O QUE FOI O LULISMO PARA O PAÍS
A autodestruição da esquerda contaminada
pelo lulismo
Hamilton
Octavio de Souza*
Uma ilusão que custou caro e, ainda,
provoca danos entre
aqueles que lutam por uma sociedade
igualitária e justa
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LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA - simplesmente "Lula" |
Influenciados
pelas artimanhas do lulismo, vários segmentos da esquerda perderam, nos últimos
anos, a própria capacidade de leitura
crítica da realidade, abriram mão da independência
política e embarcaram em processo
suicida cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da
sociedade e do potencial de militância de esquerda latente na juventude
brasileira. O mergulho equivocado no
discurso fantasioso da direção petista fragilizou projetos autônomos e
diferenciados de afirmação da esquerda partidária e social e conduziu boa parte
desse campo político-ideológico a uma situação de subordinação cega a agrupamento que beira o messianismo.
Como é possível que parcela da esquerda tenha perdido o fio condutor da
racionalidade e da história?
Sem
desprezar o mérito de análises mais amplas e detalhadas da conjuntura econômica
mundial, da crise do modelo neoliberal
e das inúmeras mutações do capitalismo
no jogo internacional, que está a exigir, permanentemente, apuradas e
eficientes estratégias na luta de classes, interessa
concentrar a presente avaliação nos marcos da luta política no interior do
Estado-Nação, aos acontecimentos locais que estão mudando a face do Brasil
no decorrer desse início de século 21, entre os quais importa destacar:
Fernando Henrique Cardoso (à direita) dá posse a LULA |
1–
A eleição de Lula em 2002 com empresário de vice e a Carta ao Povo Brasileiro
Após
ser derrotado em três disputas eleitorais para a presidência da República
(1989, 1994 e 1998), Lula enfrentou a
campanha de 2002 com várias mudanças significativas, desde a aliança com
partidos tradicionais da direita, a inclusão
de grande empresário mineiro (José Alencar) na chapa, o discurso do “Lulinha Paz e Amor” para agradar as
classes médias, o apoio de oligarquias
do Nordeste e de parcela da elite
industrial paulista e, claro, a surpreendente Carta ao Povo Brasileiro,
elaborada com aval da Odebrecht, família
Marinho e banqueiros, selando o compromisso do lulismo com o modelo
neoliberal e o jogo do mercado.
Era
tudo o que os bancos e setores rentistas queriam. Evidentemente, o Lula de 2002 não tinha mais nada a ver
com o Lula de 1989, o lulismo já tinha o controle quase absoluto do partido
e várias correntes e militantes de esquerda já haviam sido empurrados para fora
do PT. É o caso dos petistas que constituíram o PSTU, o PCO e outras
organizações.
Dilema: O papel da esquerda era ganhar a
eleição a qualquer preço ou continuar defendendo suas propostas até conquistar
a população e acumular forças para realizar mudanças estruturais no país?
2–
O escandaloso esquema do “mensalão” com compra de votos no Congresso Nacional
O primeiro governo Lula, considerado “em
disputa” por vários analistas no campo da esquerda, rapidamente trilhou o caminho do oportunismo e do fisiologismo:
a) decidiu
fazer reforma da previdência contra os interesses dos trabalhadores, o que
provocou a expulsão de parlamentares fiéis ao programa partidário, os quais
caminharam para a construção do PSOL;
b)
abandonou a proposta original do
programa Fome Zero, que previa a adoção de reformas estruturais, para lançar
o programa Bolsa Família,
tipicamente assistencialista e que até hoje não livrou importante parcela da
população da reiterada exclusão econômica e social;
c)
descartou o projeto de reforma agrária
coordenado por Plínio de Arruda Sampaio, que previa o assentamento de 1
milhão de famílias e mudanças profundas na estrutura fundiária do país, para
aderir ao projeto do agronegócio, que gera violência no campo, concentra a
terra e é profundamente danoso ao meio ambiente. Vale lembrar que o número de assentamentos no governo Lula
ficou abaixo ao que foi realizado no governo anterior de Fernando Henrique
Cardoso e que o MST manteve a combatividade durante a maior parte do
governo Lula e foi tratado friamente como movimento de oposição.
