A Terra, esse ser vivo, precisa ser respeitada!!!
Degradação da natureza e agravamento da pobreza
são frutos do sistema de produção, de consumo e
de especulação que impera
Entrevista
com Ivo Poletto
João Vitor
Santos
IHU
On-Line
“Biomas brasileiros e a defesa da vida”
é o tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano que
pretende enfrentar a crise socioambiental atual
Não
é a primeira vez que a dimensão socioambiental da vida é abordada, lembra o
filósofo e cientista social Ivo Poletto. Em 2007, a temática foi Fraternidade e Amazônia; em 2011, a
temática enfrentou as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global.
Poletto
lembra que na primeira Campanha não foi
fácil mobilizar as pessoas em favor da Amazônia, pois era vista como uma
realidade distante. “Foi neste ano, com certeza, que nasceu a reivindicação em
favor de uma CF que encarasse a realidade de todos os biomas do país”, avalia.
Poletto
considera que a escolha do tema de 2017
se relaciona “com o avanço da consciência de muitos cristãos/ãs e, de modo
especial, os animados pelas pastorais sociais, pela Cáritas e pelo Fórum
Mudanças Climáticas e Justiça Social”. Isso decorre do fato de que “todos
os biomas estão sendo afetados por ações humanas e precisam, por isso, de uma
atenção cuidadosa e de práticas que ajudem a Terra a recuperar as suas
características originais”. Há outro motivo, que é “o insistente convite do
papa Francisco a todas as pessoas – de modo especial na sua encíclica Laudato
Si' – sobre o cuidado da casa comum – para que se deem conta de como a vida está ameaçada no planeta Terra
e de como é urgente a mudança estrutural do sistema econômico dominante e do
estilo de vida dos que estão envolvidos no produtivismo e no consumismo”.
O
tema não é fácil de tratar, reconhece Poletto. “Na maior parte das vezes, a
visão eclesial esteve centrada no ser humano, no seu direito a um ambiente
saudável. Tem sido difícil superar o
antropocentrismo, justificado até mesmo por leituras do Gênesis, em que a
narrativa da Criação afirmaria o ser humano como centro, como destinatário de
tudo que Deus fez”, afirma. “Não é correto dizer que a humanidade enfrenta
duas crises, a social e a ambiental. Só
há uma crise, de caráter socioambiental. Tanto a degradação da natureza
quanto o agravamento da pobreza são frutos do sistema de produção, de consumo e
de especulação que domina a terra e as pessoas.”
Ivo Poletto é filósofo e
cientista social. Trabalha atualmente como assessor educacional no Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, que articula
movimentos, entidades e pastorais sociais em torno da defesa dos direitos
sociais da população afetada pelas mudanças climáticas provocadas pelo
aquecimento global. Entre 1975 e 1992, foi o 1º secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra; de 1993 a
2002, foi assessor da Cáritas Brasileira;
em 2003 e 2004, foi membro da Equipe de
Mobilização Social do Programa Fome Zero, do governo federal – sobre esse
período, escreveu o livro Brasil: oportunidades perdidas – Meus dois
anos no Governo Lula (Editora Garamond, 2005).
Confira
a entrevista.
IHU On-Line:
Como compreender a escolha do tema “biomas brasileiros e a defesa da vida” para
a Campanha da Fraternidade neste ano? E como foi sua participação na construção
dessa proposta?
Ivo Poletto: A dimensão socioambiental
da vida tem sido abordada diversas vezes nas Campanhas da Fraternidade. Destaco
duas, por sua relação com a temática deste ano. Em 2007, a temática foi Fraternidade e Amazônia, com o lema “Vida e missão neste chão”, convidando
as pessoas de todo o país a preocuparem-se com o que estava acontecendo neste
bioma. Em 2011, a temática enfrentou as mudanças climáticas provocadas pelo
aquecimento global: Fraternidade e vida
no Planeta, com o lema “A Criação
geme em dores de parto”.
Na
CF de 2007, não foi fácil mobilizar as pessoas em favor da Amazônia, vista como
uma realidade distante. Como ligar com a vida na região da gente? Foi nesse
ano, com certeza, que nasceu a reivindicação em favor de uma CF que encarasse a
realidade de todos os biomas do país.
