A Terra, esse ser vivo, precisa ser respeitada!!!

Degradação da natureza e agravamento da pobreza
são frutos do sistema de produção, de consumo e
de especulação que impera

Entrevista com Ivo Poletto

João Vitor Santos
IHU On-Line

“Biomas brasileiros e a defesa da vida”
é o tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano que
pretende enfrentar a crise socioambiental atual 
IVO POLETTO

Não é a primeira vez que a dimensão socioambiental da vida é abordada, lembra o filósofo e cientista social Ivo Poletto. Em 2007, a temática foi Fraternidade e Amazônia; em 2011, a temática enfrentou as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global.

Poletto lembra que na primeira Campanha não foi fácil mobilizar as pessoas em favor da Amazônia, pois era vista como uma realidade distante. “Foi neste ano, com certeza, que nasceu a reivindicação em favor de uma CF que encarasse a realidade de todos os biomas do país”, avalia.

Poletto considera que a escolha do tema de 2017 se relaciona “com o avanço da consciência de muitos cristãos/ãs e, de modo especial, os animados pelas pastorais sociais, pela Cáritas e pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social”. Isso decorre do fato de que “todos os biomas estão sendo afetados por ações humanas e precisam, por isso, de uma atenção cuidadosa e de práticas que ajudem a Terra a recuperar as suas características originais”. Há outro motivo, que é “o insistente convite do papa Francisco a todas as pessoas – de modo especial na sua encíclica Laudato Si' – sobre o cuidado da casa comum – para que se deem conta de como a vida está ameaçada no planeta Terra e de como é urgente a mudança estrutural do sistema econômico dominante e do estilo de vida dos que estão envolvidos no produtivismo e no consumismo”.

O tema não é fácil de tratar, reconhece Poletto. “Na maior parte das vezes, a visão eclesial esteve centrada no ser humano, no seu direito a um ambiente saudável. Tem sido difícil superar o antropocentrismo, justificado até mesmo por leituras do Gênesis, em que a narrativa da Criação afirmaria o ser humano como centro, como destinatário de tudo que Deus fez”, afirma. “Não é correto dizer que a humanidade enfrenta duas crises, a social e a ambiental. Só há uma crise, de caráter socioambiental. Tanto a degradação da natureza quanto o agravamento da pobreza são frutos do sistema de produção, de consumo e de especulação que domina a terra e as pessoas.”

Ivo Poletto é filósofo e cientista social. Trabalha atualmente como assessor educacional no Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, que articula movimentos, entidades e pastorais sociais em torno da defesa dos direitos sociais da população afetada pelas mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global. Entre 1975 e 1992, foi o 1º secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra; de 1993 a 2002, foi assessor da Cáritas Brasileira; em 2003 e 2004, foi membro da Equipe de Mobilização Social do Programa Fome Zero, do governo federal – sobre esse período, escreveu o livro Brasil: oportunidades perdidas – Meus dois anos no Governo Lula (Editora Garamond, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line: Como compreender a escolha do tema “biomas brasileiros e a defesa da vida” para a Campanha da Fraternidade neste ano? E como foi sua participação na construção dessa proposta?

Ivo Poletto: A dimensão socioambiental da vida tem sido abordada diversas vezes nas Campanhas da Fraternidade. Destaco duas, por sua relação com a temática deste ano. Em 2007, a temática foi Fraternidade e Amazônia, com o lema “Vida e missão neste chão”, convidando as pessoas de todo o país a preocuparem-se com o que estava acontecendo neste bioma. Em 2011, a temática enfrentou as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global: Fraternidade e vida no Planeta, com o lema “A Criação geme em dores de parto”.

Na CF de 2007, não foi fácil mobilizar as pessoas em favor da Amazônia, vista como uma realidade distante. Como ligar com a vida na região da gente? Foi nesse ano, com certeza, que nasceu a reivindicação em favor de uma CF que encarasse a realidade de todos os biomas do país.

Por isso, a escolha deste tema tem a ver com o avanço da consciência de muitos cristãos/ãs e, de modo especial, os animados pelas pastorais sociais, pela Cáritas e pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, no sentido de que todos os biomas estão sendo afetados pelas ações humanas e precisam, por isso, de uma atenção cuidadosa e de práticas que ajudem a Terra a recuperar as suas características originais. Tem a ver também com o insistente convite do papa Francisco a todas as pessoas – de modo especial na sua encíclica Laudato Si' – sobre o cuidado da casa comum – para que se deem conta de como a vida está ameaçada no planeta Terra e de como é urgente a mudança estrutural do sistema econômico dominante e do estilo de vida dos que estão envolvidos no produtivismo e no consumismo.