e) Além
disso, o lulismo enfiou-se na lama com desvios
de recursos públicos e captação de propinas para comprar parlamentares no
Congresso Nacional, notadamente do PTB de Roberto Jefferson, do PP de Paulo
Maluf e do PR de Waldemar Costa Neto, entre outros. O escândalo do “mensalão” abalou o governo Lula, que jogou toda a
encrenca nas costas de José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares e Sílvio
Pereira. Embora seja difícil de acreditar que o “dono” do partido e presidente
da República não tivesse conhecimento do esquema, o fato é que setores da burguesia, da grande imprensa,
da indústria e do sistema financeiro decidiram preservar Lula como a solução
“menos pior” naquele momento, o que o deixou o lulismo mais enredado com os
grupos econômicos e políticos tradicionais. Ganhou a eleição de 2006 com arco
mais amplo de alianças à direita. [A mesma “elite”
que, agora, Lula diz que deu o golpe em Dilma e o levou à prisão! Que “amigos”!]
Dilema: O papel da esquerda era insistir no
projeto de conciliação proposto pelo lulismo ou construir oposição séria e
firme ao neoliberalismo, às velhas oligarquias e ao conservadorismo de direita?
3–
O sucesso popular das medidas sociais efêmeras do governo petista
O
governo Lula aproveitou a maré econômica
favorável com crescimento puxado
pela China, expansão do mercado internacional de commodities e razoável
equilíbrio fiscal para adotar medidas de grande significado popular, como o
reajuste do salário mínimo acima da inflação e a massificação do programa Bolsa
Família, que foram responsáveis pelo aumento do poder aquisitivo na base da
pirâmide social e grande expansão do consumo, também estimulado por crédito
farto oferecido por agentes financeiros públicos e privados a juros extorsivos.
Os
investimentos em obras de infraestrutura, repasses de recursos públicos para os
sistemas de saúde e de educação privados (ProUni
e FIES nas universidades particulares),
isenções fiscais e desonerações de vários setores industriais – foram medidas
que contribuíram transitoriamente
para diminuir a miséria, a desnutrição e também criar expectativa favorável ao
início de nova era de bem-estar no país. Lula
surfou na onda do “ganha-ganha” (ganham os pobres e ganham os ricos), quando
boa parte da sociedade embarcou na ilusão de um mundo sem perdas, com superação
dos conflitos sociais, a domesticação
dos sindicatos e o isolamento de
movimentos populares mais combativos.
Lula terminou o segundo
mandato com índice de aprovação de 83%, elegeu seu “poste” Dilma Rousseff em
2010, impôs
o vice Michel Temer (MDB) na chapa presidencial e deixou o governo fortalecido por amplo leque de partidos tradicionais,
fisiológicos e de direita, desde o PP de Maluf, o PRB da Igreja Universal do Reino de
Deus, o MDB
de José Sarney, Eduardo Cunha, Romero Jucá, Renan Calheiros, Jader Barbalho,
Henrique Alves, Geddel Vieira Lima, Sérgio Cabral, e mais uma dúzia de legendas
de aluguel. Vale lembrar que o esquema
de propinas via diretorias da Petrobras já estava funcionando a todo vapor,
abastecendo políticos e os caixas de pelo menos três partidos: PP, MDB e PT.
Dilema: O papel da esquerda era silenciar e
ficar conivente com a euforia temporária
de inclusão sem consistência ou adotar postura crítica contra a ilusória redução das desigualdades?
