Saúde dos brasileiros em perigo!
Brasil será “paraíso dos agrotóxicos”,
diz pesquisador
Entrevista
com Fernando Carneiro
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) do Ceará, Coordenador do Grupo Temático Saúde e Ambiente da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Observatório da Política
Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas
(OBTEIA)
Anna Beatriz
Anjos
Projeto de Lei em discussão no
Congresso Nacional coloca em
risco não só aos trabalhadores do
campo, mas também aos consumidores dos alimentos expostos aos agrotóxicos.
Fernando Carneiro garante que as
mudanças na lei significam um
“retrocesso gigantesco”
![]() |
FERNANDO CARNEIRO |
Na
última segunda-feira (25 de junho), a comissão especial criada na Câmara dos
Deputados para discutir o projeto de lei
[PL] 6.229/2002 [baixe-o, clicando aqui],
que propõe alterações na atual
legislação de agrotóxicos, aprovou texto [baixe-o, clicando aqui]
que divide opiniões. De um lado, empresários
do agronegócio comemoram o parecer do relator Luiz Nishimori (PR-PR) sob o
argumento de que moderniza a aprovação e regulação dos pesticidas. Do outro, organizações de promoção à saúde coletiva e
defesa do meio ambiente afirmam que o relatório flexibiliza
significativamente o processo, o que representa riscos não só aos trabalhadores
do campo, mas também aos consumidores dos alimentos expostos aos agrotóxicos.
Para Carneiro, um dos pontos
mais críticos trazidos pelo texto – que agora vai a plenário – é a centralização das avaliações de novos produtos e autorização de
registros no Ministério da Agricultura, em detrimento da estrutura
tripartite de regulação – a lei em vigor
determina que os ministérios da Saúde e Meio Ambiente também atuem nas análises.
“O processo fica concentrado em um órgão totalmente dominado pelo agronegócio,
então o risco é de realmente haver a aprovação de substâncias que possam causar
todo tipo de problema”, declara [baixe a lei em vigor sobre os agrotóxicos,
clicando aqui].
![]() |
LUIZ NISHIMORI Deputado Federal pelo PR do Paraná - relator da comissão da Câmera que analisa o projeto sobre agrotóxicos |
Eis
a entrevista.
Por
que o senhor considera que o PL 6.229/2002 represente um retrocesso?
Fernando
Carneiro: Há
60 anos, Rachel Carson, bióloga
norte-americana, escreveu “A primavera
silenciosa”, um clássico da literatura ambientalista, que marca o movimento
ambiental mundial e ficou muitos meses entre os livros mais vendidos dos
Estados Unidos. Teve uma repercussão tão grande que o governo americano criou
uma comissão de pesquisas comprovando tudo o que ela havia pesquisado, o que
gerou, inclusive, a criação da agência de proteção ambiental nos Estados
Unidos. Nós, em 2015, publicamos o dossiê
Abrasco [baixe-o, clicando aqui],
com quase 700 páginas e mais de 60 autores colocando isso. Só que o que a gente
vê hoje com esse PL é que, em vez de
fazermos um movimento para cuidar da saúde da população e do meio ambiente,
estamos vendo exatamente o contrário. O
PL é a liberalização, o desmonte do aparato regulatório brasileiro do registro
de agrotóxicos, com a perspectiva de
permitir, inclusive, que substâncias muito mais danosas à saúde adentrem nosso
mercado. Estamos assistindo a um retrocesso gigantesco. Era para estarmos
diminuindo, mas estamos potencializando o uso.
![]() |
Rachel Carson foi autora de um livro que revolucionou a maneira de se tratar o meio ambiente: A PRIMAVERA SILENCIOSA - Editora Gaia, 2010 (Brasil) |
Quais
riscos – sociais, ambientais e para a saúde pública – essa proposta representa?