Não participei diretamente da equipe que elaborou o texto-base, mas creio que contribuí por ter sido uma das pessoas que abriu o debate sobre a importância de prestar atenção às características dos biomas, tanto entre as pastorais sociais como na Assembleia Popular.
Nessa direção, estarei disponibilizando, na forma digital, o livro Biomas do Brasil – da exploração à convivência, que elaborei ao longo dos últimos anos e que poderá contribuir nos debates sobre os biomas, de modo especial na perspectiva de repensar o Brasil a partir deles. Poderá ser encontrado nos próximos dias, clicando aqui.

Como as questões ambientais têm sido tratadas pela Igreja no Brasil? A Campanha da Fraternidade deste ano subverte essa perspectiva?

Ivo Poletto: Na maior parte das vezes, a visão eclesial esteve centrada no ser humano, no seu direito a um ambiente saudável. Tem sido difícil superar o antropocentrismo, justificado até mesmo por leituras do Gênesis, em que a narrativa da Criação afirmaria o ser humano como centro, como destinatário de tudo que Deus fez. Deixou-se de lado a dimensão de que o ser humano, mulher e homem, é parte da Criação, é constituído a partir dos mesmos elementos da natureza, e que o amor gratuito de Deus se manifestou em “tudo que foi criado”, e não apenas no seu sopro que deu vida à espécie humana.

Ao convidar as pessoas e comunidades a se darem conta de que nasceram e vivem em um determinado bioma, está aberta a possibilidade de relativizar esse antropocentrismo. O ponto de partida não é o ser humano, nem mesmo a Terra como um planeta genérico, e sim os diferentes “jardins” – os biomas – que a Terra criou. Sim, a Terra, movida pela energia do espírito de Deus, tornou-se criadora de uma incrível biodiversidade e de uma sociodiversidade a partir da presença do ser humano. Não foi o ser humano o primeiro ser criado, menos ainda foi ele que criou o que constitui os ambientes favoráveis à vida. Diferentes seres humanos encontraram diferentes jardins, criados gratuitamente por Deus e pela Terra em um longo processo. Por isso, os seres humanos, ao criarem o que precisavam para viver, foram influenciados pelo ambiente que encontraram e interferiam nele, dando seguimento ao processo de criação do qual são parte de forma positiva, convivendo com o bioma ou destruindo o que havia sido criado, expondo sua própria vida ao perigo.

Por isso, será muito superficial a CF de 2017 se as pessoas e comunidades apenas se derem conta das características atuais do bioma em que vivem. A oportunidade que Deus está abrindo é dar-nos conta de que a espécie humana foi acolhida em um ambiente vivo e gerador de vida, e de que a melhor escolha teria sido a de conviver com o jardim que encontrou. E como cada bioma tem características próprias de:
* clima,
* de águas,
* de ventos,
* de solo e de subsolo,
* de espécies vegetais, animais, aves, peixes e outros seres das águas, insetos,
vale a pena perguntar-se se a situação atual de cada bioma não tem a ver com a falta de atenção a tudo isso, com a decisão de interferir neles como se fossem iguais, adaptando-os aos planos humanos, aos interesses de empresas, à cobiça de um enriquecimento sem fim. 

Quais os maiores desafios para trabalhar a conexão entre os princípios cristãos, a preservação do meio ambiente e o combate à pobreza e às desigualdades?

Ivo Poletto: A realidade da vida em cada bioma e em todos os biomas da Terra nos mostra que as condições da vida humana e do meio ambiente da vida estão profundamente modificadas. A velocidade das mudanças provocadas pelos seres humanos com o uso de tecnologias que resistem se submeter ao tempo e ao espaço afetam, ao mesmo tempo, ao meio ambiente e aos pobres, como nos mostra o papa Francisco em sua Laudato Si'. E por isso, já não é correto dizer que a humanidade enfrenta duas crises, a social e a ambiental. Só há uma crise, de caráter socioambiental. Tanto a degradação da natureza quanto o agravamento da pobreza são frutos do sistema de produção, de consumo e de especulação que domina a terra e as pessoas.