Por
isso, a escolha deste tema tem a ver com o avanço da consciência de muitos
cristãos/ãs e, de modo especial, os animados pelas pastorais sociais, pela
Cáritas e pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, no sentido de que todos os biomas estão sendo afetados pelas
ações humanas e precisam, por isso, de uma atenção cuidadosa e de práticas que
ajudem a Terra a recuperar as suas características originais. Tem a ver
também com o insistente convite do papa Francisco a todas as pessoas – de modo
especial na sua encíclica Laudato Si'
– sobre o cuidado da casa comum – para que se deem conta de como a vida está ameaçada no planeta Terra e
de como é urgente a mudança estrutural do sistema econômico dominante e do
estilo de vida dos que estão envolvidos no produtivismo e no consumismo.
Não
participei diretamente da equipe que elaborou o texto-base, mas creio que
contribuí por ter sido uma das pessoas que abriu o debate sobre a importância
de prestar atenção às características dos biomas, tanto entre as pastorais
sociais como na Assembleia Popular.
Nessa
direção, estarei disponibilizando, na
forma digital, o livro Biomas do
Brasil – da exploração à convivência, que elaborei ao longo dos últimos
anos e que poderá contribuir nos debates sobre os biomas, de modo especial na
perspectiva de repensar o Brasil a partir deles. Poderá ser encontrado nos próximos dias, clicando aqui.
Como
as questões ambientais têm sido tratadas pela Igreja no Brasil? A Campanha da
Fraternidade deste ano subverte essa perspectiva?
Ivo Poletto: Na maior parte das vezes, a
visão eclesial esteve centrada no ser humano, no seu direito a um ambiente
saudável. Tem sido difícil superar o antropocentrismo, justificado até mesmo
por leituras do Gênesis, em que a narrativa da Criação afirmaria o ser humano
como centro, como destinatário de tudo que Deus fez. Deixou-se de lado a dimensão de que o ser humano, mulher e homem, é
parte da Criação, é constituído a partir dos mesmos elementos da natureza, e
que o amor gratuito de Deus se manifestou em “tudo que foi criado”, e não
apenas no seu sopro que deu vida à espécie humana.
Ao
convidar as pessoas e comunidades a se darem conta de que nasceram e vivem em
um determinado bioma, está aberta a possibilidade de relativizar esse
antropocentrismo. O ponto de partida não
é o ser humano, nem mesmo a Terra como um planeta genérico, e sim os diferentes
“jardins” – os biomas – que a Terra criou. Sim, a Terra, movida pela
energia do espírito de Deus, tornou-se criadora de uma incrível biodiversidade
e de uma sociodiversidade a partir da presença do ser humano. Não foi o ser humano o primeiro ser criado,
menos ainda foi ele que criou o que constitui os ambientes favoráveis à vida.
Diferentes seres humanos encontraram diferentes jardins, criados gratuitamente
por Deus e pela Terra em um longo processo. Por isso, os seres humanos, ao
criarem o que precisavam para viver, foram influenciados pelo ambiente que
encontraram e interferiam nele, dando seguimento ao processo de criação do qual
são parte de forma positiva, convivendo com o bioma ou destruindo o que havia
sido criado, expondo sua própria vida ao perigo.
Por
isso, será muito superficial a CF de 2017 se as pessoas e comunidades apenas se
derem conta das características atuais do bioma em que vivem. A oportunidade que Deus está abrindo é
dar-nos conta de que a espécie humana foi acolhida em um ambiente vivo e
gerador de vida, e de que a melhor escolha teria sido a de conviver com o
jardim que encontrou. E como cada
bioma tem características próprias de:
* clima,
* de águas,
* de ventos,
* de solo e de subsolo,
* de espécies vegetais,
animais, aves, peixes e outros seres das águas, insetos,
vale a pena perguntar-se se
a situação atual de cada bioma não tem a ver com a falta de atenção a tudo
isso, com a decisão de interferir neles como se fossem iguais, adaptando-os aos
planos humanos,
aos interesses de empresas, à cobiça de um enriquecimento sem fim.