Fernando
Carneiro: Vai
ter um impacto direto na saúde do trabalhador, do consumidor brasileiro, da
população. Você de repente concentra [o
processo de avaliação e aprovação dos agrotóxicos] na agricultura, tirando o
papel da saúde e do meio ambiente de olhar a questão por seus ângulos – a
saúde pela Toxicologia e o meio ambiente pela Ecotoxicologia. O processo fica concentrado em um órgão
totalmente dominado pelo agronegócio, então o risco é de realmente haver a
aprovação de substâncias que possam causar todo tipo de problema, tanto de
saúde quanto de contaminação do ambiente, o que representa um risco à vida como
um todo. Os danos causados pelos
agrotóxicos são de várias ordens. Isso que querem chamar de defensivo é um veneno, causa efeitos
imediatos e crônicos, desde câncer e até diminuição de QI em crianças. Isso
para não falar nos impactos na cadeia alimentar, na nossa fauna. É muito grave o que está acontecendo.
O
uso de agrotóxicos ainda parece um tema distante na realidade urbana – não são
todos os consumidores que se preocupam com isso quando vão ao mercado, por
exemplo. Quais os riscos à saúde desse consumidor final?
Fernando
Carneiro: Para
fazer estudos de seguimento e analisar essas questões, pode-se levar 20, 30
anos. São estudos caros e complexos; há a carga hereditária e a carga ambiental
de doenças, é necessário que os estudos controlem esses fatores. Mas isso não
tem sido prioridade na ciência brasileira. O
agronegócio capitaliza o lucro e socializa o prejuízo: emitir uma amostra
de agrotóxico no ambiente pode custar mil reais, e poucos laboratórios fazem
isso no Brasil. Estamos liberando uma
substância que não temos a capacidade de monitorar e vigiar. É caro e o
ônus fica para o setor público – o ônus
da pesquisa, da vigilância –, enquanto eles capitalizam em cima disso – e a maior parte dos agrotóxicos no Brasil nem
paga imposto, em vários estados eles têm 100% de isenção. O que já se fez
nesse sentido foi por meio da Anvisa, através do Programa de Análise de
Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos [PARA]. A série histórica que apresentamos
no dossiê da Abrasco [com base em dados da Anvisa] dos últimos dez anos mostra
que 70% dos alimentos consumidos pelos
brasileiros têm uso agrotóxicos e 30% estão irregulares. Então, pelo menos, um terço do que a gente come
está fora do padrão, ou seja, tem potencial de dano. Recentemente eles
mudaram para essa metodologia de avaliação de riscos e, de um ano para o outro,
de repente, esses 30% viraram 1%. A substância é carcinogênica, mas na
avaliação de risco, que o PL quer implantar, você tem premissas. Quais são
elas? A pessoa vai estar com luva e com
máscara. Estando com isso, o risco é aceitável. Agora, vamos olhar para a realidade do Brasil. Como é possível aceitarmos
premissas desse tipo sendo que o
trabalhador não usa [as proteções], é caro, o patrão não paga o equipamento,
que também não é adequado à nossa realidade, é quente. A premissa da
avaliação de risco é que tudo isso está funcionando muito bem, cabe tudo no
modelo teórico. Esse é o cavalo de troia
desse projeto de lei: mudar de avaliação de perigo para avaliação de risco.
Outra
questão apontada como delicada pelos críticos do projeto é a criação do
registro temporário para produtos que já sejam registrados em pelo menos três
países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e que obedeçam ao código da Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO). Você pensa da mesma forma?
Fernando
Carneiro: Estão
dizendo que existe uma tal burocracia, que leva-se até oito anos para obter o
registro de um agrotóxico no Brasil, mas isso é fake news porque compara a estrutura de países como Brasil e
Estados Unidos. Na Anvisa há 20 ou 30
técnicos para analisar os pedidos de [registro] de agrotóxicos, na FDA [Food
and Drugs Administration], a similar norte-americana, são 700. Aqui uma
empresa paga poucos mil reais para fazer o processo de registro, nos Estados
Unidos pode chegar a um milhão. A fila
aqui é grande porque não se investe na capacidade de órgãos reguladores e
porque é barato registrar, sendo que o
registro é eterno – para você tirar um produto de circulação, tem que fazer
uma reavaliação a partir de denúncia etc. O
registro temporário é para forçar a barra e, em vez de investir na capacidade
de análise dos órgãos – fazendo concurso, pagando equipe –, colocar uma faca no pescoço do órgão e
dizer “se você não liberar o pedido em dois anos, o produto entra no mercado”.
