Solenidade do SSmo. Corpo e Sangue de Cristo – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 14,12-16.22-26 

Frei Alberto Maggi *

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas)

A Eucaristia nos une, nos torna iguais

Na narração da ceia de Jesus, o evangelista Marcos refere-se a dois temas: o primeiro é o da primeira aliança, quando Moisés pegou um livro, o livro da lei, leu-o para o povo, depois, em sinal de aceitação, aspergiu o povo com sangue de bezerros (cf. Ex 24,1-11); o segundo tema é o das duas partilhas dos pães e dos peixes, a primeira em terras judaicas (cf. Mc 6,35-44), a segunda em terras pagãs (cf. Mc 8,1-9). 

Marcos 14,12-16:** «No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava o cordeiro pascal, os discípulos disseram a Jesus: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” Jesus enviou então dois dos seus discípulos e lhes disse: “Ide à cidade. Um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro. Segui-o e dizei ao dono da casa em que ele entrar: ‘O Mestre manda dizer: onde está a sala em que vou comer a Páscoa com os meus discípulos?’ Então ele vos mostrará, no andar de cima, uma grande sala, arrumada com almofadas. Aí fareis os preparativos para nós!” Os discípulos saíram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus havia dito, e prepararam a Páscoa.»

Vamos ler o que o evangelista nos escreve, focaremos nos versículos principais (Mc 14,22-26), tendo em mente que Marcos havia sublinhado que era o primeiro dia dos Pães Ázimos, quando este pão sem fermento era comido para sacrificar a Páscoa. Neste jantar, não há referência à ceia pascal judaica, não há cordeiro porque Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, cuja carne será usada para enfrentar o êxodo, a libertação, e cujo sangue nos libertará da morte. 

Marcos 14,22a: « Enquanto comiam...»

O evangelista escreve “Enquanto comiam”, isto é uma repetição porque o evangelista já disse que eles estavam jantando e comendo (cf. Mc 14,18a), mas no primeiro aviso de que estavam jantando e comendo Jesus anunciou que um dos discípulos, Judas, o trairia (cf. Mc 14,18b). Então a repetição deste verbo “comer” indica que esta é a resposta de Jesus à traição do discípulo, ele responde ao ódio com amor

Marcos 14,22b: «... Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu corpo”.»

No original grego se diz: “tomou um pão” não é “o pão”, o que indicaria pão ázimo, mas “um pão”. É o pão típico palestino, pão redondo, e isso é importante, não tem animal. Num animal há partes melhores, que eram reservadas às pessoas notáveis; o livro da lei prescreve, por exemplo, que o peito e as coxas sejam reservados aos sacerdotes (cf. Lv 7,28-34). Mas não o pão, é o típico pão palestino, um pão redondo, que é bom em todas as partes. A participação na Eucaristia elimina hierarquias, importâncias e cria unidade.

E ele pronunciou a bênção”; aqui o evangelista refere-se à primeira partilha dos pães e dos peixes, quando Jesus pronunciou a mesma bênção. Prossegue dizendo que Jesus «partiu-o e entregou-lhes», portanto este pão aos seus discípulos, «dizendo: Tomai, isto é o meu corpo». Jesus identifica-se com este pão, Jesus convida os discípulos a comer, a tomar este pão para aderir à sua pessoa. Não existe mais o rolo da lei, o livro da aliança, mas existe uma pessoa a quem dar plena adesão

Marcos 14,23: «Em seguida, tomou o cálice, deu graças, entregou-lhes e todos beberam dele. »

O evangelista continua dizendo que, “em seguida tomou o cálice”, e aqui o verbo muda, aqui não há bênção, mas “deu graças”, porque na segunda partilha dos pães e dos peixes em terra pagã Jesus agradeceu (cf. Mc 8,6), e “agradecer” era um verbo conhecido naquela cultura. Portanto, na Eucaristia, o evangelista combina a bênção, típica do judaísmo, e a ação de graças, típica do paganismo.

A Eucaristia não divide, mas une realidades completamente diferentes.

Embora o evangelista não tenha sublinhado que o pão foi comido, deste cálice ele diz que “todos beberam dele”. Não basta dar adesão à figura de Jesus, é preciso também aceitar o que o cálice implica, ou seja, o seu fim. 

Marcos 14,24: «Jesus lhes disse: “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos.»

Jesus nos conta o significado do que há neste cáliceE disse-lhes: ‘Este é o meu sangue da nova Aliança’” (a tradução não é a mesma do Lecionário da CNBB). Portanto, Jesus não diz “o meu sangue da aliança”, mas “o sangue da minha aliança”. Jesus substitui a aliança; a aliança já não se baseia na observância da lei, mas na aceitação do seu amor. Enquanto o sangue dos touros, que foi aspergido sobre o povo (cf. Ex 24,6-8), foi um sangue que caiu externamente sobre as pessoas, este sangue, que é a própria vida de Jesus, funde-se, penetra no íntimo da pessoa e a une a ele. Afinal, não nos esqueçamos que o sangue, no mundo judaico, é a vida. O evangelista realiza o que anunciou sobre a atividade de Jesus: Jesus teria batizado, isto é, imerso, impregnado as pessoas no Espírito Santo, na mesma força da vida divina, e a Eucaristia é onde acontece essa efusão. O verbo “derramar” pertence ao salmo 79 (vers. 6), que foi lido na noite de Páscoa, onde se dizia que a ira de Deus era derramada sobre as nações. Eis que, com Jesus, não será derramada a ira de Deus, mas o seu sangue, símbolo da sua efusão e da sua vida, derramado sobre todos. 

