Deputados e Senadores para os ricos
Congresso atua como sindicato dos ricos e trava ajuste fiscal de que Brasil precisa, diz especialista em desigualdade
Vinícius
Mendes
Jornalista
Entrevista
com:
Marcelo Medeiros
Sociólogo,
professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB)MARCELO MEDEIROS
Há que se tributar mais aqueles que nada ou quase nada pagam de impostos no Brasil
Desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos públicos planejado pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o país vive as consequências das reações à proposta.
O dólar ultrapassou a casa dos R$ 6 pela primeira vez na
história no dia seguinte ao anúncio e lá ficou como expressão da
insatisfação do mercado – que diz que esperava por medidas mais rígidas de
redução fiscal. Na segunda-feira (17 de dezembro), o dólar fechou em R$ 6,09.
No Congresso, a bancada governista também torceu o
nariz, mas por outra razão: deputados estavam preocupados com as implicações
nos programas sociais, sobretudo no Benefício de
Prestação Continuada (BPC), mas também no salário
mínimo.
Ao final, o Planalto precisou negociar com seu próprio
partido, o PT, por votações favoráveis aos projetos.
Um dos maiores especialistas em desigualdades do país, o sociólogo Marcelo Medeiros, evita fazer críticas diretas ao ministro e seu pacote, mas deixa claro que, para ele, as medidas são ruins — e por vários motivos.
“É que é mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico.
Também é mais imoral”, resume.
À BBC News Brasil, Medeiros, que está pesquisando neste ano na Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, e ainda é ligado à Universidade de Brasília (UnB), argumenta que o ajuste fiscal deveria focar em tributação no topo da renda, e não na base.
Para ele, estendendo essa análise, a decisão de isentar do
Imposto de Renda (IR) uma classe média que ganha até R$ 5 mil por mês é uma “gotinha
no oceano” perto do que deveria ser, para ele, realmente feito: revisar o
grosso dos subsídios fiscais para diferentes setores produtivos.
Por causa desses subsídios, em 2022, o país
renunciou a um montante de R$ 581 bilhões – ou mais de 5% do Produto
Interno Bruto (PIB) – em impostos, segundo dados oficiais.
Mas esse ajuste fiscal, que ele considera o pacote que
deveria ser feito, de fato, não avança no Brasil por causa do Congresso, “que está atuando como um empecilho
à economia do país” ao se comportar como um “sindicato dos ricos”.COM UM CONGRESSO NACIONAL MAIS FAVORÁVEL, LULA CONSEGUIU REALIZAR REAJUSTES GRANDES NO SALÁRIO MÍNIMO EM SEUS DOIS PRIMEIROS MANDATOS
Porém, na leitura de Medeiros, o erro político — e moral
— mais grave está em mexer no salário mínimo, que terá um teto de 2,5% de
reajuste anual.
“Do Plano Real para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza
no Brasil tem sido o salário mínimo, e não Bolsa Família ou
qualquer outro programa de assistência”, diz Medeiros.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC
News Brasil: De que forma esse pacote de corte de
gastos pode impactar os indicadores sobre a desigualdade?
Marcelo Medeiros - É pouco provável que qualquer ajuste
desse tipo tenha impacto relevante sobre a desigualdade. Na verdade, foram
os aumentos sistemáticos do salário mínimo no passado que fizeram com que ela
caísse — e freá-los significa justamente frear as reduções da pobreza e da
desigualdade. Por outro lado, a preocupação fiscal não pode ser ignorada.
Essa decisão [de cortar gastos] é difícil de se tomar. É que qualquer ajuste fiscal no Brasil tem que passar necessariamente por um aumento expressivo da arrecadação. Nessa circunstância, diminuir gastos ou é muito difícil ou é imoral. Cortar gastos de assistência ou fazer restrições desse tipo é imoral.
BBC
News Brasil: Mas como aumentar a arrecadação em um
cenário de pressão, justamente, por cortes?
Medeiros - O Brasil tem, na verdade, que resolver
o volume monstruoso de subsídios fiscais, que hoje é da ordem de pelo
menos R$ 500 bilhões, distribuídos entre inúmeros setores, muitos deles sem
razões claras para recebê-los, porque o retorno que oferecem ao desenvolvimento
do país é baixo.