Quais
os maiores desafios para trabalhar a conexão entre os princípios cristãos, a
preservação do meio ambiente e o combate à pobreza e às desigualdades?
Ivo Poletto: A realidade da vida em cada
bioma e em todos os biomas da Terra nos mostra que as condições da vida humana
e do meio ambiente da vida estão profundamente modificadas. A velocidade das mudanças provocadas pelos
seres humanos com o uso de tecnologias que resistem se submeter ao tempo e ao
espaço afetam, ao mesmo tempo, ao meio ambiente e aos pobres, como nos
mostra o papa Francisco em sua Laudato
Si'. E por isso, já não é correto dizer que a humanidade enfrenta duas
crises, a social e a ambiental. Só há uma crise, de caráter socioambiental. Tanto a degradação da natureza quanto o
agravamento da pobreza são frutos do sistema de produção, de consumo e de
especulação que domina a terra e as pessoas.
Por
isso, o combate e a superação da pobreza e da desigualdade que afetam as
pessoas, bem como do aquecimento e das mudanças climáticas que afetam o
planeta, fazem parte do combate e da superação
da escandalosa e criminosa concentração da riqueza e do poder no mundo,
fruto de um sistema centrado no absoluto da economia de livre iniciativa dos
detentores de capital e na especulação financeira sem regulações.
A
perspectiva cristã, nessa realidade, é de profecia
em defesa da vida. E ela valoriza o copo de água dado a quem está com sede,
assim como defende quem luta pelo direito de todas as pessoas, de todos os
seres vivos e da Terra à água limpa, potável. Ela valoriza como práticas de salvação as iniciativas de cuidado com:
* as fontes,
* córregos e rios de cada
bioma, assim como
* incentiva e defende como
práticas de salvação as denúncias dos efeitos destrutivos das práticas de
agronegócio,
* de indústrias,
* de hidrelétricas,
* de mineração, por
contaminarem e envenenarem solos, águas e aquíferos, e por transformarem os
bens naturais e as pessoas em mercadoria.
Como
sensibilizar as pessoas para o fato de que o desequilíbrio do planeta é de
responsabilidade de cada um e afeta a vida de todos, essencialmente dos mais
pobres? Qual o papel da Igreja nesse processo?
Ivo Poletto: A primeira pergunta que
devemos responder é esta: o que cada pessoa pobre faz afeta a vida de todas as
pessoas, e especialmente dos outros pobres? E as práticas da esposa de um
assalariado urbano afetam a vida de todas as pessoas? E as práticas dos povos
indígenas, em que afetam a vida de todas as pessoas e de toda a natureza?
Essas
perguntas servem para lembrar que é
muito importante evitar generalizações. É verdade que tudo que fazemos, e
até mesmo o que deixamos de fazer, afeta de algum modo a vida das pessoas e o
ambiente da vida. Mas é igualmente verdadeiro que as responsabilidades são diferentes, e até muito, muito diferentes.
É praticamente impossível comparar a responsabilidade de uma mulher ou de uma
família que vive na periferia urbana ou em área rural e a de cada um dos seis
homens mais ricos do mundo de 2016, que concentram em suas mãos, contas, bolsas
e paraísos fiscais mais riqueza que 3,7 bilhões de pessoas, mais que a metade
da humanidade. E os que se enriquecem
com extração, refino e venda de petróleo e carvão e gastam bilhões de dólares
para evitar que essas fontes fósseis sejam substituídas por fontes mais limpas
e realmente renováveis, como o sol, os ventos, carregam uma
responsabilidade que deveria ser considerada crime contra a vida.
Por
isso, a geração de consciência e o estímulo em favor de práticas de cuidado e
amor à natureza da Terra – à natureza de cada bioma – e aos pobres partem da
percepção de que a maioria da
humanidade, e especialmente os mais pobres, estão sofrendo por causa das
mudanças climáticas, seja por falta de água, seja por enchentes, e estão
sofrendo por causa dos preços dos alimentos, dos salários baixos ou da falta de
emprego e trabalho que gere renda. Ao buscar o que está causando tudo isso,
é fundamental identificar os que se valem, mantêm e
expandem o sistema de exploração da Terra e da humanidade. E perceber
que tudo que cada pessoa, cada comunidade e cada localidade pode fazer para
enfrentar o que não está bem no meio ambiente da vida e na própria vida das
pessoas é muito importante porque ajuda a cuidar do jardim – do bioma – em que
se vive junto com todos os seres da sociobiodiversidade; e também é importante
porque dá moral para denunciar e
combater os grandes poluidores, os que se enriquecem explorando e estragando a
natureza sem se importar com isso, presos ao seu egoísmo e à sua ganância.
