um mundo em que pensamos em Deus em termos de monoteísmo, mas não é por isso que as palavras de outros deuses não sejam interessantes para nós. Segundo André Wénin, a questão que se impõe é o que é um Deus? Quem sãos os deuses opostos ao Deus de Israel? “Os deuses aparecem sempre com uma reivindicação de absoluto enquanto o ser humano é relativo”, explica. Para exemplificar sua tese, Wénin provoca: “Se vocês querem conhecer o deus de uma sociedade façam a pergunta: a que sacrificamos os homens, a dignidade humana, a felicidade humana?”.

No entanto, o exegeta contrapõe essa ideia de Deus com o da Bíblia, que em vez de sacrificar os humanos, ele se recusa a isso e pretende fazer uma aliança com o povo. “Dizer as palavras – tu não terás outros deuses – pode se ligar a um apelo a Deus, porque ele não se coloca numa posição absoluta, mas o homem pode colocá-lo como absoluto. Não que Deus se imponha como um tudo, mas porque Israel o fez como um tudo. O Deus bíblico não é como os outros deuses que quer a morte dos homens porque é um deus de aliança”, avalia.

Deus e as imagens

Uma discussão pertinente apresentada pelo professor, sobretudo nesse momento da história em que vivemos uma era das imagens, é justamente a representação de Deus. Para Wénin não é possível fazer imagens de Deus, pois seria uma forma de congelar o passado. “Uma imagem é uma representação, é algo que se torna presente sempre a partir do passado”, considera. “O que poderia então levar alguém a fazer uma imagem imóvel de Deus? É o desejo de escapar a um Deus que não somente se revelara no passado, mas se proteger de um Deus que diz - eu sou quem eu serei - é uma maneira de congelar a figura de Deus para escapar de um Deus que eu ainda não conheço. Quando não se conhece o que vem pela frente ficamos inseguros”, complementa. 

A imagem, para o pesquisador, deforma ao mesmo tempo que revela, já que ao mostrar apenas uma faceta da imagem de Deus se esquece das outras. “É por isso que a imagem de Deus é a imagem do homem. Existe a tentação de querer empreender e no fundo o ser humano não pode prescindir da imagem para pensar e para pensar Deus. É por isso que é capital não imobilizar a imagem de Deus”, argumenta.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 19 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518525-decalogo-a-revelacao-de-deus-e-caminho-para-felicidade-com-andre-wenin
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A cobiça como desejo que não aceita ser 
 estruturado por um limite

Leituras do Gênesis pelo biblista André Wénin


Márcia Junges

Ao iniciar a leitura dos capítulos 2 e 3 do Gênesis, livro que abre a Sagrada Escritura, percebe-se uma nova narrativa do ponto de vista da representação do mundo. Trata-se, na verdade, de uma segunda narrativa da criação. “No capítulo 2 estamos dentro de um jardim, em terra seca. No capítulo 1, por sua vez, tudo começa dentro da água, e neste caso o início acontece no chão seco”, afirma o exegeta belga André Wénin em sua fala na manhã desta terça-feira, 19-03-2013, em continuidade ao curso "Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1 – 4". A atividade faz parte do cronograma da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O gênero de texto muda ao falar de Adão e Eva e a serpente. Trata-se de uma verdadeira narrativa. Há uma grande descontinuidade entre os dois primeiros capítulos, observa o estudioso. Contudo, existem coisas que expressam uma continuidade. Exemplo disso é que o ser humano está no centro de cada uma dessas duas narrativas. Fala-se do ser humano e deste no mundo, dentro dele. Entretanto no capítulo 2, ao invés da narração apontar as coisas “de cima”, o olhar vai se fixar perto do homem, como uma espécie de zoom no universo. “Com este zoom sobre o ser humano, nos encontraremos diante da questão do alimento. Isso é essencial, porque quando Deus dá o alimento ao ser humano no capítulo 1, ele dá um alimento que indica a possibilidade de exercer seu domínio sem violência, comendo somente vegetais. Neste caso, o ser humano vai poder comer de todas as árvores, exceto de uma delas”, apontou Wénin. Esse limite imposto ao ser humano e sua escolha será determinante no relato bíblico. Nos dois textos a questão de escolha está ligada ao viver. Comer é viver. Pode-se até jejuar, mas isso não dura muito. A questão central é a mesma. O que o ser humano vai fazer em relação à ordem recebida de Deus?

No capítulo 1 a tarefa dos seres humanos é dominar os animais. No caso do capítulo 3, tudo vai se desenrolar a partir da relação com um único animal, a serpente. O homem vai dominá-la ou vai submeter-se a ela? Trata-se de saber o que o homem vai se tornar em relação ao que Deus lhe dá. Essa narrativa, reflete Wénin, não faz parte de uma pequena literatura. “Trata-se de uma história bem reflexiva. Sua estrutura é um modo de construção”.

No diálogo entre a serpente e a mulher, no capítulo 3, versículos de 1 a 5 a serpente é apresentada como o animal mais astucioso de toda criação. O diálogo da tentação se segue à apresentação da serpente. Os versículos 8 a 13 correspondem ao diálogo entre Deus e os homens, primeiro com Adão, e depois com Eva. Deus fala com os humanos e aí vem o diálogo seguido de acusação. Será que a mulher irá comer o fruto? Como chegaram a comê-lo?