Por isso, o combate e a superação da pobreza e da desigualdade que afetam as pessoas, bem como do aquecimento e das mudanças climáticas que afetam o planeta, fazem parte do combate e da superação da escandalosa e criminosa concentração da riqueza e do poder no mundo, fruto de um sistema centrado no absoluto da economia de livre iniciativa dos detentores de capital e na especulação financeira sem regulações.

A perspectiva cristã, nessa realidade, é de profecia em defesa da vida. E ela valoriza o copo de água dado a quem está com sede, assim como defende quem luta pelo direito de todas as pessoas, de todos os seres vivos e da Terra à água limpa, potável. Ela valoriza como práticas de salvação as iniciativas de cuidado com:
* as fontes,
* córregos e rios de cada bioma, assim como
* incentiva e defende como práticas de salvação as denúncias dos efeitos destrutivos das práticas de agronegócio,
* de indústrias,
* de hidrelétricas,
* de mineração, por contaminarem e envenenarem solos, águas e aquíferos, e por transformarem os bens naturais e as pessoas em mercadoria.

Como sensibilizar as pessoas para o fato de que o desequilíbrio do planeta é de responsabilidade de cada um e afeta a vida de todos, essencialmente dos mais pobres? Qual o papel da Igreja nesse processo?

Ivo Poletto: A primeira pergunta que devemos responder é esta: o que cada pessoa pobre faz afeta a vida de todas as pessoas, e especialmente dos outros pobres? E as práticas da esposa de um assalariado urbano afetam a vida de todas as pessoas? E as práticas dos povos indígenas, em que afetam a vida de todas as pessoas e de toda a natureza?

Essas perguntas servem para lembrar que é muito importante evitar generalizações. É verdade que tudo que fazemos, e até mesmo o que deixamos de fazer, afeta de algum modo a vida das pessoas e o ambiente da vida. Mas é igualmente verdadeiro que as responsabilidades são diferentes, e até muito, muito diferentes. É praticamente impossível comparar a responsabilidade de uma mulher ou de uma família que vive na periferia urbana ou em área rural e a de cada um dos seis homens mais ricos do mundo de 2016, que concentram em suas mãos, contas, bolsas e paraísos fiscais mais riqueza que 3,7 bilhões de pessoas, mais que a metade da humanidade. E os que se enriquecem com extração, refino e venda de petróleo e carvão e gastam bilhões de dólares para evitar que essas fontes fósseis sejam substituídas por fontes mais limpas e realmente renováveis, como o sol, os ventos, carregam uma responsabilidade que deveria ser considerada crime contra a vida.

Por isso, a geração de consciência e o estímulo em favor de práticas de cuidado e amor à natureza da Terra – à natureza de cada bioma – e aos pobres partem da percepção de que a maioria da humanidade, e especialmente os mais pobres, estão sofrendo por causa das mudanças climáticas, seja por falta de água, seja por enchentes, e estão sofrendo por causa dos preços dos alimentos, dos salários baixos ou da falta de emprego e trabalho que gere renda. Ao buscar o que está causando tudo isso, é fundamental identificar os que se valem, mantêm e expandem o sistema de exploração da Terra e da humanidade. E perceber que tudo que cada pessoa, cada comunidade e cada localidade pode fazer para enfrentar o que não está bem no meio ambiente da vida e na própria vida das pessoas é muito importante porque ajuda a cuidar do jardim – do bioma – em que se vive junto com todos os seres da sociobiodiversidade; e também é importante porque dá moral para denunciar e combater os grandes poluidores, os que se enriquecem explorando e estragando a natureza sem se importar com isso, presos ao seu egoísmo e à sua ganância.

Insistindo, a responsabilidade de cada pessoa e comunidade só será assumida positivamente quando vista como gesto de amor e como contribuição a um processo mais profundo, mais estrutural de enfrentamento das práticas que realmente provocam o desequilíbrio ambiental e a deterioração das condições de vida das pessoas.
Os pobres são os mais atingidos e prejudicados pelas mudanças no clima planetário

Como a encíclica de Papa Francisco Laudato Si' tem sido recebida pelo clero da Igreja no Brasil? A leitura e a análise do documento têm contribuído para as discussões na base, nas paróquias, nos grupos e nos movimentos sociais?

Ivo Poletto: Em algumas oportunidades de diálogo e formação, tenho percebido que muitas pessoas não tinham lido a Laudato Si'. Buscando as causas disso, percebi que ela não foi acolhida como deveria por parte importante do clero. Evidentemente motivei a mudança de atitude, seja individualmente, seja na perspectiva de disponibilizar o texto e criar oportunidades de estudo junto às comunidades.