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LULA empossando Dilma Rousseff em 2010 |
4–
A gestão Dilma Rousseff e a explosão de insatisfação geral de junho de 2013
O
sonho de um Brasil próspero, de bem-estar generalizado com renda alta,
empregabilidade e paz social, acabou nos primeiros anos do governo Dilma:
a)
Primeiro porque a economia mundial
patinou na estagnação ainda decorrente da crise de 2008, a China reduziu o ritmo de crescimento e
as commodities nacionais perderam espaço
no mercado global. Os capitais trataram de buscar portos mais seguros.
b)
Segundo porque, de um lado a política de
“desonerações” desencadeou enorme queda da arrecadação federal, nos estados
e municípios, com aumento da desordem fiscal, inadimplência e quebradeira; e,
de outro lado,
c)
porque o caixa do BNDES, que durante
anos foi usado para alavancar alguns poucos e seletos grupos privados (entre os
quais as chamadas “empresas campeãs” da JBS e de Eike Batista), perdeu a
capacidade de fomentar a economia via Estado, depois de ter queimado investimentos
em projetos questionáveis para o desenvolvimento nacional, como o financiamento
da compra de frigoríficos nos Estados Unidos (JBS), obras de estradas, portos e
aeroportos em países da América Latina e da África (Odebrecht, OAS, Camargo
Correa etc.), os quais não renderam
empregos no Brasil e ainda estão com dívidas junto ao BNDES e ao tesouro
nacional.
Foi
quando começou o tiroteio generalizado para ver quem iria pagar pela crise. Só
mesmo o séquito de Brasília não percebeu as consequências negativas de tais
políticas governamentais para a queda do padrão de vida das pessoas e o aumento
acelerado do descontentamento. No final
de 2012 e início de 2013 já se percebia, nos grandes centros urbanos do
país, os primeiros ensaios das grandes
manifestações que ocorreram em junho
de 2013 – quando, ficou claro e patente, que a política de conciliação promovida pelo lulismo estava com os dias
contados, que a explosão de insatisfação revogava o monopólio do PT sobre as
manifestações de rua e, mais do que isso, que o modelo adotado pelo lulismo gerou enorme frustração não apenas nas
classes médias, mas também na juventude, no operariado e em segmentos populares.
Vale
lembrar que nesse período, de 2011 a
2013, o ex-presidente estava
empenhado em viagens pela América Latina e países da África, nos jatinhos da
Odebrecht e Camargo Corrêa (os registros da Infraero, depoimentos de
pilotos das aeronaves e de diretores das empreiteiras podem atestar todos os
voos e destinos), fazendo lobby para
obras financiadas pelo BNDES, enquanto recebia vultosas doações para o
Instituto Lula e pagamentos para a empresa de palestras LILS, além de curtir
merecido descanso no sítio de Atibaia.
Sobre
a efervescência política e o quadro de crise, o governo Dilma tratou de enrolar o país com promessas evasivas e
medidas jamais colocadas em prática, entre as quais a realização de suposto
plebiscito para a reforma política. O PT, através de seus movimentos
sociais, conseguiu conter parte da rebeldia. A esquerda não soube dar direção ao movimento das ruas, a grande
imprensa criminalizou/fantasiou os Black Blocs e o governo Dilma retomou a
frágil governabilidade com inúmeras concessões – ao empresariado (mais isenções
fiscais), aos banqueiros (elevação dos juros), ao agronegócio (anistia e refinanciamento
de dívidas) e aos políticos (benesses nas emendas de deputados e senadores) –
até as eleições de 2014.
O lulismo tratou de
caracterizar as manifestações de 2013 como “coisa da direita”, estimulada pela
grande mídia e pelo “imperialismo”. É o que Lula afirma até hoje sobre as jornadas de
2013.
Dilema: O papel da esquerda era desconsiderar
o grau de insatisfação da população, inclusive das classes médias, ou
aprofundar a crítica ao lulismo e ao governo Dilma com ampliação e organização
dos trabalhadores e dos movimentos sociais?