Ao constatar que se sentem culpados e envergonhados, Deus fala com a serpente, a mulher e o homem. À serpente irá lançar uma pena dupla, que compreende a sua locomoção através de rastejos, e uma oposição eterna em relação à mulher. À mulher também será endereçada uma pena dobrada: sofrerá em sua gravidez e maternidade e padecerá nas relações com o homem em função da ambiguidade da sedução e da dominação. Quanto ao homem, Ele condena-o a alimentar-se a partir do sofrimento e do suor de seu trabalho.

Um ser para a morte

Wénin mostrou como o conjunto do texto do Gênesis é bem pensado em sua escrita e desenrolar. Essa coerência também existe em nível do sentido. Começando com a cena primeva, que dá início a esse livro, ressalta que não havia nada, e Deus toma a iniciativa de criar. Sua primeira atitude é criar o homem, soprando-lhe vida em suas narinas, e eis que este se tornou um ser vivente. Isso denota uma antropologia, falou o exegeta belga. “O homem é modelado a partir do húmus. Há um jogo de palavras aí, pois Adão é retirado da lama, e o humano, do húmus. Trata-se de uma conaturalidade e pertença. Mas o narrador não diz apenas modelou o homem, mas diz pó fora do húmus. O pó remete a certa fragilidade humana, que é mortal. Neste texto, o ser humano é apresentado como um ser que vai morrer. A natureza é quem faz isso”.

O ser humano tem uma particularidade que os outros seres não têm. Trata-se do fato de Deus ter assoprado em suas narinas um sopro de vida. Isso o diferencia dos outros animais. Parece um pouco bizarro, estranho, já que os outros animais também respiram, mas no texto a respiração é atribuída somente ao ser humano. É o que aproxima Deus do ser humano. Não é o seu espírito - é a sua respiração. Com sua respiração Deus fala. Ao receber o sopro de Deus o homem recebe a capacidade de falar. O ser humano faz parte da natureza, é modelado como os animais, porém ele “foge” da natureza por ter recebido de Deus a capacidade particular do sopro que lhe permite falar.

Qual é, então, a tarefa do ser humano, o seu dever? De certa forma, o homem é colocado numa posição intermediária entre Deus e a criação. Assim o homem vai ser colocado em um jardim a leste, bem irrigado. A história dos rios mostra sobre como esse jardim é fonte de vida para a Terra.

A tarefa do homem é modificar a natureza, mas a favor dela. Deus estabelece uma aliança entre si e a humanidade. O homem vai servir ao jardim, cuidar dele. E o jardim vai dar seus frutos, alimentar seus habitantes. Quanto mais proteger o jardim, melhores serão os frutos que comerá. Há uma relação de troca entre homem e natureza. Observem, contudo, como essa troca depende da iniciativa do homem. Deus deu todas as árvores de jardim para usufruto do homem para evitar que ele caminhe para a morte.


A cobiça e a relação com o Outro

Na segunda parte do curso, André Wénin discutiu a cobiça como constitutiva do ser humano. “A cobiça é o desejo que não aceita ser estruturado por um limite. Um desejo sem limite é invasor e destrutivo”, disse. Para mostrar como funciona a cobiça, valeu-se de exemplos. Quando alguém é movido pela cobiça, que lugar essa pessoa reserva ao Outro? Há três alternativas possíveis, apontou: 1) a objetificação humana; 2) a compreensão do Outro como obstáculo para sua cobiça; 3) a compreensão do Outro como meio para a obtenção de seus desejos.

Em nenhuma destas posições o Outro é entendido como parceiro, analisou Wénin. “O Outro gira em torno do meu desejo. Ele não existe enquanto sujeito. A cobiça leva à morte das relações humanas, que permitem ao ser humano desabrochar e ser, efetivamente, humano”.

Quando alguém se encontra nessa posição de cobiçar, como essa pessoa vai utilizar a linguagem? Irá valer-se dela com um flerte com a mentira. A pessoa que cobiça diz ao Outro que o ama, vai louvá-lo com palavras falsas. Se o Outro for instrumento para alcançar seu objetivo, não dirá algo a ele porque o quer como instrumento. Quando estamos tomados pela cobiça, a maneira como usamos nossa linguagem com os outros é falsa. E se não podemos confiar no que diz o Outro, como é possível entender-se, viver e trabalhar?


O advento da consciência

Tomando em consideração o capítulo 3 do Gênesis, André Wénin assinala que a serpente introduz a desconfiança entre a humanidade. O exegeta belga mencionou que essa lei tem dois sentidos complementares. Um deles é o interdito, a advertência dada ao ser humano em função da concupiscência. Essa concupiscência faz com que o humano morra. O ser humano que recebe essa lei não sabe se ela é boa ou ruim para ele. A inscrição na confiança ou desconfiança é o que deve ser feito.

O ser humano está radicalmente integrado na natureza, com os mundos mineral, vegetal e animal. O que faz com que o ser humano seja um ser além desses mundos é sua capacidade de falar. Contudo, a serpente também falara com o homem no relato do Gênesis. Portanto, em que consiste a astúcia e malícia da cobra? É preciso procurar e encontrar o que está escondido em seu discurso. A serpente retoma em sua fala a lei que Deus deu ao homem, porém deixando somente o aspecto negativo. Ela implanta a desconfiança, coloca-se numa posição de superioridade. Ela é quem explica a “intenção” de Deus com suas palavras. O conhecimento é o apanágio de Deus. Entretanto, na hora em que comerem a maçã, conhecerão o bem e o mal. No dia em que “tirarem” a superioridade de Deus através do conhecimento, ou seja, da consciência, sentir-se-ão em pé de igualdade com Deus. A serpente diz que Deus tem medo que as pessoas se equiparem a Ele. Assim, demonstra sua perversidade, completa Wénin. Ela fala como se fosse amiga do homem. Deus, para ela, não quer o bem da humanidade.