Eles falam dos problemas, mas o Projeto de Lei não é solução para nenhum deles.
Ele está longe de resolver o problema da população, só resolve o problema das
empresas. Vai virar o paraíso dos
agrotóxicos, porque já é barato e eterno, vai poder tudo.
![]() |
Após examinar quase 2.500 amostras a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou uma lista dos alimentos mais afetados pelos produtos químicos no Brasil |
Ao
discutir a flexibilização da legislação de agrotóxicos, o Brasil segue uma
tendência mundial ou vai na contramão dos países mais desenvolvidos?
Fernando
Carneiro: Vai
totalmente na contramão. Na Europa,
foram colocadas mais restrições [ao uso de agrotóxicos]; a própria China,
que tem um modelo selvagem de desenvolvimento, tem feito ações desse tipo. O Brasil está na contramão da história
mundial. Lembra um pouco a década de 80, na época de Cubatão, em que os
militares diziam “poluição, venha a nós,
poluição é desenvolvimento”. Está muito parecido.
Em
contraposição ao PL 6.229/2002, seus críticos defendem a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA),
transformado em projeto de lei [clique aqui para baixar este projeto] que tramita na
Câmara. É possível reduzir o uso de agrotóxicos sem repensar o modelo de
produção agropecuário que hoje vigora no Brasil?
Fernando
Carneiro: O
Brasil adotou um modelo que chamamos de
neoextrativismo. Basicamente, nas últimas décadas nos desindustrializamos e a economia foi puxada pela exportação de
bens primários, tanto agrícolas como minerais. Houve o tempo da bonança, mas
depois, com a crise e a queda dos preços, esse modelo entrou em colapso. O agrotóxico simboliza o modelo capitalista
selvagem. Um modelo que distribua renda e preserve os ecossistemas, acho
que seria possível apenas com a aplicação plena da agroecologia.
Recentemente
estive no Encontro Nacional de
Agroecologia, o ENA, em Belo Horizonte, onde mais de 70% [do público] era
de agricultoras e agricultores. Eles
contam que começam a fazer a transição agroecológica, aí vem o vizinho com o
avião, [pulveriza] o agrotóxico e as pragas fogem para onde? Para as áreas onde
não há veneno. Isso causa um problema. Outra situação: escutei vários
agricultores que têm caixas de abelhas, aí vem o avião e mata tudo. Vem a
deriva [produzida quando o agrotóxico ultrapassa os limites da área que se pretende
atingir], vai para a propriedade vizinha e dizima as abelhas. Há também casos de aviões sendo utilizados
como forma de expulsar indígenas de suas terras, usados como arma de guerra.
O PRONARA surge quase como uma transição: vamos
pelo menos reduzir o uso de agrotóxicos e trabalhar para fortalecer a
agroecologia, porque é muito desigual o apoio de um modelo em relação ao
outro. Quando se definiu que 30% da
merenda escolar tem que ser proveniente de agricultura familiar,
preferencialmente agroecológica, foi uma canetada que ajudou a desenvolver a
agroecologia em todo país. Uma simples medida como essa. É possível criar
formas de promover um modelo em relação ao outro, pois historicamente a gente
vê o contrário. O agricultor que quer
plantar sem veneno tem até hoje dificuldade de conseguir empréstimo no banco,
porque se exige a nota fiscal do veneno, do adubo químico. É muito difícil
convencer o gerente que não é necessário gastar com isso, que é possível gastar
com outras coisas.
![]() |
Avião pulverizando plantação de cana-de-açúcar |
SÓ PARA LEMBRAR:
* Cerca de 30% dos alimentos no país já estão
fora do padrão de segurança
* Pesticidas podem diminuir QI das crianças
e provocar vários tipos de câncer
* Riscos se agravam pela falta de capacidade
do Estado de monitorar o uso
Comentários
Postar um comentário