Não são justificáveis. Tudo isso fora alguns problemas de
natureza tributária, para os quais era preciso um plano. Mas, ainda que muita
gente queira discutir o papel do Executivo nisso, o grande obstáculo desse
ajuste fiscal [que deveria ser feito] é o Congresso.
Ele está se tornando uma barreira para as finanças públicas do país
e para a boa condução da economia.
O Brasil precisa entender isso rapidamente.
BBC
News Brasil: Por que o Congresso é um obstáculo?
Medeiros - Ele tem que assumir tanto sua
responsabilidade fiscal quanto social, e não se comportar como um agente
dos seus próprios interesses, financiando processos políticos interiores que se
tornarão campanhas eleitorais no futuro. O Congresso é o grande problema do
Brasil hoje ao não assumir esse papel e ficar aprovando extensões de subsídios.
Essa ênfase em aumentar arrecadação conflita com setores
que insistiam por um pacote de cortes de gastos, principalmente aquele que
todo mundo chama de “mercado”. Por que essa exigência tem sido tão
intensa?
Não é possível cortar gastos, muitos gastos, de maneira
simultaneamente rápida e responsável. Não dá.
E, se a gente olhar para a estrutura do orçamento, tirando
os subsídios tributários, todo o resto a gente não pode deixar de ter.
É criminoso tirar recursos do SUS [Sistema Único de Saúde] ou do
sistema educacional, por exemplo. A principal demanda do orçamento é dada
pelo sistema previdenciário, e há margem para novas reformas previdenciárias.
Isso terá que ser feito. Não é trivial, mas vai depender do Congresso, que
deixou janelas abertas na última reforma que fez [em 2019]. Ele precisará fazer
escolhas de natureza distributiva.
Mas a pergunta fundamental é: quem vai pagar pelo ajuste fiscal brasileiro?
BBC
News Brasil: E quem terá que pagar, na opinião do
senhor?
Medeiros - Por que fazer um ajuste fiscal? Porque
está gastando mais do que se arrecada. A solução para isso é ou arrecadar mais
ou gastar menos. Essa última opção é bastante complicada, mas a primeira —
aumentar arrecadação — é difícil do ponto de vista político, embora seja viável
a curto prazo.
O Brasil terá que enfrentar o fato de que terá que aumentar sua arrecadação. Não há alternativa. Não tem um cenário bem desenhado hoje que garanta equilíbrio fiscal fazendo cortes de forma irresponsável. O que temos são cortes que só vão fazer a máquina — e por “máquina” eu me refiro ao sistema educacional, à saúde etc. — funcionar mal. Ninguém quer que isso aconteça. A solução, então, é aumentar a arrecadação.
BBC
News Brasil: Como isso poderia ser feito em curto
prazo?
Medeiros - Nosso sistema tributário é ruim em
muitas dimensões. Um deles é justamente controlar essa máquina gigantesca de
subsídios — problema de ordem tributária. O Brasil gasta muito mais
dinheiro com ela do que com programas de assistência social, como o Bolsa
Família, por exemplo.
Para enfrentar isso, será necessário passar pelo Congresso, que é parte interessada [nesse processo]. Eu entendo que essa é uma decisão politicamente delicada, mas o Congresso deve assumir sua responsabilidade. Se ele quer ter poder de governo, com mais comando sobre o orçamento público, então, precisa ter responsabilidade correspondente a esse aumento de poder.
BBC
News Brasil: Se é o arcabouço tributário quem
estrutura a desigualdade, qual é o papel, então, dos programas sociais nesse
sistema?
Medeiros - Precisamos nomear corretamente as
diferentes desigualdades. Desigualdade de renda é diferente de desigualdade de
[acesso à] saúde, que é diferente, por sua vez, da desigualdade educacional. O
sistema tributário afeta a desigualdade de renda por um lado e, por outro, gera
mais recursos para o governo gastar com saúde e educação.
Programas de assistência social não são irrelevantes, mas têm impacto pequeno sobre a desigualdade. O dinheiro gasto com educação como um todo ou com saúde são determinantes nas desigualdades das suas duas respectivas áreas. A massa da população não vive adequadamente sem SUS e sem um sistema de ensino gratuito, sem o qual ela não chegaria ao ensino superior. E ela precisa chegar nele.