A encarnação da cobiça

“Mas o que é esse animal que fala? Porque até agora somente o homem falava”, observa Wénin. A serpente é a encarnação da cobiça falando, propõe. Esse animal concentra toda atenção na negação, na falta, faz esquecer tudo que Deus deu à humanidade. Isso é o que produz a cobiça no ser humano. Quando se está sob a cobiça, não se vê mais tudo o que se têm, vê-se somente o que se queria ter e o que é o objeto de nosso desejo. Focamos o olhar naquilo que não temos, e todo o resto desaparece.

Na cabeça de Eva, tentada pela serpente, é esquecido tudo o que ela poderia comer. Assim, só pensa no que não pode provar. Ela passa a ver Elohîm [Deus] como um inimigo. Deus seria pretensamente egoísta por querer a árvore da vida só para si. A cobra insinua que as pessoas devam comer as frutas para se tornarem tão poderosas quanto Deus. “Cada um é tentado por sua própria cobiça, arrastado e seduzido por ela. Em seguida, tendo concebido, a cobiça da à luz o erro, e o erro, atingido o termo, gera a morte”, afirmou Wénin reportando-se à Sagrada Escritura, mais especificamente à Epístola de Tiago, do Novo Testamento. Portanto, a serpente demonstra que a cobiça representa a animalidade no homem. A primeira tarefa do homem é domar o animal, o que não ocorre no episódio da serpente.

A cobiça começa pelos olhos. Foi o que houve com a mulher, que viu a árvore mostrada pela serpente como algo que levaria à inteligência e ao êxito”. Na verdade, completa Wénin, Adão e Eva foram enganados pela serpente, porque eles comeram do fruto, mas não se tornaram como Deus. Eles ficaram com medo porque estavam nus e haviam comido do fruto proibido. O homem apressou-se em culpar a mulher. Esta rebate dizendo que fora ludibriada pela serpente. “Os homens viram Deus como juiz e queriam se livrar da responsabilidade para não serem condenados. Não é mais a confiança que reina entre eles”. Deus, então, profere as três sentenças apresentadas por Wénin no início de sua fala desta terça-feira. Essa pena, diz ele, tem a mesma lógica da pena aplicada por um juiz comum, posto que seu objetivo é fazer o acusado voltar a ser humano. “É por isso que Deus emite sentenças. São através delas que o ser humano se conscientiza que errou e deve pagar seu erro”.

Ao final de sua exposição, Wénin fez uma alusão sobre a cobiça que move os comportamentos humanos atualmente. Quando esse sentimento continua a existir, subjugando pessoas e inclusive o meio ambiente em que vivemos, o que se vê é a rebelião da natureza através de colapsos naturais. “Quando o ser humano se comporta em relação à natureza com uma vontade de superexplorá-la, a terra vai produzir cardos e espinhos. E não vai mais se dobrar à vontade do homem”.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Quarta-feira, 20 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518557-a-cobica-como-desejo-que-nao-aceita-ser-estruturado-por-um-limite-leituras-do-genesis-pelo-exegeta-andre-wenin
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Fraternidade: um projeto ético a ser conquistado

Palestra de André Wénin


Patricia Fachin

"Na Bélgica, nos dizem que a Bíblia é um livro modelo a ser imitado. Mas não é. Trata-se de um livro que conta a vida com muita lucidez para nos ajudar a sermos lúcidos com o que somos, e como temos de viver". Com estas palavras o exegeta belga André Wénin encerrou sua exposição na tarde de ontem, propondo ao público uma reflexão sobre o desafio de viver a fraternidade.
"FILHOS DE JACÓ VENDEM JOSÉ"
Pintura de Konstantin Flavitsky (1855)
A partir da história de José, narrada entre os capítulos 37 a 50 do Gênesis, o professor da Universidade Católica de Louvain da Bélgica continuou o curso "Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1-4", parte do cronograma da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Com a palestra intitulada "A história de José ou a Invenção da fraternidade", Wénin assinalou que o Gênesis é o livro mais interessante da Bíblia quando queremos observar as relações fraternas e familiares, porque conta uma história familiar que se estende por três ou quatro gerações. "Essas histórias contadas são tudo, exceto, ideais. O Gênesis não procura idealizar a família", pontuou.

Para ele, a temática da fraternidade sempre adquire maior importância neste livro, porque "as coisas começam mal entre os irmãos", desde a relação de Caim e Abel, de Abraão e seu sobrinho (que não são irmãos biológicos), de Isaque e Ismael, Jacó e Isaías, Lia e Raquel, até a narrativa de José. Essas histórias mostram que a fraternidade não é adquirida naturalmente, mas é um potencial a ser alcançado: "É possível que alguém se torne irmão", disse.