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Manifestação na Avenida Paulista, São Paulo, em 20 de junho de 2013 Foto: Marcos Santos/USP Imagens |
5–
A fraude eleitoral de 2014 e a rendição ao ajuste neoliberal
A eleição de 2014 foi, provavelmente, a mais
suja do período pós-ditadura militar. Não só pela quantidade de dinheiro
colocada nas campanhas dos principais candidatos, mas pelo baixo nível dos ataques pessoais nas redes sociais, a montagem de agências de mentiras e intrigas
e a ausência de debate sobre os reais
problemas do país. O que vigorou foi um jogo sórdido de armações sem
precedentes. Os eleitores foram enganados em todos os sentidos, tanto no
discurso da situação (Dilma negava
qualquer problema econômico e social) como no discurso da oposição (Aécio negava qualquer medida restritiva
contra projetos sociais). As campanhas mais honestas de Marina Silva, então
no PSB, e de Luciana Genro, do PSOL, não chegaram ao segundo turno. Dilma foi
eleita com apoio de apenas 38% do eleitorado, a maioria ficou na oposição, no voto em branco, no voto nulo e na
abstenção.
A fraude foi consumada nas primeiras
semanas após o segundo turno, quando a
presidente reeleita:
a)
interferiu no câmbio,
b)
aprovou os cortes de benefícios sociais e
c)
colocou no Ministério da Fazenda o vice-diretor do Bradesco, Joaquim Levy, conhecido economista
neoliberal e defensor de medidas ortodoxas de austeridade.
Ou
seja, Dilma ganhou com discurso
contrário ao de Aécio, mas logo depois das eleições assumiu o programa de Aécio,
fortemente bombardeado pela esquerda no processo eleitoral.
Em
pouco tempo, no final de 2014 e
primeiros meses de 2015, a base de sustentação de Dilma (38% do eleitorado)
ficou reduzida a pó.
A
situação dela se complicou ainda mais porque tentou assumir o controle da Câmara dos Deputados com candidato do PT
contra a articulação do MDB, que tinha maior número de parlamentares e amplo
apoio no leque partidário mais
conservador, o qual, diga-se de passagem, foi eleito em aliança com o PT e com recursos financeiros captados
ilicitamente nos governos do PT.
Vale
lembrar que no processo eleitoral o PT
deu muita força à Rede Record, da Igreja
Universal, e a vários grupos
evangélicos extremamente conservadores, como contraponto às correntes
influenciadas pela Teologia da Libertação mais críticas e identificadas com os
movimentos sociais e partidos de esquerda. Ou seja, o lulismo construiu a sua própria forca na traição aos eleitores,
com a mudança radical de programa econômico e no racha com a articulação do
aliado Eduardo Cunha, do MDB. Mais uma vez, vale lembrar, foi Lula quem impôs o nome de Michel
Temer para compor a chapa com Dilma. [Como
a nossa memória é seletiva! Lembramos, às vezes, somente daquilo que queremos
ou gostamos de lembrar!]
Todos
eles, na comemoração eleitoral de 2014, estavam felizes com a continuidade de
um esquema bem sucedido desde os idos do “mensalão”. Vale lembrar, também, que o bispo Edir
Macedo foi o único “capo” da grande mídia a comparecer ao beija-mão de
Dilma no dia 1º de janeiro de 2015. Parece fácil e cômodo dizer que as
manifestações pelo impeachment eram
coisa de “coxinhas” da classe média, da direita, fomentada pela TV Globo, pela
FIESP e pelo imperialismo dos Estados Unidos.
Pode
ter tudo isso mesmo, mas bem antes disso
algo já estava errado não no campo conservador e de direita, mas especialmente
na conduta política e ética do lulismo e no fracasso das políticas sociais
precárias, no fim do projeto de conciliação e na incompetência política e
econômica dos governos Dilma. Não é por
acaso que em tais governos tenham crescido a direita e o conservadorismo, e
que nesses governos tiveram destaques
figuras como:
a) José Sarney,
a) José Sarney,
b)
Edison Lobão,
c)
Renan Calheiros,
d)
Romero Jucá,
e)
Jader Barbalho,
f)
Eliseu Padilha,
g)
Geddel Vieira Lima etc.