BBC
News Brasil: Mas e a Previdência Social nisso?
Medeiros - Ela não é só um gasto como outro
qualquer: é a combinação de uma poupança que as pessoas fazem ao longo do tempo
com um seguro e com mecanismos de assistência social. Parte do que a
Previdência está fazendo hoje equivale, do ponto de vista contábil, a uma
poupança que vai sendo acumulada e paga.
Não estou dizendo que não existem subsídios previdenciários. A ingenuidade é achar que a Previdência é um gasto como qualquer outro. É claro que precisamos de reformas previdenciárias, porque o sistema não vai aguentar mesmo. Temos que ter idades mínimas mais altas. Tem grupos se aposentando com 55 anos! Eles podem fazer isso desde que paguem mais. Assim como é óbvia a necessidade de um mecanismo de proteção dos idosos, como vários outros países têm e que, no caso do Brasil, funciona via BPC [Benefício de Prestação Continuada].
BBC
News Brasil: Que vai ser ajustado também agora.
Medeiros - Mas é claro. É mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Mas também é mais imoral.
BBC
News Brasil: O ponto, então, não é a existência do
corte, mas o objeto dele?
Medeiros - Claro. O Brasil tem que ter responsabilidade fiscal. A pergunta é quem paga por ela e quem deixa de pagar. O Congresso não está ajudando ao não fazer os ricos pagarem pelo desenvolvimento do país. Ele precisa deixar de ser um empecilho para a condução da política fiscal brasileira.
BBC
News Brasil: Em meio a esse pacote, qual é o peso
real dos gastos públicos sobre a desigualdade? O Índice de Gini do Brasil, por
exemplo, caiu muito (para 0,481, segundo dados do Ipea) na metade de 2022,
durante a pandemia, por causa do Auxílio Emergencial.
Medeiros - Não dá para medir muito bem, mas veja
só: o Índice de Gini mede distribuição de renda. Quando o país corta gastos do
sistema de saúde, por exemplo, isso não se mede pela desigualdade de renda, mas
pela desigualdade na saúde. É por isso que essa palavra deve ser sempre
conjugada no plural: desigualdades.
O Brasil tem muitas delas: na saúde, na educação
e... na renda. Cada vez que há um corte de gastos, a área correspondente
é a mais impactada. Tirar dinheiro da assistência impacta na pobreza,
por exemplo. E é importante lembrar que o Estado não gera só efeitos diretos
[com a maneira como maneja os recursos], mas também indiretos — que nós
chamamos de efeitos de “segunda ordem”.
Quando ele cria um gasto no presente para melhorar a qualificação da mão de obra, no futuro se espera uma produtividade melhor, ou quando ele investe em algo para tornar a população mais saudável, a expectativa é que a despesa com saúde caia lá na frente. É uma equação complexa.
BBC
News Brasil: E há alguma chance de o Congresso
mudar sua atuação nesse sentido?
Medeiros - Politicamente, eu não sei dizer, porque não sou analista político, mas deveria ser, porque, sem colaboração dele, o Brasil continuará instável. Tem coisas que não estão sendo sequer propostas, porque todo mundo já sabe que serão barradas.
BBC
News Brasil: O que, por exemplo?
Medeiros - A reforma do Imposto de Renda que acaba com regimes especiais de tributação.
BBC
News Brasil: Haddad tem tido certo sucesso em
negociar os pontos do pacote de cortes com o Congresso — especialmente no
Senado. Um deles é justamente aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda
para até R$ 5 mil e tributar rendas maiores.
Medeiros - Mas não é isso que a gente realmente precisa. É algo muito pequeno diante do tamanho da reforma tributária que o Brasil tem que fazer, mudando brutalmente os regimes do Simples Nacional e do Lucro Presumido para que todos paguem impostos do mesmo jeito. Como está hoje, estamos criando condições para um grupo pagar muito menos do que o resto da população. Não pode. Está errado.
