Espiritualidade em tempos de crise
Carlos Alberto Libânio Christo
Frade dominicano
Toda
a narrativa bíblica é um libelo à resistência e à esperança.
Não
há nela um único livro que não retrate o conflito histórico
e
o embate entre opressores e oprimidos
Grãos de mostarda |
O Brasil se parece, hoje, a
uma pessoa atropelada por um caminhão e que, apesar de graves ferimentos,
escapa viva. Machucados e maculados estão a política, a ética, a cidadania,
a representação parlamentar, embora a economia dê sinais de recuperação,
malgrado os 14 milhões de desempregados.
Dizia Santo Agostinho que a
esperança tem duas filhas diletas: a indignação e a coragem.
A indignação, para contestar o que não está bem. A coragem, para
mudar a situação.
Frente a tão nefasta
conjuntura, associada à crescente violência (homicídios, assaltos, drogas), a
nação reage com indignação (em conversas e redes digitais) e apatia (nas
ruas e movimentos sociais).
A indignação se
manifesta em expressões de ódio e desprezo; a apatia, na sensação
de que é inútil protestar nas ruas, já que se tirou um governo ruim para
dar lugar a outro pior...
O que isso tem a ver com
espiritualidade? Ora, dela depende
o nosso ânimo. Quando nos deixamos levar pelo niilismo somos tragados pela
inércia e pelo individualismo. Essa indiferença corrói a nossa subjetividade, e
objetivamente legitima o poder que nos submete a seus degenerados propósitos.
Toda a narrativa bíblica é
um libelo à resistência e à esperança.
Não há nela um único livro que não retrate o conflito histórico e o embate
entre opressores e oprimidos. No entanto, Javé suscita o novo quando em
volta tudo parece decrépito: da gestação de Sara, já idosa, à ação
libertadora de Moisés contra o faraó em cuja família ele cresceu; da brisa
suave de Elias ao pequeno Davi, de quem nada se esperava.
Deus se encarnou em uma
conjuntura profundamente conflituosa:
* A Palestina estava submetida pelo Império Romano.
* Herodes promoveu o infanticídio.
* José, Maria e Jesus se refugiaram no Egito.
* João Batista assassinado pelo governador Herodes
Antipas.
* Jesus criticado por fariseus e saduceus; expulso da
sinagoga; traído por um dos discípulos; preso, torturado e julgado por dois
poderes políticos e executado na cruz.
Sua ressurreição,
entretanto, comprovou que a justiça prevalecerá sobre a injustiça e a vida
sobre a morte.
Jesus conta as parábolas do Reino de Deus |
Tempos de crise requerem a espiritualidade
do grão de mostarda: pequeno e insignificante, mas dele pode brotar o que,
no futuro, mudará o rumo da história. Espiritualidade do tesouro escondido
e de quem sabe que vale a pena cavar o terreno até encontrá-lo. Espiritualidade
do cego Bartimeu que, por confiar na ação divina, voltou a ver com clareza.
A espiritualidade é uma
atitude subjetiva de paciência histórica e atuação confiante para mudar o atual
estado de coisas. Não basta o protesto; urge ter propostas. Não é
suficiente reclamar, é preciso agir. De nada vale odiar, falar mal,
criticar. Mais vale arregaçar as mangas e, como dizia João Batista, empunhar o
machado e centrá-lo na raiz da árvore apodrecida.
A espiritualidade impede
introjetar-nos o que ocorre à nossa volta. Não somatizar a realidade
circundante. Ao contrário, desse distanciamento brechtiano reunir energias
para transformar o velho em novo, o arcaico em moderno, o ceticismo em
esperança.
Nos anos de 1960, eu pensava
que o meu futuro pessoal haveria de coincidir com o tempo histórico. Hoje,
sei que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.
O futuro será sempre fruto
do que semearmos no presente. Não há
saída pela inesperada irrupção de um avatar político nem pelo retrocesso ao
passado.
A espiritualidade em tempos de crise exige cabeça fria, mente
alerta,
coração solícito.
Não se deixar afogar nas marés negativas.
A história está repleta de
exemplos de homens e mulheres que tinham tudo para se enclausurar em seus
nichos familiares e profissionais e, no entanto, ousaram erguer a bandeira de
um futuro melhor: Gandhi, Luther King, Mandela, Chico Mendes, Zilda Arns e a
albanesa Anjesé Gonxhe Bojaxhiu, mais conhecida como madre Teresa de Calcutá.
Aos olhos de seus contemporâneos,
Jesus fracassou. Aos olhos da história, marcou definitivamente a história
humana. Porque confiou que a menor das sementes se transforma na mais
frondosa árvore.
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