Ainda sobre o Natal
Prosseguir na rota do esperançar
Frei
Betto
Frade dominicano, jornalista graduado, escritor e educador popular brasileiro
Feliz
Natal aos que desbancam o próprio ego e cultivam altruísmo nos beirais das
virtudes
Feliz Natal a quem não se empanturra de obesas ambições, imprime cores no painel da desesperança e se embriaga de utopia. E a quem se aconchega em silêncio, sabe calar o que não pode falar, guarda a subjetividade do esgarçamento virtual, enclausura as feras do atrevimento e faz jorrar bondade das entranhas do coração.
Feliz Natal aos que desbancam o próprio ego e cultivam
altruísmo nos beirais das virtudes, jamais colecionam armas no arsenal de
ideologias nefastas e proclamam a Terra como território comum de todos os seres
viventes.
E aos que não tentam se apropriar de Deus, que não tem religião, nem
aprisioná-lo em projetos genocidas.
Feliz Natal a quem faz espelho de si a face do outro, semeia
alvíssaras [= exclamação de alegria por notícia ou acontecimento feliz] como
aqueles que relegam o pessimismo para dias melhores, modulam os passos nas
sendas da ética e jamais tropeçam no alçapão da razão cínica. E aos que exaltam
a vulgaridade dos corpos sem ceder à vulgaridade obscena, não castram o sexo
com a tesoura afiada do moralismo e aplaudem o balé de eros coreografado por
mil modos de amar.
Feliz Natal a quem não conspira contra o veredito popular,
não segreda artimanhas à sombra de canhões nem engrossa, em ruas e praças, as
hordas do horror. Aos fardados que não trazem a letalidade nas vísceras e, em
nome da lei, jamais usam armas para ceifar vidas de civis. E a quem não
transmuta a diferença em divergência e faz da diversidade alteridade.
Feliz Natal aos que repudiam os Herodes hodiernos que abatem
vidas precoces, disparam balas em quem quer bolas e sonegam pão ao faminto para
nutrir a boca insaciável de seus cofres.
Feliz Natal a quem não deixa Papai Noel eclipsar o Menino Jesus, nem
tenta encobrir ausências com presentes e comparece à dor alheia.
E aos que logram identificar o curral ocupado pelos
sem-terra, a manjedoura dos sem-teto, as trilhas perigosas que conduzem os
migrantes no rumo dos novos Egitos.
Feliz Natal a quem apregoa que a paz não nasce do equilíbrio
de armas, é filha da justiça, e aos que veneram a natureza como mãe pródiga, da
qual somos filhos ingratos, vândalos predatórios a esbanjar dons florescidos da
única safra.
Feliz Natal aos seresteiros da madrugada, parteiros do
amanhecer, aos poetas sem palavras para expressar encantos, aos loucos plenos
de razão, aos artífices do humor, que sabem secar lágrimas e suscitar sorrisos,
e aos que musicalizam os indizíveis sentimentos da alma.
Feliz Natal aos que decifram a gramática dos trovões, não se
deixam esmorecer pela proximidade da tempestade, acreditam na promessa de uma
nova terra e um novo céu, e fazem de suas vidas antecipações de tempos
promissores.
Feliz Natal a quem quebra grilhões, se reparte em oferendas
gratuitas e conhece os segredos da alquimia que converte a existência em
esplendorosa aventura espiritual. E aos que bordam tessituras nos labirintos da
emoção e fazem brotar o canto nostálgico dos que têm saudades do futuro.
Feliz Natal a quem resguarda em si seu mais profundo eu e se
sabe altivo sem parecer soberbo, indiferente às palrações [= tagarelices]
deletérias. E aos que, todas as manhãs, celebram o próprio Natal, presenteados
pelo maior de todos os dons — a vida!
Feliz Natal a todas as famílias enlaçadas em fraternura [fraternidade + ternura], aos desavisados da fé, aos descrentes de si mesmos, aos que fazem da solidão vínculo de empatia com o mundo. E a todos que trazem no íntimo a força renata [= renascida] da presença inefável do Menino Jesus, decididos a prosseguir na rota do esperançar.
Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Quarta-feira, 25 de dezembro de 2024 – Pág. A4 – Internet: clique aqui (Acesso em: 26/12/2024).
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