BBC
News Brasil: A isenção, aliás, foi criticada por
beneficiar mais uma certa classe média, do que quem está, de fato, em situação
de pobreza. O recorte de renda (R$ 5 mil) definido no pacote é socialmente
efetivo?
Medeiros - Não tenho cálculos para te responder
melhor, mas o que posso insistir é que a reforma tributária que o Brasil
precisa não é para aliviar tributação na base, mas para melhorar a
tributação no topo, onde ela é muito baixa. Temos vários mecanismos que
sustentam essa estrutura.
Falta, por exemplo, uma tributação sobre lucros e dividendos
de Pessoa Física (PF), que hoje é ruim.
É fundamental mexer nos regimes especiais.
O próprio MEI [Microempreendedor individual] é um
problema que precisa ser resolvido logo, assim como a série de
investimentos subsidiários, como a Letra de Crédito do Agronegócio
(LCA), que não paga imposto algum, e o tributo sobre aplicações financeiras,
que pagam a menor alíquota possível (15%) e ainda não entram como rendimento
total [na declaração do IR].
Nosso Imposto de Renda está fazendo tudo o que pode para não ser
progressivo, para não cobrar dos mais ricos.
Esse desenho é muito ruim.
BBC
News Brasil: Quais as prioridades?
Medeiros - Resolver os regimes especiais e acabar com o Simples [Nacional], com o Lucro Presumido e com o MEI, além da tonelada de subsídios. Há muito subsídio para o agronegócio, por exemplo, e ele não precisa disso. É um setor estabelecido e nem é tão dinâmico assim. Tem também tudo quanto é subsídio para mão de obra, como a própria exoneração da folha de pagamentos, que passa ao largo do debate público porque a imprensa se beneficia dele. Isentar quem ganha até R$ 5 mil por mês de declarar o Imposto de Renda é só uma gotinha no oceano desses benefícios todos.
BBC
News Brasil: Por essa lógica, a decisão de mudar a
estrutura do Imposto de Renda, então, é paliativa.
Medeiros - A isenção parece paliativa. O Brasil tem pouca progressividade. A alíquota superior brasileira, de 27,5%, é baixa. Temos que ter alíquotas mais altas, inclusive no topo, aumentando também a base tributária. Tem que tributar todos os rendimentos de capital como renda, não de forma separada. Não tem por que ser assim. Hoje, um advogado empresário paga infinitamente menos imposto do que um advogado empregado. Isso está errado. Sem contar que é ruim até para a Previdência, porque aumenta o déficit.
BBC
News Brasil: Esse é o problema que o senhor
enxerga no regime do MEI também?
Medeiros - O MEI tem dois problemas. O primeiro é
que ele está destruindo a proteção trabalhista brasileira. Uma pessoa
que trabalha [nesse regime] é um empregado contratado sem proteções
trabalhistas. É ruim para quem trabalha. Fora que essas proteções são positivas
para a própria dinâmica do mercado de trabalho. Até porque o valor do MEI é
muito alto: tem gente ganhando o limite dele [R$ 81 mil]. Segundo que ele
não tem uma contribuição previdenciária adequada, e isso significa que
os trabalhadores que são MEI vão ter que se aposentar apenas com um salário
mínimo. Isso também é muito ruim.
O resultado são dois trabalhadores idênticos no mercado: um pagando muito menos imposto e sem proteção, e um outro cheio de proteções trabalhistas, mas custando caro. Tem que nivelar. Não há nenhuma razão para que o MEI seja tolerado como ele é. Trata-se de uma forma legal de subemprego. Não é à toa que cresce assustadoramente.
BBC
News Brasil: O argumento contrário a esse diz que,
como as proteções são muito altas, o MEI dinamiza o mercado de trabalho.
Medeiros - Não conheço ninguém que tenha feito uma conta séria sobre isso. Uma coisa é justificar um pintor de parede, por exemplo, que virou MEI. Era um trabalhador que prestava serviço sem ter empresa aberta e, agora, tem. Mas o MEI virou uma relação trabalhista camuflada. Todo mundo que conheço concorda que as proteções trabalhistas são boas para garantir o funcionamento do mercado do trabalho. Agora, se custa caro ou não, é claro que tudo custa caro...