Por outro lado, esta mensagem do Papa foi acolhida com entusiasmo por todas as pessoas e comunidades já engajadas em práticas de cuidado do meio ambiente e de promoção dos direitos das pessoas. Este entusiasmo é perceptível também entre pessoas que não se consideram cristãs, mas agem e atuam com a perspectiva socioambiental. Para estas pessoas, a Laudato Si' é uma mensagem profunda, com muitos elementos de análise crítica da realidade e do tempo em que vivemos, e um desafio para avançar em práticas coerentes em nível pessoal, comunitário e político que enfrentem e ajudem a mudar o que deve ser mudado para evitar que as agressões à Terra e a seus filhos e filhas tornem impossível a continuidade da vida.

De modo geral, como a Igreja, e em especial o clero [padres, bispos, religiosos], no Brasil têm recebido o papa Francisco?

Ivo Poletto: O Papa Francisco não fica indiferente diante de tudo que ameaça a vida dos pobres e da Terra, também as pessoas não ficam indiferentes em relação a ele. Não se trata apenas de gostar ou não de suas palavras. A relação implica as práticas e as palavras, num caminho de coerência. Por isso, há muitas pessoas que se relacionam com entusiasmo com ele, sentindo-se confirmadas ou provocadas a serem melhores. E há pessoas que se sentem incomodadas, resistindo ao convite de mudar.

Parece estranho que se reconheça que a acolhida positiva, aberta à mudança, é mais comum entre as pessoas do povo, entre os cristãos não envolvidos em “ordenações”. O clero, no seu conjunto, é menos receptivo a um Papa que promove mudanças na forma de ser da Igreja, na forma da vivência da missão, na forma de coerência entre palavra e ação. Talvez isso se deva ao fato de que papas anteriores impulsionaram a formação de clérigos mais voltada para a estrutura eclesial, pouco ou nada atenta às dimensões sociais da vida. Talvez porque é menos incômodo manter-se nas estruturas já consolidadas, mesmo se isso afasta a vida cristã das dimensões mais radicais do Evangelho de Jesus de Nazaré.

Mas vale saudar as iniciativas de tornar conhecida mensagem do papa Francisco e as que buscam renovar a prática pastoral contando com ela. Na verdade, só estranha a mensagem e as práticas do Papa quem desconhece a vida, as práticas e a mensagem de Jesus de Nazaré, pois é a sua inspiração e estímulo para colocá-las em prática de forma coerente.

Há compreensão por parte do clero das assertivas pastorais do papa Francisco? De que forma as leituras e interpretações de Amoris Laetitia revelam a compreensão do clero brasileiro ao Papa?

Ivo Poletto: Pelo que tive oportunidade de perceber, creio que se pode dizer que os cristãos e cristãs, e entre eles os clérigos, apreciam melhor os convites do Papa a práticas de maior compreensão das pessoas, maior misericórdia, menos condenações. Reagem menos positivamente, e talvez até com indiferença, quando os convites vão no sentido de sair dos palácios, das casas paroquiais e das sacristias e ir para as periferias, para o encontro com Deus nos empobrecidos, nos injustiçados. E de modo particular quando o Papa sugere que se envolvam com eles, denunciem, apoiem suas iniciativas de luta por seus direitos.

A impressão que se tem é que a formação do clero nas últimas décadas foi marcada pela perspectiva de evitar se envolver em conflitos, em nome de que a mensagem cristã é para todas as pessoas, independentemente de sua condição socioeconômica. Então, tomar partido em favor dos empobrecidos seria uma prática política incorreta, porque significa colocar em questão tudo que tem a ver com a sua situação. Agora, relacionar-se com os mais ricos, frequentar suas casas e banquetes seria prática pastoral correta, não teria conotações políticas, não leva a conflitos.

Essa constatação levanta a questão:
a) num mundo como o atual, é possível um seguimento fiel, coerente e atualizado de Jesus de Nazaré sem envolver-se nos conflitos socioeconômicos e sociopolíticos gerados por quem domina e explora sem dó nem piedade pessoas e a Terra?
b) É possível ser seguidor e testemunha de Jesus de Nazaré sem uma espiritualidade do conflito, alimentada pela esperança e pelo amor?
Estou convencido que não, e por isso creio ser absolutamente indispensável repensar a formação dos clérigos. Na verdade, sem repensar, junto com ela, a lei do celibato como única via de acesso à missão presbiteral.