Marcos 14,25-26: «Em verdade vos digo, não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”. Depois de terem cantado o hino, foram para o monte das Oliveiras.»

Jesus conclui anunciando que “não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que o beberei novo, no Reino de Deus”, ou seja, uma nova qualidade de amor, que ainda não está disponível aos discípulos porque eles não entenderam qual será o amor que o leva a dar a vida pelos seus.

A conclusão é estranha. O evangelista escreve “Depois de cantar o hino saíram”, por que saem? O livro do Êxodo proibia sair na noite de Páscoa. Eis que a comunidade dos discípulos com participação na Eucaristia já não está vinculada à lei, à obediência à lei de Deus, mas é animada pelo Espírito e o Espírito liberta, este é o fruto da Eucaristia. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Não somos nós que transformamos Jesus Cristo em nós, como fazemos com os outros alimentos que tomamos, mas é Jesus Cristo que nos transforma nele.»

(Santo Agostinho: 354-430 ― bispo, teólogo, filósofo e Doutor da Igreja)

A Eucaristia é algo tão fundamental e importante na vida cristã, que a Igreja possui duas datas, muito especiais, para recordá-la: quinta-feira santa, com a celebração da Ceia do Senhor, onde ela foi instituída, e a festa de Corpus Christi, logo após as festas da Ascensão e da Trindade, motivando-nos a recordar a maneira como Jesus, o Cristo, quis se fazer presente entre os seus seguidores, ou seja, mediante o seu Corpo e Sangue. 

Na Idade Média ocorreu, infelizmente, um desvirtuamento da hóstia, o Corpo de Cristo, a qual passou a ser vista como algo mágico, como um tipo de amuleto capaz de produzir milagres, realizar maravilhas. Tanto é verdade, que muitos, somente a admiravam, pois a comunhão se dava uma vez por ano, apenas! A ponto do papa Pio X, em princípio do século XX, insistir que a hóstia é para ser comungada todos os dias, se a consciência do fiel estiver pura. Infelizmente, nos tempos atuais, há muitos fiéis que são levados a ter uma verdadeira adoração pela hóstia, em si mesma, esquecendo-se do que ela, de fato, significa! 

Na narrativa mais antiga da Ceia do Senhor (1Cor 11,23-25), Paulo insiste que Jesus expressou a sua última vontade ao dizer, após apresentar o pão (a partir de então, o seu corpo) e o vinho (convertido em seu sangue): “Fazei isso em memória de mim” (vers. 24. 25). Lucas é o único evangelista que registra esse mesmo e fundamental pedido de Jesus (cf. Lc 22,19). No entanto, é inevitável e, inclusive, desejável que nos coloquemos algumas incômodas questões:

* O que fazemos, hoje, em nossas eucaristias é, de verdade, aquilo que Jesus fez naquela sua última noite?

* As eucaristias que celebramos são, de verdade, a memória viva daquilo que Jesus realizou pela humanidade?

* O modo como se celebra a Eucaristia é eficaz e promove aquele encontro autêntico entre os fiéis e seu Senhor, o Cristo? 

Acontece que a Eucaristia é o ápice de uma vida de total doação de si mesmo, que Cristo soube viver entre nós, aqui na terra. Ela somente pode ser entendida como “sacrifício”, no sentido etimológico dessa palavra, que é: consagrar, oferecer ou dedicar algo ao santo, que é Deus. Ora, foi justamente isso que Jesus fez com a sua vida, transformou-a em uma total consagração, oferenda e dedicação à Vontade de seu Pai, realizando o seu Reino, neste mundo. Portanto, o fundamental não é a hóstia, como se fosse um amuleto ou símbolo extraordinário, mas a atitude e o compromisso que estão presentes no corpo e sangue de Cristo! 

Por isso, as questões anteriormente mencionadas são importantíssimas para avaliarmos nossa fidelidade a Cristo que nos pediu “fazei isso em memória de mim”. Quando celebramos a Eucaristia nos sentimos, de verdade, mais unidos aos outros, mais irmãos e irmãs, mais solidários, mais sensíveis aos demais ou não? A Eucaristia promove, no mais íntimo de meu ser, o amor, a paz, o perdão? Caso isso não esteja ocorrendo, é oportuno nos recordarmos das palavras de Paulo, logo após descrever a instituição da Eucaristia:

«Portanto, todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será culpado contra o corpo e o sangue do Senhor» (1Cor 11,27).

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus, tu deste tudo: o teu tempo, para que todos te conhecessem, te ouvissem, te vissem e te tocassem; a tua palavra, para que todos pudessem ouvir a notícia do Reino e da vida nova; os teus gestos de bondade e de ternura, de coragem e de misericórdia para que todos tivessem a certeza de serem amados. Tu não tinhas mais nada a oferecer além de ti mesmo, teu corpo e teu sangue, tua própria vida. E tu fizeste dela dom para todos. Cada vez que estendo as minhas mãos, tu mesmo te colocas nelas, aquele pão que é o teu corpo partido pela vida do mundo! Amém.»

(Fonte: GOBBIN, Marino, O.Carm. Orazione finale. In: CILIA, Anthony, O.Carm [a cura di]. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 309)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – Santissimo Corpo e Sangue di Cristo – 6 giugno 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 22/05/2024).

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