BBC
News Brasil: E qual é o problema do Simples? Estão
nele pequenas e médias empresas, por exemplo, que ganharam outra dimensão
discursiva dentro do debate sobre a economia brasileira – como geradoras de
trabalho e dinamizadoras das trocas cotidianas.
Medeiros - Em primeiro lugar, os valores do
Simples Nacional são muito altos. Há
empresas ganhando muito dinheiro [dentro do regime]. Segundo: tem gente
abrindo duas, três, quatro empresas só para se manter dentro dos limites
[de faturamento]. Tem empresa do setor da construção civil, por exemplo,
abrindo uma empresa nova para cada edifício [construído] como forma de burlar a
tributação. Temos uma fiscalização ruim sobre isso, sem contar a falta de
clareza da legislação. Uma coisa é simplificar o mecanismo burocrático [de
arrecadação dos impostos].
O que não existe é razão para se tributar menos um regime do que outro. O Simples é até mais fácil de se processar burocraticamente, mas [quem está nele] paga menos imposto. Isso é péssimo. O correto seria obrigar as pessoas donas dessas empresas a pagar para si mesmas um salário correspondente à da função no mercado, como acontece em muitos países. Caberia, então, à Receita Federal fiscalizar e multar quem não estivesse cumprindo essa regra. O Simples virou uma forma legal de burlar a tributação.
BBC
News Brasil: Quais seriam os ajustes necessários
em ambos os regimes?
Medeiros - O ajuste seria baixar tremendamente os valores autorizáveis [de faturamento]. O MEI deveria se limitar a um salário mínimo por mês, e o Simples se limitar a um pouco mais do que isso. Ou, então, acabar com eles.
BBC
News Brasil: Por quê?
Medeiros - Não tem motivo [de existirem]. No
passado, fazia sentido simplificar a contabilidade, mas hoje todas as empresas
do Simples mantêm a contabilidade regular necessária para estarem em outro
regime tributário, enquanto processos eletrônicos atuais tornaram a manutenção
dessa contabilidade mais barata. Logo, não há razão, do ponto de vista de
simplificação burocrática, para ele existir mais.
O ponto é que ninguém entra no Simples porque ele é mais fácil. As empresas entram nele porque ele é mais barato do ponto de vista tributário. Elas estão entrando nele para não pagar impostos. E a questão não é nem essa, mas, novamente, o fato de os subsídios estar indo para os mais ricos. Eles estão na tributação sobre insumos, basicamente utilizado pelo agro, ou sobre transportes, que o agro também usa para exportar. O Brasil subsidia o petróleo do agronegócio, mas não a gasolina do produtor de banana.
BBC
News Brasil: São benefícios oriundos de políticas
de industrialização.
Medeiros - Políticas baseadas em reduções tributárias geralmente são ineficientes. Se o objetivo for fazer política industrial, funciona melhor gastando em infraestrutura, em transferência direta, em compra direta, e não em subsídio tributário. É uma política antiga, que todo mundo já viu que não funciona, porque [o excedente] é altamente apropriado. Vira lucro em vez de investimento.
BBC
News Brasil: Voltando ao pacote de gastos, o
quanto aumentar os impostos daqueles que ganham acima de R$ 50 mil é efetivo,
considerando que, como o senhor já escreveu, o grosso da renda dos mais ricos
no Brasil não vem do trabalho, mas do patrimônio?
Medeiros - Uma boa medida para resolver esse
problema da tributação dos mais ricos seria fazer uma integração tributária.
Funcionaria assim: o que se paga como Pessoa Jurídica (PJ) é descontado do
Imposto de Renda da Pessoa Física (PF). E o contrário também: o que não for
pago como Pessoa Jurídica vai para o IR. Na verdade, é como se não existisse
Pessoa Jurídica, mas só Pessoa Física.
Tudo fica tributado do mesmo jeito. Nos Estados Unidos é assim. Não diferenciar renda é, inclusive, a recomendação internacional. Renda é renda e deve ser tributada da mesma forma sempre.
BBC
News Brasil: O corte de gastos também estipulou um
teto ao reajuste anual do salário mínimo. Qual é a sua opinião do senhor sobre
isso?