Insistindo,
a responsabilidade de cada pessoa e comunidade só será assumida positivamente
quando vista como gesto de amor e
como contribuição a um processo mais profundo, mais estrutural de enfrentamento
das práticas que realmente provocam o desequilíbrio ambiental e a deterioração
das condições de vida das pessoas.
Os pobres são os mais atingidos e prejudicados pelas mudanças no clima planetário |
Como
a encíclica de Papa Francisco Laudato Si'
tem sido recebida pelo clero da Igreja no Brasil? A leitura e a análise do
documento têm contribuído para as discussões na base, nas paróquias, nos grupos
e nos movimentos sociais?
Ivo Poletto: Em algumas oportunidades de
diálogo e formação, tenho percebido que muitas
pessoas não tinham lido a Laudato Si'.
Buscando as causas disso, percebi que
ela não foi acolhida como deveria por parte importante do clero.
Evidentemente motivei a mudança de atitude, seja individualmente, seja na
perspectiva de disponibilizar o texto e criar oportunidades de estudo junto às
comunidades.
Por outro lado, esta
mensagem do Papa foi acolhida com entusiasmo por todas as pessoas e comunidades
já engajadas em práticas de cuidado do meio ambiente e de promoção dos direitos
das pessoas.
Este entusiasmo é perceptível também entre pessoas que não se consideram
cristãs, mas agem e atuam com a perspectiva socioambiental. Para estas pessoas,
a Laudato Si' é uma mensagem
profunda, com muitos elementos de análise crítica da realidade e do tempo em
que vivemos, e um desafio para avançar em práticas coerentes em nível pessoal,
comunitário e político que enfrentem e ajudem a mudar o que deve ser mudado
para evitar que as agressões à Terra e a seus filhos e filhas tornem impossível
a continuidade da vida.
De
modo geral, como a Igreja, e em especial o clero [padres,
bispos, religiosos], no Brasil têm
recebido o papa Francisco?
Ivo Poletto: O Papa Francisco não fica indiferente diante de tudo que ameaça a vida
dos pobres e da Terra, também as pessoas não ficam indiferentes em relação a
ele. Não se
trata apenas de gostar ou não de suas palavras. A relação implica as práticas e
as palavras, num caminho de coerência. Por isso, há muitas pessoas que se relacionam com entusiasmo com ele, sentindo-se
confirmadas ou provocadas a serem melhores. E há pessoas que se sentem
incomodadas, resistindo ao convite de mudar.
Parece
estranho que se reconheça que a acolhida positiva, aberta à mudança, é mais
comum entre as pessoas do povo, entre os cristãos não envolvidos em
“ordenações”. O clero, no seu conjunto,
é menos receptivo a um Papa que promove mudanças na forma de ser da Igreja, na
forma da vivência da missão, na forma de coerência
entre palavra e ação. Talvez isso se deva ao fato de que papas
anteriores impulsionaram a formação de clérigos mais voltada para a estrutura
eclesial, pouco ou nada atenta às dimensões sociais da vida. Talvez porque é menos incômodo manter-se
nas estruturas já consolidadas, mesmo se isso afasta a vida cristã das
dimensões mais radicais do Evangelho de Jesus de Nazaré.
Mas
vale saudar as iniciativas de tornar conhecida mensagem do papa Francisco e as
que buscam renovar a prática pastoral contando com ela. Na verdade, só estranha a mensagem e as práticas do
Papa quem desconhece a vida, as práticas e a mensagem de Jesus de Nazaré,
pois é a sua inspiração e estímulo para colocá-las em prática de forma
coerente.
Há
compreensão por parte do clero das assertivas pastorais do papa Francisco? De
que forma as leituras e interpretações de Amoris
Laetitia revelam a compreensão do clero brasileiro ao Papa?