Dilema: O papel da esquerda era incorporar o discurso vitimista do lulismo contra o
racha da aliança PT-PMDB ou denunciar o caráter
fisiológico e conservador da aliança que governou o Brasil durante 13 anos?
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OPERAÇÃO LAVA JATO Como funcionava o esquema de propinas em três diretorias da Petrobras |
6–
O avanço da Lava Jato e o novo protagonismo da Polícia Federal, do Ministério
Público, do Judiciário e do Supremo Tribunal Federal
Em
meio ao desgaste e esgotamento do
projeto de poder do lulismo, ganha protagonismo, em meados de 2014, as
investigações da força-tarefa da Lava Jato, que, a partir de esquemas de
sonegação e evasão de divisas, operados por doleiros, desvenda o esquema de
propinas e superfaturamento de obras e serviços na Petrobras, onde três diretorias atuavam na captação de recursos
ilícitos para políticos do PP, MDB e PT.
Dessa
vez, ao contrário do que tinha ocorrido em operações anteriores em casos
escabrosos de corrupção (Banestado – 2003; Satiagraha – 2008; Castelo de Areia
– 2009), a nova força-tarefa (integrada pela Polícia Federal, Ministério
Público Federal, Judiciário Federal, Receita Federal) teve o cuidado de dar
cada passo nos limites dos novos recursos legais disponíveis e com ampla
exposição na mídia, de maneira a evitar que tais ações fossem invalidadas ou
arquivadas nas instâncias superiores.
O grande avanço em relação
às operações anteriores é que uma lei de 2013, sancionada pela presidente
Dilma, possibilitou a utilização de colaborações (delações) premiadas como forma de negociar
benefícios aos criminosos confessos que revelassem os crimes de outros participantes
nos esquemas de corrupção. Com tais instrumentos legais, a Operação Lava Jato conseguiu condenar mais de 100 envolvidos nos
desvios de recursos públicos da Petrobras, entre os quais grandes
empresários, lobistas, doleiros, altos funcionários e políticos de vários
partidos.
O lulismo tratou de espalhar
a versão de perseguição política ao governo Dilma e ao PT. [E
como tem gente que “bebe” desta versão!] Mais adiante ampliou a versão
de perseguição ao Lula, tornado candidato do PT, e aos políticos em geral. Mas,
na verdade, o maior número de condenados
pela Lava Jato não é de políticos e, entre os políticos, o maior número de
envolvidos nos processos não é do PT. O PT e Lula jamais deram respostas
minimamente convincentes aos crimes denunciados. Trataram apenas de se
colocarem como vítimas, ora da Polícia Federal, ora do Ministério Público, ora
do juiz Sérgio Moro, ora do TRF-4, ora do STF, ora do “Partido da Justiça”, como se o desvio de recursos da Petrobras
não tivesse tirado bilhões de reais do povo brasileiro, não tivesse sustentado campanhas milionárias de
coligações partidárias e não tivesse abastecido
os bolsos de inúmeras pessoas, inclusive
de políticos do PT. Que a direita pratique corrupção é a praxe no Brasil,
mas que o PT tenha se envolvido foi algo muito mais danoso ao processo político,
na medida em que frustrou a esperança de milhões de trabalhadores e destruiu a
credibilidade pública de vários segmentos da esquerda.
A Lava Jato, queiramos ou
não, mudou o olhar de boa parte da sociedade brasileira sobre o modo de fazer
política e as relações do capital privado com o Estado. A esquerda não pode
desconhecer algo tão concreto apontado por pesquisa recente do Datafolha, de abril de 2018, na qual 84% dos entrevistados aprovam a
continuidade da Lava Jato no combate à corrupção. O que fazer? [O PT gostaria de acabar ou “domar” a Lava Jato, a chamam de “farsa”
e nisto está junto com o MDB, o PP, o PTB e tantos outros partidos e grupos
políticos que sempre ele combateu!]