Medeiros - Existe muito erro nesses cálculos
sobre o impacto do salário mínimo nas contas públicas. Primeiro que o único
impacto ao governo está na Previdência, porque quem paga boa parte dos
efeitos do salário mínimo é o setor privado. Segundo que uma parte grande
do salário mínimo vira imposto automaticamente, porque ao pagá-lo, o governo
recolhe automaticamente a Previdência.
A conta que está sendo subestimada é essa: um quinto do
salário mínimo vira previdência. Além disso, cerca de 15 a 17% dele vira
arrecadação tributária por meio do consumo, porque as pessoas compram
coisas com esse dinheiro e pagam impostos sobre elas.
Ao final, portanto, quase metade do salário mínimo vira imposto
antes do final do mês em que ele foi pago.
Tudo isso não são erros triviais de cálculo: eles são deliberados para não reajustar o salário mínimo. Mas o que a gente não pode esquecer é que, do Plano Real [1994] para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo — e não o Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência. A queda da pobreza pós-Plano Real foi, em pelo menos metade dela da sua dimensão, derivada do aumento do salário mínimo e, de lá para cá, vem sendo assim. Isso é algo fundamental de se entender nesse debate.
BBC
News Brasil: A limitação do reajuste, portanto,
vai impactar na desigualdade.
Medeiros - Se vamos limitar os aumentos do
salário mínimo — o que não está fora da mesa de discussão —, temos que fazer
isso sabendo que se trata de uma decisão que significa parar de reduzir pobreza
e desigualdade. Se está escolhendo fazer esse ajuste pelo lado dos mais pobres,
o que é imoral, e não fazê-lo pelo lado dos mais ricos, mexendo nas vantagens
tributárias, o que, obviamente, é moralmente aceitável.
Agora, por que isso está sendo feito assim? Por uma série de razões, mas parte delas é porque o Congresso atua como trava para fazer o reajuste no lado dos mais ricos. Ao fazer isso, ele atua como sindicato dos ricos. Isso é péssimo para a economia do país.
BBC
News Brasil: O salário mínimo tem peso maior na
conjuntura brasileira, considerando que ele também nivela os salários de quem
está na informalidade?
Medeiros - Sim, porque afeta muita gente. No caso dos informais, ele serve como referência. Mas não só: afeta também quem presta serviços para os mais pobres, porque quando o salário mínimo aumenta, cresce também o consumo desses serviços: quem planta comida para vender ao pobre, quem pinta a parede do pobre etc.
BBC
News Brasil: Mas de que pobres estamos falando, já
que há toda uma categoria de “não pobres” na literatura sociológica para se
referir à população que é vulnerável, no sentido de estar a uma demissão da
pobreza, por exemplo?
Medeiros - A grande massa da população brasileira ganha um salário mínimo por mês. “Não pobres” são pessoas muito parecidas aos “pobres”, porque ganham algo em torno disso também. A massa dos benefícios previdenciários, da mesma forma, é composta por um salário mínimo. Ou seja, o grosso da população é afetado por esses reajustes. É por isso que, politicamente, trata-se de um grande erro restringir aumentos do salário mínimo ao invés de se pagar o preço político de fazer o ajuste entre os mais ricos.
BBC
News Brasil: Há um argumento comum de que, se um
país cresce e o governo possui mecanismos de distribuição justa da renda, a
desigualdade cai ou se estabiliza. Mas, em 2024, o Índice de Gini do Brasil foi
bastante irregular: subiu do primeiro trimestre para o segundo e, então, caiu
no terceiro. Isso tudo em uma economia que está indo bem...
Medeiros - [Interrompe] ... Dizer que a economia está indo bem faz pouco sentido. O PIB, em uma economia de propriedade privada, não é apropriado pelo país. Alguém se apropria disso. A economia pode estar indo muito bem para os ricos e muito mal para os pobres ou vice-versa. São duas coisas completamente diferentes e que podem coexistir dentro da mesma taxa de crescimento. A pergunta a se fazer é: quem está ganhando? Quem está preocupado com desigualdade não olha para a taxa total do crescimento, mas para a distribuição desse crescimento.
[...]
Fonte: BBC News Brasil – Dinheiro – Quarta-feira, 18 de dezembro de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 18/12/2024).
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