Pior que é verdade!

 A cultura do ódio está na moda!

 Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de “A Invenção de uma Bela Velhice” 

Mirian Goldenberg com a mão enfaixada

Gente estúpida; gente hipócrita, assim cantou Gilberto Gil

Domingo, 17 de março, 16 horas: estava caminhando no calçadão de Ipanema quando um morador de rua, carregando três sacos de lixo, correu na minha direção com uma barra de ferro gritando: “Passa a bolsa, passa o dinheiro”. Assustada, corri e tropecei no meio-fio. Caí, esfolei os joelhos e machuquei a mão esquerda. Um engraçadinho brincou: “Por que você não perguntou se ele aceitava Pix?”. 

No dia seguinte, às 7 horas, estava na porta de uma clínica ortopédica perto da minha casa. Quando a clínica abriu, às 8 horas, fui a primeira a entrar. O ortopedista chegou atrasado e só me atendeu às 8h47. Nesse horário, 17 pessoas já estavam na pequena sala de espera. 

Eu e meu marido éramos os únicos de máscara, em meio a um festival de tosses e espirros. Uma mulher perguntou: “Por que vocês estão usando máscara?”. Respondi que a minha sogra, de 89 anos, teve uma gripe violenta, estava anêmica, com baixa imunidade e foi internada no hospital. A mulher, em tom de deboche, disse: “Para que usar máscara? Que bobagem, a pandemia já acabou há muito tempo. É só uma gripezinha”. 

Pessoas que se recusam a usar máscaras, quando necessário, possuem transtornos antissociais

A filha dela, que estava brincando com o celular, esbarrou na simpática senhora, de 94 anos, com quem eu estava conversando. Imediatamente, a menina pediu desculpas. A mãe gritou com ela: “Por que você está pedindo desculpas? Você não fez nada de errado. Deixa de ser idiota!”. 

Meu marido ficou chocado: “Que mulher estúpida. Ela deveria ter orgulho da filha que se desculpou educadamente. Uma mãe que grita com a criança, como se pedir desculpas para uma senhora de 94 anos fosse um pecado mortal. Está ensinando a filha a ser desrespeitosa e grosseira com as pessoas de mais idade. Que absurdo! O mundo está de cabeça para baixo!”.

Entrei na sala do ortopedista. Contei que caí e que os três dedos do meio da minha mão esquerda estavam doendo muito. “Você tem que fazer uma tomografia. Vou imobilizar sua mão e receitar analgésicos e anti-inflamatórios”. A consulta durou exatamente três minutos. 

Fiz a tomografia: não quebrou nada, mas o inchaço dos três dedos continuou e a dor também. Quinze dias com a mão enfaixada e, depois, mais sete dias apenas com o dedo do meio imobilizado. Depois de retirar a tala do dedo médio, o ortopedista, em uma consulta de dois minutos, orientou que eu fizesse dez sessões de fisioterapia. “Precisa?” “Precisa, se não fizer a recuperação vai demorar muito mais”. 

Sándor Ferenczi (1873-1933) foi um psicanalista húngaro, um dos mais íntimos colaboradores de Freud. Tornou-se famoso pelas experiências psicanalíticas

Ele prescreveu: “laser e massagem suave. Sinovite: terceiro dedo da mão esquerda”. Descobri que sinovite é uma inflamação na membrana sinovial, a camada fina de tecido que reveste as articulações, que pode ocorrer como resultado de traumas, como quedas e acidentes. 

Dia 10 de abril foi a minha primeira sessão de fisioterapia na clínica indicada. O fisioterapeuta que me atendeu fez laser e uma massagem suave na mão esquerda. A dor melhorou bastante e já consegui mexer os dedos no mesmo dia. 

Voltei no dia seguinte: outro fisioterapeuta me atendeu. Ele fez uma massagem tão bruta que gritei de dor. Falei que o ortopedista tinha recomendado massagem suave. O fisioterapeuta respondeu: “Médico não entende nada disso. Eu sou fisioterapeuta, sei que se não forçar os dedos você vai demorar muito mais a recuperar os movimentos”. 

Ele continuou mais alguns minutos forçando os dedos, apesar da minha dor. Os três dedos incharam muito, ficaram roxos e não consegui mais mexer a mão esquerda. Nunca mais voltei à clínica e os três dedos continuam, até hoje, inchados e roxos. 

Meu marido ficou indignado com a brutalidade do fisioterapeuta. 

“Essas pessoas são vampiras, sugadoras da saúde do nosso corpo e da nossa alma. Quanto mais ódio e violência elas destilam, mais se sentem poderosas e superiores. Peguei ranço de gente virulenta, caga-regras, que só quer destruir, desvalorizar e diminuir os demais; gente que grita, xinga, ofende, humilha, desqualifica a nossa dor. Você acaba se sentindo uma merda, uma bosta, impotente, à mercê de tanta gente estúpida, hipócrita, agressiva, arrogante e autoritária.”

E, como sempre, ele me deu uma boa ideia: “Por que você não escreve uma coluna para a Folha contando alguns casos do nosso cotidiano no Rio de Janeiro? O título poderia ser: ‘A cultura do ódio está na moda! Gente estúpida; gente hipócrita, assim cantou Gilberto Gil’”. 

Fonte: Folha de S. Paulo – colunas e blogs – Quinta-feira, 02 de maio de 2024 – Pág. B8 – Internet: clique aqui (Acesso em: 03/05/2024).

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