Dilema: O papel da esquerda é passar por
vítima da Lava Jato, ignorar os desvios
do lulismo, ou mobilizar e conscientizar os trabalhadores contra a
corrupção dos empresários, banqueiros, latifundiários e das velhas oligarquias
da política?
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Sessão do Congresso Nacional em que se votou pelo IMPEACHMENT de Dilma Rousseff O ex-aliado, Eduardo Cunha, comandou o processo |
7– A
derrocada da conciliação lulista e da precária estabilidade econômica e
política
Em 2015, com as grandes manifestações
contra o governo Dilma, com foco no impeachment
da presidente reeleita, o PT conseguiu
arrastar alguns setores da esquerda (partidos, movimentos sociais, entidades de
classe etc.) na defesa do seu projeto contra o ataque de instituições da
República e do conservadorismo de direita. No final do ano o lulismo sentiu
o estrago provocado por seus próprios erros, em especial sobre a aliança com o MDB de Eduardo Cunha e de
Michel Temer. O primeiro porque comandou o processo de impeachment na
Câmara dos Deputados e o segundo porque traiu a coligação, a presidente Dilma,
o PT e principalmente o lulismo, que havia colocado Michel Temer na linha da
sucessão presidencial.
Ao
sentir a barra pesada, o desastre acelerado em 2016 e 2017, o lulismo criou nova história para a sua
própria trajetória:
1º)
diante das investigações da Lava Jato sobre o ex-presidente, com vários
processos em Curitiba, Brasília e São Paulo, adotou a figura do pré-candidato
presidencial para fazer caravanas pelo Brasil e tentar blindá-lo de condenações
por corrupção;
2º)
diante do impeachment, apelou para
partidos e movimentos de esquerda, que há
muito tempo não tinham relações com o lulismo, em busca de unidade
emergencial sob a alegação de que todos
estavam ameaçados pelos “golpistas” e “fascistas”;
3º) diante
da iminência de Lula se tornar inelegível, por causa da Lei da Ficha Limpa, e
da própria prisão do ex-presidente, o lulismo tratou de sensibilizar a sua
militância e outros setores da sociedade com foco nas eleições (Eleição sem Lula é fraude), na
democracia (Direito de Lula ser
candidato) e na liberdade (Lula
livre), de maneira que:
* os erros do lulismo,
* o fracassado governo Dilma,
* os escândalos da Petrobras,
* os processos e condenações por corrupção,
caíssem rapidamente no
esquecimento da população.
Com um batalhão de advogados
e fortíssimo esquema de comunicação nas redes sociais, o lulismo tratou de
atacar as ações e os personagens da Lava Jato, a grande imprensa, os
integrantes das instituições do Estado (desde juízes e procuradores até ministros do STF)
e ao mesmo tempo realizar atos e manifestações pelo país afora, principalmente
com massas mobilizadas pelo MST e MTST.
Tais ações
visam principalmente desqualificar todas as forças políticas que se opõem ao
lulismo, ao PT e às manobras de impunidade pelos crimes de corrupção; tratam de rotular e estigmatizar todo mundo como sendo “golpista” e “fascista”.
Não é só a direita que
critica o lulismo e o PT, mas também os liberais, os socialdemocratas, os anarquistas, os
autonomistas, pessoas sem definição político-ideológica e muita gente da esquerda
socialista e comunista.
Ao
mesmo tempo em que consegue sensibilizar com discursos cada vez mais emocionais e messiânicos, o lulismo também
estimula forte oposição ao PT e a seus novos e velhos aliados, contribui para a
radicalização das posições e embaralha um processo eleitoral que poderia
(poderia?) ter conteúdo renovador e promissor para a esquerda se não fosse a
figura emblemática de Lula, que está preso, condenado, inelegível, mas ainda
assim interfere no processo eleitoral
não para liderar um projeto de Nação, mas para tentar salvar a própria pele;
não para superar todo o estrago feito por seu aliado Michel Temer, mas para restaurar a velha ordem de alianças com as
oligarquias políticas que participaram dos governos Lula e Dilma. [Como o próprio Lula admitiu quando sua caravana passou por
Minas Gerais, dizendo que “perdoava” os golpistas do MDB e demais partidos de
sua ex-base aliada!]