Quais os maiores desafios para o pontificado de Francisco?

Ivo Poletto: Desde antes de sua escolha para a missão do papado, o bispo Bergoglio tinha consciência e deixou claro aos cardeais eleitores que as reformas necessárias à Igreja Católica, em conteúdo e forma, não eram tarefa para uma única pessoa e nem poderiam ser realizadas no curto prazo. Quando eleito, imediatamente constituiu uma comissão para ajudá-lo a definir os passos a serem dados na reforma da estrutura do Vaticano. A ela se seguiram outras, sempre na perspectiva do colegiado episcopal e cristão. E para enfrentar temas desafiadores para a pastoral, como o do acolhimento dos que vivem em segundo casamento, o caminho tem sido um longo e paciente processo de reflexão conjunta, via Sínodo.

Por outro lado, o grande desafio assumido pelo papa Francisco é o de estimular uma vivência cristã que seja fiel e coerente seguimento e testemunho de Jesus de Nazaré no mundo atual. As reformas nas estruturas administrativas são importantes, mas têm como referência esta atualização da missão.

Creio, então, que os seus dois maiores desafios são:
1º) as reformas no modo de organizar a Santa Sé e
2º) as mudanças necessárias para a fidelidade a Jesus na missão.

As reações dos seus opositores estão ligadas a essas duas prioridades de seu papado. Alguns preferem continuar nos palácios, em estruturas de governo e poder mais próximas das práticas de empresários e políticos, e por isso se sentem mal diante das práticas simples e transparentes de Francisco. E como a renovação da missão exige mais misericórdia do que repetição de leis, a acusação de desvios teológicos serve para tentar a manutenção de justificativas para a acomodação. Por último, como a fidelidade a Jesus exige estar com os que Ele escolheu como os “primeiros”, os pobres, vale tudo para tentar impedir que a Igreja assuma a sua causa, envolvendo-se no processo de crítica evangélica aos que “servem ao dinheiro” como seu ídolo, passo indispensável para a construção de sociedades de justiça, de paz, de bem viver.

Qual a sua leitura sobre o momento político atual no Brasil e no mundo? E como observa movimentos e manifestações sociais nesse momento?

Ivo Poletto: A humanidade enfrenta um tempo desafiador. Conta com imensas possibilidades de vida feliz para todas as pessoas, mas as políticas econômicas dominantes estão controladas e a serviço da concentração da riqueza, da renda. Conta com mediações de comunicação que poderiam facilitar a participação democrática, mas o controle do Estado por forças conservadoras e até fascistas, bem como o controle das mídias sociais por empresas monopolistas, impedem que as decisões sejam tomadas de forma democrática. Com isso, em lugar de avançar na direção de relações de paz entre os povos, a guerra e a violência ainda são ferramentas de dominação; em lugar de utilizar as tecnologias já disponíveis e em desenvolvimento para produzir a energia necessária com fontes menos agressivas ao meio ambiente da vida, aumenta a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, aumentando o aquecimento e agravando as mudanças climáticas.

O Brasil faz parte desse cenário e é exemplo de antidemocracia e de uso dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a serviço da minoria abastada que domina e explora a natureza, os trabalhadores, os povos e comunidades tradicionais em todos os biomas. Firma-se, dessa forma, entre os campeões da desigualdade socioeconômica, da injustiça tributária, da especulação financeira, da submissão aos interesses das grandes corporações transnacionais.

Em relação aos movimentos sociais, percebe-se, por um lado, grande dificuldade para construir unidades mobilizadoras, seja porque encontravam-se relativamente desmobilizados pelas relações políticas com os governantes dos últimos 12 anos ou porque a população demora um pouco para sentir em seu cotidiano os efeitos das reformas conservadoras e elitistas. Por outro, ainda buscam formas para enfrentar a violência com que os governantes têm reprimido as mobilizações. Há sinais evidentes de que uma das estratégias de sustentação do governo federal ilegítimo, nascido de um golpe parlamentar, é a generalização do medo e a classificação das mobilizações sociais legais como ameaça terrorista à ordem imposta por quem muda a Constituição a seu bel prazer, a serviço de seus interesses.

Como todos os poderes que pretenderam perenizar-se como o “fim da história” foram derrotados por seus próprios erros e pelas forças que a eles se opuseram com propostas mais humanizadoras, com certeza haverá tempos melhores também em nosso país. O tempo atual é também oportunidade para rever criticamente os equívocos e as oportunidades perdidas no período em que a maioria da população confiou o exercício do poder político a quem se comprometeu construir um país mais justo e democrático.

