Menos, menos...
Fim de década
Monica de Bolle*
No
Brasil alguns dizem que estamos a inaugurar uma “nova era”.
Trata-se,
entretanto, de nossa inexplicável inclinação a acreditar na
arte
de viver da fé – só não se sabe fé em quê
MONICA DE BOLLE |
Não gosto de escrever
retrospectivas, ainda que elas nos ajudem a entender o ponto em que estamos.
Contudo, gosto bastante de refletir sobre o que vem pela frente, sobretudo em
momentos como o atual, onde a esperança de renovação se confunde com a
incontável quantidade de problemas que o mundo haverá de enfrentar neste fim de
década.
Cada fim de década tem a
sua marca.
1) O fim dos anos 90 foi marcado pela ascensão
dos governantes de esquerda e centro-esquerda na América Latina após a difícil
travessia das ditaduras à redemocratização. Apesar das dificuldades de então,
havia a tal da esperança de renovação que vingou por um tempo para então falir
primeiro gradualmente, e, depois, repentinamente, com a epidemia de corrupção
que engoliu a região.
2) No fim dos anos 2000, sobreveio a pior crise
econômica e financeira desde o século XX, deixando profundas sequelas tanto na
economia quanto na política. Se os países emergentes, como o Brasil, foram
inicialmente poupados do pior, tampouco tardaria para que as repercussões
diretas e indiretas de tamanho evento se manifestassem em meio ao acúmulo de problemas
desvelado subitamente – dos desarranjos da economia à operação Lava Jato.
3) [Final dos anos 2010.] Como o viés otimista
do ser humano é algo programado para a própria sobrevivência da espécie, da
crise vieram novas esperanças de renovação mundo afora, dessa vez marcadas por traços
nacionalistas e por um revisionismo que muitas vezes se confunde com
profissões de fé. Ou falta de fé.
Falta
de fé
Falta de fé na globalização,
falta de fé na imigração, falta de fé na ciência que embasa as
mudanças climáticas que tantos querem negar. Falta de fé no conhecimento,
pois, convenhamos, ninguém tem tempo para isso. Mais fácil é ver aquele meme
do grupo da família, ou ler aquela notícia de proveniência duvidosa.
Neste fim de década temos, portanto, uma grande contradição.
Há uma esperança de renovação atrelada a uma profunda
descrença em todas as
fontes confiáveis de dados e informações.
O Brexit, que poderá
ocorrer em março deste ano, é fruto disso: a esperança de que o Reino Unido
livre das amarras da União Europeia possa prosperar quando todas as evidências
indicam justamente o contrário – mas nelas ninguém acredita. A esperança de que
o Trumpismo possa cumprir o prometido, contudo em meio a alguns indícios
de que a recuperação americana começa a resfolegar e aos imensos desafios que
terá Trump com o governo agora dividido. Democratas comporão a maioria da
Câmara, enquanto parte do governo continua sem funcionar devido à briga
política sobre a construção do muro. Sem muro, Trump calcula que perderá sua
base de apoio para reeleger-se em 2020, no que está provavelmente certo. Mas,
para complicar – porque sempre é possível complicar – a nova Câmara, dominada
pelo Partido Democrata, dará prosseguimento às incontáveis investigações que
hoje ameaçam o presidente norte-americano. A ver como Trump cercado reagirá
a isso. Mais guerras comerciais com a China? Mais ataques aos aliados? Mais
tremores na política externa? O certo é que esses abalos terão reflexos na
economia mundial.
No Brasil alguns dizem
que estamos a inaugurar uma “nova era”. Trata-se, entretanto, de nossa
inexplicável inclinação a acreditar na arte de viver da fé, só não se sabe fé
em quê:
* Na bancada evangélica?
* Em Paulo Guedes?
* Em Deus acima de Todos?
* Na esperança de que a corrupção vai desaparecer de
nossa política como num passe de Queiroz?
Já sabendo que essas
perguntas tratadas serão por alguns como crítica infundada ao novo presidente,
reitero: encarar o que vem pela frente com o devido realismo não é sinônimo
de torcer contra. Não torço contra o governo de Bolsonaro, como não torci
contra os governos petistas, embora tenha sido acusada de tê-lo feito em várias
ocasiões. Contudo, com tantos problemas globais e locais neste fim de
década, as novas lideranças do País terão de ser mais hábeis e atentas do que
as que encerraram os anos 90 e os anos 2000.
Estarão à altura do
desafio? Por enquanto, prefiro o
ceticismo cauteloso às esperanças ainda infundadas. Afinal, a esperança não vem
do mar, nem das antenas de TV – muito menos da balbúrdia das redes sociais.
*
MONICA DE BOLLE é economista, pesquisadora do Peterson Institute
for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University (Estados
Unidos).
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