O
que o lulismo propõe que não seja restabelecer a “harmoniosa conciliação” de
antes da Lava Jato e da traição de Cunha e Temer?
Dilema: O papel da esquerda é reforçar o lulismo como salvação do Brasil ou
retomar o debate de luta anticapitalista e de sociedade justa, igualitária,
livre e democrática?
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UM PAÍS RACHADO: "Coxinhas" versus "Mortadela" |
8–
A fase mística do lulismo aprisiona a esquerda no processo eleitoral de 2018
Depois
do fracassado projeto de conciliação de classes, da explosão de insatisfação da
população, do impeachment de Dilma,
do envolvimento da cúpula do lulismo – junto com seus aliados da direita – nas
bandalheiras da Petrobras, BNDES, CEF, fundos de pensão etc., era de se esperar que o PT fizesse um
processo de autocrítica, avaliasse
seus erros e desvios e promovesse uma renovação geral de seu programa e de seus
quadros dirigentes. Nada disso foi feito.
Ao contrário, subordinado ao lulismo, o
PT insiste que foi vítima de golpe, é vítima de perseguição, é vítima do
fascismo – e se contrapõe a tudo isso com o martírio em praça pública de
sua maior liderança, que não seria mais
um ser humano, mas um mito no patamar de Tiradentes, Mandela, Gandhi, Luther King e Jesus Cristo. [É de doer!]
A derradeira exortação de messianismo
ativa o emocional das massas, clama pelo
fanatismo, abandona em definitivo qualquer expectativa de projeto político
construído coletivamente com a elevação das consciências, análise crítica e
dialética, baseada na correlação de forças e na conjuntura; mas, ao contrário, o discurso do lulismo se atém na profissão
de fé contra todas as evidências da realidade:
a)
Como tal fanfarronice mesclada na mística religiosa e dosada pelo egocentrismo
pode contribuir para a caminhada da esquerda?
b)
O que pretende?
c)
Que a salvação virá pelo sacrifício humano transposto à condição divina?
d)
O que sobra de reflexão e de proposta
política a esses setores da esquerda que ficaram atolados nos escombros do
lulismo?
e) Como
sair da arapuca para retomar ao Projeto
de Nação?
f)
Com quais princípios e valores a
esquerda se apresenta para a sociedade brasileira?
A
essa altura dos acontecimentos, com todas as informações disponíveis, parece sem sentido que algum cidadão ou
cidadã ainda consiga aceitar que o ex-presidente Lula e seu grupo dentro do PT
não tenham responsabilidades sobre os inúmeros erros políticos e gravíssimos
desvios éticos praticados pelo lulismo. Querer inverter os fatos e esconder
a verdade é manobra que atenta contra a inteligência dos brasileiros.
Ninguém com alguma dose de
sensatez, conhecimento e consciência aceita mais o cinismo desenfreado e
egocêntrico do lulismo, que jogou o PT numa arapuca desastrosa (vide eleições de 2016), tenta
imobilizar o jogo político-eleitoral de 2018 e ainda quer arrastar toda a
esquerda – movimentos sociais e partidos – para a marcha delirante da
autodestruição. O que sobrará além da ladainha dos beatos?
Dilema: o papel da esquerda é fazer coro ao
lulismo durante o processo eleitoral ou disputar
as eleições com propostas próprias e independentes, expondo visão crítica
sobre o lulismo e a direita?