O celebre episódio de Caim e Abel faz parte da primeira narrativa bíblica que aborda o tema da fraternidade. Contando a história dos filhos de Adão, Wénin lembrou que o primeiro humano a ter um irmão foi Caim, "mas ele próprio não se tornou um irmão". Na Bíblia, ressaltou, "Abel é apresentado como o irmão de Caim, mas nunca é dito que Caim é irmão de Abel, e na única vez em que ele diz 'meu irmão', o faz para recusar a responsabilidade do irmão em relação a ele. Caim, resumindo, é o homem que não se torna irmão, porque mata seu irmão". Na Bíblia, portanto, a fraternidade começa no nascimento do segundo filho de Adão e Eva, ou seja, quando é imposta ao primeiro filho. "O fato de ter um irmão, dá origem à inveja, ao ciúme e à violência. Mas o sofrimento e o ciúme podem ser resolvidos de um modo diferente, que não seja a violência. É possível sair da violência e, a partir disso, pode nascer uma fraternidade geral, porque ela está num terreno de conflito que aprendemos a superar", frisou.

Na interpretação do exegeta, nesta primeira narrativa que encena os irmãos Caim e Abel, mostra-se que "a fraternidade é potencialmente fonte de ciúme, mas algo faz dela um espaço possível de crescimento humano. Nesse contexto, a palavra desempenha um espaço, e desta forma ela pode amplificar o conflito quando se torna malícia e mentira. Mas também é ela que possibilita administrar os conflitos e sair deles. Chegar a uma palavra justa é importante para a invenção da fraternidade".


PAUL RICOEUR - Filósofo francês (1913-2005)
De acordo Wénin, o texto do Gênesis é categórico: "Ninguém nasce irmão. No início há apenas filhos e filhas dos mesmos pais, ligados biologicamente por obrigação. Ninguém escolheu nascer filho de um determinado pai ou mãe, e essas ligações impostas são relações geradoras de conflitos, porque podem ser permeadas  de inveja e ciúme. Essa situação difícil pode ser, por vezes, ainda mais complicada dependendo do passado vivido pelos pais, que irá determinar a situação em que os irmãos irão viver".

Parafraseando o filósofo francês Paul Ricoeur, o teólogo belga enfatizou que "o assassinato de Abel faz da fraternidade um projeto ético e não um dado da natureza". A fraternidade, portanto, "aparece como um desafio de se tornar irmão e irmã, quando vamos contornando as armadilhas deixadas pela vida, e consiste em renunciar à cobiça, à inveja, ao ciúme e à violência".

Retomando a história de José e seus irmãos, Wénin assinalou ainda a importância de entender que, nas relações humanas, "não há, de um lado, homens maus e, de outro, homens bons. Há, dos dois lados, vítimas e pessoas que ferem os outros". Quer dizer, a fraternidade, "desde o seu ponto de partida, está ameaçada". Mas como sair dessa situação em que se faz bem para si mesmo e o mal para os outros? Como sair desse impasse em que se encontra a fraternidade? É possível sair desse embaraço de violência em que cada vítima é um agressor?

Ironicamente, respondeu: "Não tenham medo, porque essas coisas só acontecem na Bíblia". E concluiu: 


"Nós multiplicamos muitíssimo a liberdade e separamos a liberdade, a fraternidade e a igualdade. O que é a igualdade sem a fraternidade? A fraternidade é o resultado da boa conjugação entre liberdade e igualdade: Que a liberdade não mate, e que a igualdade não acabe com a diferença".

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Quarta-feira, 20 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518573-fraternidade-um-projeto-etico-a-palestra-de-andre-wenin
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Adão e Eva, Caim e Abel: 
sobre relações incestuosas e falsificadas


Márcia Junges


"CAIM MATANDO ABEL"
Pintura à óleo de Gaetano Gandolfi (1734-1802)
Museu de Artes de Honolulu
Na chuvosa manhã de quarta-feira, 20-03-2013, o exegeta belga André Wénin deu prosseguimento ao curso "Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1 – 4", analisando os capítulos 3 e 4 do Gênesis, que contam a história de Caim e Abel. Tal narrativa manteve sua força e densidade através dos séculos da história ocidental, demonstrando a violência que é constitutiva mas que aniquila com a vida humana. A partir dessa reflexão, porque será que o adágio homo homini lupus, ou seja, “o homem como lobo do homem” permanece tão atual, tomando em consideração a narrativa do Gênesis, questionou o estudioso. 

O narrador da história de Caim e Abel não observa senão o essencial, assegura Wénin. Ele prefere ser sucinto, quase que em demasia, porque deseja a implicação do leitor. Se o narrador disser tudo, o leitor não precisa se implicar. Tal texto é verdadeiramente uma narrativa mítica, que fala de uma história que pode ser a nossa própria com nossos irmãos, filhos, pais e pessoas violentas ou vítimas da violência. 

A estrutura do texto é relativamente simples, e evidencia a transformação que acontece nessa narrativa. A história começa com o nascimento de Caim, que se torna um agricultor. Ele é o personagem principal, presente na narrativa desde seu começo. Adonai (Deus) não olha para Caim e o faz de propósito, para fazê-lo refletir. Contudo, Caim não corresponde ao que Deus quer dele, e mata seu irmão Abel. Adonai volta a falar a Caim sobre o assassinato que ele cometeu. Deus diz que o solo não produz mais frutos porque ele é maldito, e que se tornará um errante, sem terra ou pátria.

