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 O julgamento do ano 

Fernando Gabeira

Jornalista 

Com o ex-presidente Jair Bolsonaro no centro, este é um infográfico dos principais indiciados pela Polícia Federal no inquérito sobre a articulação de um golpe de Estado no Brasil

É uma questão que não se pode arrastar. É preciso resolver de uma vez a constante reaparição da variável autoritária na política brasileira

Apesar de imprevisível, o Brasil já tem um importante roteiro político para o ano que entra. É o julgamento do processo de tentativa de golpe, envolvendo militares e Jair Bolsonaro. 

Em fevereiro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) deve apresentar a denúncia. É o mais provável, embora tenha também a prerrogativa de pedir novas investigações. Essa denúncia pode englobar ou não os três temas: desvio de joias, falsificação de vacinas e tentativa de golpe. No caso das vacinas, podem ser vistas como um instrumento necessário para a fuga. No entanto, as joias aparecem mais como uma espécie de fundo de horror para a travessia do deserto. Mas nunca se sabe se os fatos serão entrelaçados ou se estaremos diante de três processos distintos. 

O relatório da Polícia Federal apresenta muitas evidências contra o grupo de kids pretos que se preparava para atacar o ministro Alexandre de Moraes. Apesar da relativa abundância de detalhes, não se sabe precisamente se iriam matá-lo ou sequestrá-lo perto do restaurante especializado em carne de sol. Há uma lista de armas pedidas por eles, entre elas bazuca e lança-morteiros. De modo geral, não são armas para um atentado. 

Os dados sobre o monitoramento no dia marcado são imprecisos sobre os detalhes da ação. Quem dispararia, de que posição, qual o plano de fuga. Um dos militares na linha de frente teve de buscar um táxi, em Brasília, onde táxis não se obtêm levantando o dedo na rua. Se o objetivo era sequestrá-lo, como o tirariam dali, onde fariam o transbordo, onde o guardariam, que alternativa de lugar tinham preparado para uma mudança de emergência? 

Pode ser que esses detalhes não apareçam no inquérito. Não é possível que uma manobra concebida por um general e levada a cabo por forças especiais seja tão pobre em planejamento. 

O mesmo problema aparece na hipótese de envenenarem o presidente e o vice, como rezava o plano do general. Eles queriam fazer tudo isso no prazo de alguns dias. Na literatura mundial, seria um recorde. Vladimir Putin, que é especialista nesse tipo de crime, criou um veneno especial, o Novichok, formou uma unidade especial especializada em substâncias letais que, por sua vez, seguiu o opositor Alexei Navalni por três anos, fez 30 viagens, e ainda assim Navalni conseguiu escapar para Berlim e tomar o antídoto que o salvou. 

No caso do plano Punhal Verde e Amarelo, era preciso matar Lula da Silva e Geraldo Alckmin simultaneamente, creio. Se o presidente morresse primeiro, qualquer vice medianamente inteligente tomaria suas precauções. 

Muitos acham que fazer perguntas desse tipo enfraquece a acusação. Mas é fundamental que esteja bem fundada e quem sabe consiga, através dos depoimentos, fornecer o quadro mais realista possível. 

Bolsonaro tentará se afastar desse grupo de militares. Mas suas digitais estão impressas nas reuniões que teve com os comandantes do Exército e da Aeronáutica. Eles são testemunhas de que propôs o golpe. Além disso, as mensagens do general Mário Fernandes para Mauro Cid são inequívocas. Em vários momentos, comenta as reações de Bolsonaro diante do golpe, inclusive limite de datas e saída do ex-presidente para fazer discurso de animação de apoiadores. A tese de que os golpistas queriam criar uma comissão, sem a presença de Bolsonaro, é apenas um esforço da defesa para isentá-lo. 

Mas, em algumas versões da ata golpista, a comissão não seria criada para dirigir o País, e sim substituir o Supremo Tribunal Federal. 

JAIR BOLSONARO era o líder da trama golpista, segundo a Polícia Federal, tudo passava por ele e era de seu conhecimento e participação!

As mensagens de todos têm Bolsonaro como o líder do movimento, embora em algumas delas, raras, haja uma crítica velada à sua demora em assinar o texto do golpe e ele seja tratado ironicamente como o presidente imbrochável. 

A previsão é de que o julgamento desse caso envolva grandes advogados e um debate intenso na mídia convencional e nas redes. Evidentemente que a coleta cuidadosa de evidências servirá para provar que houve realmente algo muito perigoso em gestação. Mas, consideradas as circunstâncias, não se deve esperar um acompanhamento puramente lógico e racional. 

Muita emoção, falsas notícias, interpretações maliciosas – tudo isso potencialmente pode fazer de uma condenação correta tecnicamente algo condenável por parte da opinião pública. 

E, se houver a condenação, como será o equilíbrio de penas de quem se preparou para matar Alexandre de Moraes com quem escreveu a batom numa estátua “Perdeu, Mané”? 

Todo esse processo deve ser, segundo os cálculos, julgado na primavera de 2025. Isso significa que estará próximo alguns meses da eleição presidencial. Deve ser um dos temas políticos mais quentes no processo sucessório e colocará diante dos candidatos, sobretudo os da direita, uma posição delicada:

... comprometer-se umbilicalmente com a democracia ou contemporizar com as investidas autoritárias de Bolsonaro e seus militares.

Da mesma forma, no lado oposto do espectro, vai se colocar também a defesa estratégica da democracia: uma frente real na forma e no conteúdo ou apenas a hegemonia de um ou outro partido? 

Como o Brasil é imprevisível, pode ser que esse cenário seja suplantado por algumas emergências. Mas é uma questão que não se pode arrastar historicamente. É preciso resolver de uma vez a constante reaparição da variável autoritária na política brasileira. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Opinião/Colunas – Sexta-feira, 8 de dezembro de 2024 – Pág. A5 – Internet: clique aqui (Acesso em: 11/12/2024).

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