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LULA em ato na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, antes de ir para a prisão em Curitiba (PR) São Bernardo do Campo (SP), 7 de abril de 2018 |
9–
O que não dá para esquecer sobre a trajetória do lulismo
O lulismo entregou para a direita,
seguidamente, várias bandeiras que já
foram empunhadas pela esquerda, entre as quais:
a) a
bandeira da ética na política,
b)
a bandeira do combate à corrupção e
c)
a bandeira da luta contra a impunidade – em particular a impunidade aos ricos e
poderosos praticantes dos crimes do colarinho branco, como a sonegação fiscal,
evasão de divisas, desvio do dinheiro público e as várias formas da corrupção.
E
como o lulismo deixou de atuar
nessas questões, transferiu para o
conjunto da esquerda a visão equivocada de que lutar por ética, contra a
corrupção e a impunidade é coisa da direita, de “coxinhas” e da elite. Por
isso mesmo tanta gente comprometida politicamente com a esquerda não se
manifesta contra as bandalheiras comprovadamente praticadas pelo lulismo. Temem
ser chamados de “golpistas”.
A
verdade é que o lulismo em nada
contribui para o avanço da esquerda. Ao contrário, só atrapalha. A esquerda patina há muitos anos por obra
da contaminação do lulismo, que empata a luta, impede o livre debate e anula o
surgimento de novos protagonistas e novas lideranças. Não se trata de uma
questão de fé, mas de racionalidade e consciência das pessoas. Em entrevista
recente para a Folha de S. Paulo, em
02.05.2018, o pensador de esquerda Noam
Chomsky voltou a lembrar o que nos incomoda há vários anos. Disse ele: “a esquerda deveria fazer uma autocrítica, pensar nas
oportunidades que foram desperdiçadas porque sucumbiu à corrupção”.
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LULA & MARISA No estádio do ITAQUERÃO construído pela ODEBRECHT como um "presente" ao ex-presidente |
Enquanto
isso não acontece, vale recordar o que não pode ser esquecido sobre o lulismo:
1) Desde a campanha eleitoral
de 2002, e nas disputas municipais e estaduais, o lulismo sempre optou por alianças com a direita e pelo isolamento da
esquerda.
2) O lulismo combateu e expulsou as correntes de
esquerda do PT, além de ter atuado para enfraquecer os movimentos sociais e o sindicalismo combativo em
seus governos.
3) Os governos Lula e Dilma abandonaram os programas de reforma agrária
e fortaleceram muito mais o agronegócio do que a agricultura familiar.
4) Os governos Lula e Dilma não demarcaram as reservas dos povos
indígenas e deixaram de regularizar
milhares de áreas dos quilombolas.
5) Os governos Lula e Dilma aprovaram inúmeras obras altamente danosas
ao meio ambiente, inclusive as usinas de Belo Monte e no rio Madeira.
6) Os governos Lula e Dilma mantiveram as taxas de juros sempre acima
de 7,5% e cortaram verbas sociais para pagamento da dívida pública aos
banqueiros e rentistas.
7) Os governos Lula e Dilma promoveram ampla “desoneração” (isenção
de impostos) dos grandes grupos
empresariais com enorme desfalque aos cofres públicos.
8) Os governos Lula e Dilma fizeram reforma da previdência danosa aos
trabalhadores e cortaram benefícios sociais (auxílio saúde, salário
desemprego etc.) dos mais pobres.
9) Os governos Lula e Dilma não reajustaram no mesmo nível da inflação
as faixas de pagamento do imposto de renda, o que retirou recursos dos trabalhadores e dos assalariados em geral.
10) Os governos Lula e Dilma usaram bilhões de recursos públicos do
BNDES para financiar obras em outros países, que favoreceram as grandes
empreiteiras e deixaram de gerar empregos no Brasil.
Tudo
isso é verdade.
*
HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA é jornalista desde 1972 com atuação
na imprensa diária e em publicações alternativas e de esquerda, foi colunista
do jornal Brasil de Fato e editor
das revistas Sem Terra e Caros Amigos. Atualmente colabora com a
revista Vírus Planetário. É professor de jornalismo da PUC-SP desde
1982 e membro da diretoria da Associação dos Professores da PUC-SP (Apropuc).
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