Para Wénin, importa ressaltar nesse texto a presença de elementos como o limite, a falta, a dificuldade em assumir a responsabilidade, a sentença de Deus e a execução do castigo com o afastamento de Caim, levando-o para o Leste do Éden. Qual é o efeito do paralelismo entre a narrativa do fruto proibido e do fratricídio? “É um modo de dizer que nos dois casos são coisas análogas. São erros diferentes, mas as narrativas têm analogias entre os erros cometidos. A proximidade está na própria natureza do erro cometido”, pondera o exegeta. A maior parte dos comentadores não fala nada sobre o início do texto, a respeito dos versículos 1 e 2. O modo de contar é que conduz a certo sentido, assegura Wénin.

Relações falsificadas

Abel é apresentado como uma continuação de seu irmão irmão Caim. Em hebraico, Abel significa vapor, fumaça. Esse menino nomeado como algo tão fugaz era alguém “inconsistente e sem peso. Um filho que não ocupa lugar e não tem espaço na família. Isso significa que mesmo que Caim tivesse um irmão, este não vem interpor-se entre sua mãe e ele, posto que não era dotado de consistência”. A relação fusional entre a mãe Eva e Caim vai permanecer assim apesar da chegada do irmão mais novo. Segundo Wénin, “a fusão incestuosa entre Eva e Caim vai manter-se intocada, pois nem o pai e nem o irmão tem lugar nessa relação. Trata-se de relações falsificadas: o homem domina a mulher e essa reage apegando-se ainda mais ao filho, anulando o marido. O homem preenche sua falta com a mulher, e esta com o filho. Esse é o mecanismo da cobiça no Antigo Testamento. Caim é vítima de uma violência, pois é uma criança que serve para preencher a falta da mãe”. Observem, também, que isso é percebido como uma coisa bela. No início do texto, temos uma dupla violência que não é percebida:

1ª) o excesso de amor endereçado a Caim, objeto de ligação e posse com a mãe;

2ª) a falta de amor endereçada a Abel, que não é levado em conta. Estamos diante de uma história na qual os papéis são falsos e nada disso se percebe, pois trata-se de uma “bela família”.

Contudo, adverte Wénin, a violência começa, sempre, atrás de uma aparência normal. “Acusam-se aqueles que derramam o sangue, mas a violência que não é vista como ato fundamental é aquela que os levou a agir dessa forma”, acrescenta.


Relação incestuosa e fusional

Caim é um pouco de todos nós, pois todos sentimos inveja e cobiça. Olhando pela ótica de Caim, vimos que ele foi vítima de excesso de amor, além de estar envolvido em uma relação fusional com sua mãe. O que Deus faz é com que outra pessoa externa à mãe e ao filho “exista”, e por isso dá peso a alguém que não o tinha antes - Abel. Deus faz com que o irmão passe a existir, a fim de romper a relação incestuosa entre Eva e Caim. Deus faz com que Abel exista ao lado de Caim. Sem olhar Caim, Deus cria a falta nele. “O que Deus fez foi criar as condições para que Caim possa sair da fusão com sua mãe. Para poder entrar em relação, adverte Wénin, é necessária a falta, o desejo, para que haja um desejo de algo novo. Esse desejo vem de uma falta. Ao mesmo tempo em que Deus cria uma falta, faz com que Abel passe a existir”. É uma espécie de ar novo que Deus traz para Caim naquele momento.

Quando olhamos as coisas dessa forma, e assumimos esse recuo em relação ao texto, conseguimos ver as coisas como Caim havia percebido. Quando assumimos esse recuo sem nos colocar no lugar de Caim, podemos ver o texto de outra maneira. O que Deus faz é justo com Abel, e dá uma chance a Caim de viver a fraternidade, porquanto até aquele momento ele viveu somente de modo paralelo ao seu irmão

Caim está fechado em seu sofrimento, e Deus convida-o a sair desse presente sofrido para olhar seu passado e compreendê-lo, mirando o futuro e pensando no que fazer. Deus põe o dedo na ferida no sofrimento e propõe que Caim saia dele de uma forma ou outra. Deus não dá lição de moral: pelo contrário, ele faz perguntas. Quando Deus pergunta por que as faces de Caim “caíram”, ele convida-o a refletir.

Segundo nascimento

Se Caim não conseguir dominar o animal (serpente) que existe dentro de si, sucumbirá à sua animalidade, violência, e não cumprirá a missão primeira que Deus destinou aos homens: dominar os animais. Caim não consegue falar sobre seu sofrimento, e então mata seu irmão. Assim, aqueles que seguem o caminho de Caim são como animais, sem palavras, que não falam. O animal reage e mata. E é por não poder falar, por não conseguir se expressar e responder à questão de Deus que Caim matou

De certa forma, em Caim o seu sofrimento e cobiça se expressavam sem limites ou freios. Poderíamos perguntar por que razão ele mata Abel, pois poderia ter escolhido matar a Deus, por exemplo. Matar Abel é estranho, provoca Wénin, porque Abel não fez nada contra ele. Isso porque Caim acredita que seu problema não está em si, mas no irmão. Se Abel não existisse, Deus olharia para ele. Eliminando Abel, tudo ficaria bem, então. O problema, contudo, está dentro de Caim. Foi isso que Deus tentou fazer com que ele compreendesse. A solução para resolver o problema estava em si próprio.