A Igreja no Brasil tem sua história marcada por personagens que trouxeram à luz o debate político, nomes como dom Helder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns, entre outros. Como avalia a participação da Igreja hoje, nesse cenário?

Ivo Poletto: A presença e atuação da Igreja Católica no Brasil não deve ser medida apenas a partir de suas lideranças. A força da palavra de dom Helder, dom Paulo Evaristo, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduino, dom Ivo Lorscheiter, dom Luciano Mendes e outros tinha raízes, ao mesmo tempo, na qualidade dos cristãos/ãs e das comunidades eclesiais que animavam em suas igrejas particulares e na coerência pessoal que os levava a enfrentar as injustiças com coragem. Eram ouvidos, respeitados e até temidos porque promoviam Comunidades Eclesiais de Base dinâmicas, que fermentavam a sociedade com lutas por justiça e em favor da construção de novas formas de convivência social e política, com novas formas de economia solidária.

A presença menos profética desta Igreja na atualidade se deve ao enfraquecimento da vida pessoal e comunitária dos cristãos nas bases, fruto provavelmente da volta ao clericalismo e ao pietismo, promovidos por movimentos conservadores e por um clero formado com visão eclesiocêntrica, com pouca relação com as práticas e mensagens de Jesus de Nazaré, com medo, indiferença ou paternalismo na relação com os empobrecidos. E fruto certamente também da diminuição de lideranças capazes de estimular a qualidade da vida e da presença cristã na sociedade.

Nessa perspectiva, não faz mal orar ao Senhor que nos envie pessoas abertas à conversão permanente como o papa Francisco, capaz de promover com coragem reformas internas no modo de organizar-se como Igreja, e capaz de animar as pessoas, as comunidades, as igrejas particulares e as conferências episcopais a se converterem de forma coerente no seguimento e anúncio do Evangelho de Jesus, sendo presença revolucionária, transformadora, testemunho de esperança na história concreta de cada localidade, de cada região, de cada país, do mundo e do universo.

Como conceber outras chaves de leitura que subvertam a lógica da modernidade, propondo outras leituras da Criação, da relação entre economia e sociedade, da relação entre ser humano e meio ambiente e das desigualdades que se atualizam no século XXI?

Ivo Poletto: Esse é um tema complexo, em relação ao qual me limitarei a duas sugestões. A primeira delas é a contribuição dos povos de longa história, dos povos originários, que denominamos indígenas, na formulação de visões e formas de vida que questionam profunda e radicalmente a visão e forma de vida que se tornou dominante no Ocidente no período da modernidade, e por isso se tornou e se impôs como civilização, com pretensa única civilização. Trata-se da riqueza em todas as dimensões da vida presente na proposta do bem viver.

Ao contrário da civilização moderna, hegemonizada pelo capitalismo, que reduziu a Terra a um amontoado, ideologicamente considerado infinito, de recursos a serem apropriados e usados pela livre iniciativa para produzir mercadorias, exploração e lucros, a Terra é ser vivo, mãe de todas as formas de vida, inclusive dos seres humanos, e, por isso, cada povo deve conviver nela no território a ele destinado. Ao praticar e propor relações de cooperação entre pessoas livres de propriedade e relações que não interferem gravemente e ajudam a manter a harmonia com todos os bens e espíritos da natureza, há no bem viver não um modelo, mas uma fonte inesgotável de possibilidades de construção de comunidades e sociedades não e pós-capitalistas.

A segunda sugestão é tomar a [encíclica de papa Francisco] Laudato Si' como base e ponto de partida para uma crítica radical ao sistema e à civilização dominantes – em que se extrema a apropriação e o uso de tecnologias que geram, ao mesmo tempo, destruição da Terra e das condições de vida dos pobres, e é, por isso, um sistema que mata – a partir da mensagem bíblica, centrada nas práticas e palavras de Jesus de Nazaré. Uma leitura que se aprofunda a partir da mediação da teologia franciscana da Criação.

Nada justifica a concentração da riqueza e a geração ou manutenção da miséria existente na humanidade atual, a não ser a loucura e a irracionalidade que elas revelam ser o DNA da pós-moderna sociedade dominada pelo capital financeiro globalizado, que se pretende acima de toda e qualquer lei e regulação.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 3 de março de 2017 – Internet: clique aqui.

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