Na segunda parte da história, Adonai (Deus) não deixou Caim abandonado enquanto sofria, e nem mesmo quando ele mata. Adonai pergunta por Abel, mas Caim responde que não sabe dele, provocando se acaso ele seria o "guardião do irmão". “Deus não dá uma lição de moral, mas convida Caim a se explicar. Contudo, ele se recusa ao diálogo, tentando negar seu irmão em sua palavra. Caim elimina Abel em sua palavra após tê-lo feito em ato. Há uma espécie de confirmação do assassinato na palavra de Caim”, analisa Wenin. Deus faz, então, outra pergunta: “o que fizeste”? Essa expressão, em hebraico, é usada por tribunais, quando juízes questionam o culpado, o réu, para que ele confesse a sua falta. Quando Deus lhe pergunta isso, designa Caim como réu a quem ele convida a se explicar. Tratando-o como culpado, continua dizendo que um grito vem do sangue derramado. 

O segundo nascimento de Caim se dá quando ele “sai” do círculo de habitação com a mãe. Ali ele pode ser uma pessoa autônoma. Caim fracassa em ser irmão de Abel. É um irmão que nunca se torna irmão. É a história de alguém que tem um irmão, mas que nunca vai sê-lo verdadeiramente, pois ele o percebe como alguém que o priva de sua realização de felicidade. Contudo, há sempre a possibilidade de se criar a fraternidade, mas é preciso esta que seja construída. “Trata-se de um projeto ético de construção de humanidade, para retomarmos as palavras de Paul Ricoeur”.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Quinta-feira, 21 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518594-adao-e-eva-caim-e-abel-sobre-relacoes-incestuosas-e-falsificadas
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O feminino no Gênesis: 
homem e mulher face a face


Graziela Wolfart

Na tarde de ontem, um público atento se reuniu na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU [São Leopoldo, RS], para ouvir a reflexão do Prof. Dr. André Wénin sobre o feminino no livro do Gênesis. A atividade fez parte de da 10ª programação de Páscoa do IHU - Ética, Arte e Transcendência e encerrou uma série de palestras com Wénin que teve início na última segunda-feira, 18 de março. 

Para fazer sua análise, o professor se baseou nos versículos de 18 a 25 do capítulo 2 do livro do Gênesis, que falam sobre como Deus criou a mulher para fazer companhia ao homem. 

Wénin inicia sua fala dizendo que não considera adequado falar na criação da mulher, de Eva, pois isso deixa supor que Adão, o macho, surgiu antes dela. “Meu objetivo é mostrar, ao fazer a releitura deste trecho, que não foi isso que aconteceu”, propõe. 

O versículo 18 (Então o Senhor Deus declarou: Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda), segundo Wénin, traz a constatação do personagem divino de que algo não está certo, que seria o abandono à solidão. “A vida humana é, por definição, relacional. Da concepção à morte somos seres de relações”, argumenta o professor. Então, Deus providencia um socorro: a companhia face a face. Na tradução apresentada pelo biblista na palestra, havia a expressão “face a face”, muito importante para compreender justamente a relação de igualdade entre homem e mulher.  

Wénin esclarece que esse ser humano criado inicialmente por Deus não era um homem macho. Adão seria um humano no sentido genérico, indiferenciado, algo como um andrógeno, para citar a mitologia grega. 

E aqui entra o outro trecho destacado pelo professor, que seriam os versículos 21 e 22:

Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe parte de um dos lados, fechando o lugar com carne. Com este lado que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele.

O primeiro destaque sobre essa passagem é em relação ao “sono profundo”, que pode ser entendido como um momento de perda de consciência, adormecimento, fazendo com que esse humano não saiba o que Deus fará com ele. “Nenhum humano sabe de suas origens, seu fundamento. Essa é uma questão antropológica importante. Nenhum humano domina seu próprio começo”, defende. 

Em seguida, continua o professor, Deus se fez cirurgião, e fechou a ferida da carne aberta para tirar um lado do homem. “Aqui temos uma falta, pois foi tirado um pedaço do humano – e a cicatriz mostra isso. Estar em uma relação pressupõe uma perda. Cada um será um lado, uma parte. Toda relação humana é afetada por essa perda. No fundo, o outro é a parte que não tenho, que não sou. Ele me lembra que não sou tudo. Se não consentir com essa perda, não há uma relação plenamente estabelecida. É na relação com o outro que o ser humano admite seus limites”, explica.
"CRIAÇÃO DE EVA" (1509/1510)
Afresco de Michelangelo Buonarroti 
Capela Sistina - Vaticano
André Wénin vai adiante na sua interpretação ao ler com o público o versículo 23:

Disse então o homem: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada”, esclarecendo que os termos homem (ish) e mulher (ishah) formam um jogo de palavras no hebraico.   

Segundo ele, no Gênesis, o homem, nesse momento, não se dirige à mulher, apenas a toma como sua, falando sobre ela na terceira pessoa. Ele sequer menciona a ação de Deus, pois ignora o que aconteceu no seu sono. “Ele acredita saber quem é a mulher, mais isso é só no Antigo Testamento”, brinca, rindo. E continua: “O homem não a trata como sujeito, mas se refere a ela como sendo dele, pois foi tirada dele, de algo que falta nele. É como se ele dissesse ‘sou eu fora de mim’. Como se a alteridade não fosse constitutiva da mulher”.

O importante, destaca o exegeta, é entender que homem e mulher são tomados do ser humano. Cada um é um lado, uma parte. Mas aos olhos do homem, a mulher é tomada dele, que se coloca no centro, retomando sempre a mulher como seu bem. Ele dá a impressão de que deseja controlar o que lhe escapa, a estranheza da situação. “Na verdade ele tenta preencher uma dupla falta: do que lhe foi tirado e da ausência de conhecimento sobre como isso foi feito”, explica, acrescentando que o ser humano tem medo da diferença e que a falta e a alteridade sempre trazem insegurança e são difíceis de lidar.

O próximo versículo analisado é o de número 24:

"Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne"

Essa afirmação, na concepção de Wénin, é a tentativa do homem em preencher uma brecha para superar sua angústia diante do desconhecido. “Daí inventamos a alma gêmea. Quando nos apaixonamos, achamos que o outro preenche nossas faltas. Na verdade, o que amamos é a sensação de não sentir mais falta de nada”. Segundo esse pensamento, deixar o pai e a mãe representa deixar o mundo conhecido e tranquilo para se unir a alguém que escapa do seu mundo, mesmo que a primeira impressão não tenha sido essa. 

A partir da concepção de “carne”, em hebraico, como pessoa única e singular, o que pressupõe fragilidade e vulnerabilidade, Wénin acrescenta ainda que se o humano decide se unir a uma mulher, ele está assumindo sua vulnerabilidade e sua singularidade. 

O último trecho destacado na palestra foi o versículo 25:

"O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha".

“Harmonia perfeita? Não acreditem nisso”, provoca o professor, que explica que eles não sentiam vergonha, pois não se viam na sua diferença. Ainda estavam lado a lado, mas não face a face.

E Wénin encerrou sua fala com a seguinte reflexão: 


“Mesmo no amor, a distância permanece. O outro é um mistério e nós somos um mistério para nós mesmos. O outro deve trazer o que eu não espero. Não devemos instrumentalizá-lo, esperando que ele traga o que esperamos. Aí é que está a riqueza da relação”.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Quinta-feira, 21 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518612-o-feminino-no-genesis-homem-e-mulher-face-a-face
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O diálogo entre o Gênesis e a psicanálise

O segundo dia de palestras do professor e exegeta belga André Wénin reuniu dezenas de pessoas na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros do Instituto Humanitas Unisinos - IHU [São Leopoldo, RS] na noite da terça-feira, 19, para discutir o tema Leis para o ser humano. Genesis 1 – 4: exegese e psicanálise em diálogo. O evento integra a programação da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência e faz parte do curso "Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1 – 4".
JEAN-PIERRE LEBRUN - psicanalista

André Wénin na abertura do evento ressaltou que sua fala dizia respeito a reflexões que estabeleceu com seu compatriota psicanalista Jean-Pierre Lebrun onde debatiam de que modo entre a psicanálise e a Bíblia há um fenômeno em eco, uma ressonância. A proposta de ambos era tentar ajudar as pessoas a compreenderem as conjunturas estruturais de onde vivem. “Eu e (Jean-Pierre) Lebrun, ele a partir da psicanálise e eu a partir da Bíblia, falávamos sobre temas como poder, dinheiro, violência. No fim do evento consideramos que houve um diálogo porque nosso objetivo era debater temas contemporâneos e não fazer as pessoas lerem as Bíblia”, explica Wénin.

De acordo com o exegeta, o que houve durante o encontro com Lebrun foi um diálogo entre um psicanalista agnóstico e um teólogo e a proposta não era criar polêmica, mas sim alimentar as considerações de cada um sobre os temas abordados.

Representações

Logo no início da apresentação, André Wénin trouxe o famoso quadro de René Magritte intitulado Ceci n'est pas une pipe para explicar que quando se lê a Bíblia o que está sendo apresentado é uma certa representação da realidade e que tais representações estão ligadas às culturas. “Eu não vou tomar o que leio pela realidade, mas vou analisá-lo pela representação da realidade. É preciso distinguir bem isso”, sustenta Wénin.
"CECI N'EST PAS UNE PIPE" (Trad.: Isto não é um cachimbo)
Quadro de René Magritte (1898-1967), artista surrealista belga
A questão da lei

O pesquisador trouxe dois exemplos para relacionar os primeiros capítulos da Bíblia com a psicanálise. O primeiro deles são as ordens, pois, segundo Wénin, as leis aparecem logo no início do Gênesis porque quando Deus fala do ser humano logo se fala de uma lei, como se não houvesse humanos sem lei.

“No segundo capítulo do Gênesis, versículo 16 e 17, da primeira vez que Deus fala com os homens há duas ordens: na primeira parte Deus ordena que o homem coma, que prescreve o usufruto das árvores - foi dito antes que as árvores eram boas para ver e para comer e de todo esse conjunto Ele ordena de que uma árvore Adão não comerá. Deus está estabelecendo um limite aqui. Para viver é preciso aceitar um limite para a realização do seu desejo”, esclarece o professor. Esse limite refere-se, então, a árvore de conhecer o bem e o mal, conforme Wénin. “Pensar que Deus proíbe o conhecimento e a autonomia, de que o homem não teria autonomia moral, seria interpretar de forma literal esse relato e considerar que o cachimbo do Magritte é verdadeiro. Isso funcionaria no âmbito da catequese, mas não do estudo da Bíblia”, complementa.

Limites

Para o estudioso, a aceitação do limite determinará a vida ou a morte dos indivíduos. No fundo o que aparece nesse diálogo é que Adão não sabe se as palavras de Deus se tratam de uma frustração abstrata ou um conselho de amigo. “Não existe uma lei que levante uma impossibilidade de possuir um saber sobre o bem e o mal. Existe uma sabedoria para apreciar as coisas. Quando somos levados a fazer escolhas imaginando fazer a melhor das escolhas, a experiência ensina que aquilo que pensávamos ser bom deu maus frutos. Em outras vezes estamos em situação ruim e três anos mais tarde ficamos gratos de ter passado por isso, pois não foi tão ruim quanto pareceu. Não conhecemos o bem e o mal. Podemos nos aproximar pela sabedoria e pela ética, mas não se trata de saber. O humano é limitado e é assumindo isso que o ser humano pode se desenvolver como tal”, avalia o palestrante.

A psicanálise

Segundo Wénin, a partir de suas leituras e diálogos com Jean-Pierre Lebrun, essas determinações divinas que mostram limites aos homens são aquilo que se chama na psicanálise da lei da castração simbólica. “O conceito da castração é designada como simbólica como aquilo que vem realizar um limite na realidade psíquica. Freud colocava isso como necessário para reprimir as pulsões impostas para entrar na cultura, pois é essa repressão das pulsões permite que o homem se insira na cultura”, salienta.

Incesto e assassinato

Ainda no caminho da psicanálise, conforme explicou o professor, o fato de o domínio ser limitado é importante porque senão levaria à morte. André Wénin recorre a Lacan para falar de dois tipos de relações: as incestuosas e as de assassinato. “No incesto eu não sou nada sem o outro e no assassinato eu não sou nada com o outro. É por isso que as leis que proíbem o incesto e o assassinato são da origem da humanidade. Quando eu ouço o psicanalista a partir do que eu digo do limite necessário, isso me remete a própria vida justamente porque na Bíblia eu leio o mesmo engajamento”, sustenta.

Caim e Abel

Conforme o exegeta, na narrativa do Éden há a diferenciação entre homem e mulher e se diz que o homem deve abandonar o pai e a mãe, pois não podemos ficar colados à nossa origem. Daí que o primeiro assassino da Bíblia nasce de uma relação incestuosa com a mãe, a história de Caim e Abel. Para Wénin essa seria apenas mais uma amostra de que há uma aproximação entre a psicanálise e a Bíblia.

“Aqui parece termos uma história banal, mas o modo de ser escrito em hebreu é muito preciso. Começa contando o nascimento de dois meninos, mas descrevendo a relação de um homem e uma mulher. O texto não julga, descreve. O homem completo e a mulher que é possuída sexualmente. Depois nasceu um filho que a  mulher tem para seu, Caim - em hebraico significa adquirido, possuído -, considerado como homem. A mulher estabelece uma relação cujo filho é a posse da mãe e o marido é excluído. Há aí uma relação fusional entre a mãe e filho, relação do tipo incestuosa. Ela 'continuou' a dar a luz a seu irmão, Abel. Ou seja, ele é a continuação do irmão e não é situado em relação à mãe. Abel em hebraico é vapor, ar, ele não é feito do pó, não tem peso”, argumenta o pesquisador.

Reequilíbrio

Na avaliação de Wénin, Deus quando dá atenção a Abel e não olha para Caim, está procurando equilibrar uma situação que é totalmente favorável a Caim, pois ele tem toda a consideração da mãe. Quando Deus atribui importância a Abel, ele provoca Caim a perceber que tem um irmão, forçando alguém que sempre esteve preso ao mundo da própria mãe a perceber que um terceiro existe. O que acontece nesse momento é chance de Caim se abrir para a alteridade, para o outro.

“A prova do limite é complicada porque Caim era tudo para o outro, nesse caso a sua mãe. Ele também sempre foi considerado a totalidade pela sua mãe. Vejam que Caim está sofrendo (Capítulo 4, versículo 5). Caim não e mal, é alguém que sofre porque foi envolvido em uma situação por ter que tolerar uma falta. Ele não olha mais diante dele, ele esta fechado em seu sofrimento. Se ele sofre ele foi vítima do excesso de sua mãe”, contextualiza Wénin.

Opção pela morte

O professor explica que Deus oferece uma oportunidade a Caim de refletir sobre a situação quando está furioso, embora não tenha uma postura moralista. “Por não ser capaz de entrar em diálogo com Deus e com seu irmão, Caim, antes de optar pela vida, optou por matar. Essa é a maneira como Deus se coloca como terapeuta diante de Caim. Não se deve dar a solução deve-se ajudar a falar para que ele próprio encontre suas respostas”, frisa Wénin.

Apontamentos finais

Por fim, o pesquisador destacou que as grandes narrativas propõem, cada uma a sua maneira, uma ferramenta para a reflexão do que é o ser humano e do que significa viver juntos. A psicanálise que é baseada em “teorias da Bíblia”, para Wénin, é baseada em grandes narrativas. “A Bíblia é um mundo literário de um humano muito próximo. Para entender a grande narrativa é preciso preencher certa distância cultural que requer esforço e cada uma delas nos oferece reflexões”, finalizou o palestrante.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sexta-feira, 22 de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518572-o-dialogo-entre-o-genesis-e-a-psicanalise

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