Ivo Poletto: Pelo que tive oportunidade
de perceber, creio que se pode dizer que os cristãos e cristãs, e entre eles os
clérigos, apreciam melhor os convites do Papa a práticas de maior compreensão
das pessoas, maior misericórdia, menos condenações. Reagem menos positivamente, e talvez até com indiferença, quando os
convites vão no sentido de sair dos palácios, das casas paroquiais e das
sacristias e ir para as periferias, para o encontro com Deus nos empobrecidos,
nos injustiçados. E de modo particular quando o Papa sugere que se envolvam
com eles, denunciem, apoiem suas iniciativas de luta por seus direitos.
A
impressão que se tem é que a formação do
clero nas últimas décadas foi marcada pela perspectiva de evitar se envolver em
conflitos, em nome de que a mensagem cristã é para todas as pessoas,
independentemente de sua condição socioeconômica. Então, tomar partido em
favor dos empobrecidos seria uma prática política incorreta, porque significa
colocar em questão tudo que tem a ver com a sua situação. Agora, relacionar-se com os mais ricos, frequentar
suas casas e banquetes seria prática pastoral correta, não teria conotações
políticas, não leva a conflitos.
Essa
constatação levanta a questão:
a) num mundo como o atual, é
possível um seguimento fiel, coerente e atualizado de Jesus de Nazaré sem envolver-se
nos conflitos socioeconômicos e sociopolíticos gerados por quem domina e
explora sem dó nem piedade pessoas e a Terra?
b) É possível ser seguidor e testemunha de
Jesus de Nazaré sem uma espiritualidade do conflito, alimentada pela esperança
e pelo amor?
Estou
convencido que não, e por isso creio ser absolutamente indispensável repensar a
formação dos clérigos. Na verdade, sem repensar, junto com ela, a lei do
celibato como única via de acesso à missão presbiteral.
Quais
os maiores desafios para o pontificado de Francisco?
Ivo Poletto: Desde antes de sua escolha
para a missão do papado, o bispo Bergoglio tinha consciência e deixou claro aos
cardeais eleitores que as reformas necessárias à Igreja Católica, em conteúdo e
forma, não eram tarefa para uma única pessoa e nem poderiam ser realizadas no
curto prazo. Quando eleito, imediatamente constituiu uma comissão para ajudá-lo
a definir os passos a serem dados na reforma da estrutura do Vaticano. A ela se
seguiram outras, sempre na perspectiva do colegiado
episcopal e cristão. E para enfrentar temas desafiadores para a pastoral,
como o do acolhimento dos que vivem em segundo casamento, o caminho tem sido um
longo e paciente processo de reflexão conjunta, via Sínodo.
Por
outro lado, o grande desafio assumido
pelo papa Francisco é o de estimular uma vivência cristã que seja fiel e
coerente seguimento e testemunho de Jesus de Nazaré no mundo atual. As
reformas nas estruturas administrativas são importantes, mas têm como
referência esta atualização da missão.
Creio, então, que os seus
dois maiores desafios são:
1º)
as reformas no modo de organizar a Santa
Sé e
2º)
as mudanças necessárias para a
fidelidade a Jesus na missão.
As reações dos seus
opositores estão ligadas a essas duas prioridades de seu papado. Alguns preferem continuar nos palácios, em estruturas de governo e
poder mais próximas das práticas de empresários e políticos, e por isso se
sentem mal diante das práticas simples e transparentes de Francisco. E como a
renovação da missão exige mais misericórdia do que repetição de leis, a acusação de desvios teológicos serve para
tentar a manutenção de justificativas para a acomodação. Por último, como a
fidelidade a Jesus exige estar com os que Ele escolheu como os “primeiros”, os
pobres, vale tudo para tentar impedir que a Igreja assuma a sua causa,
envolvendo-se no processo de crítica evangélica aos que “servem ao dinheiro” como seu ídolo, passo indispensável
para a construção de sociedades de justiça, de paz, de bem viver.
Qual
a sua leitura sobre o momento político atual no Brasil e no mundo? E como
observa movimentos e manifestações sociais nesse momento?
Ivo Poletto: A humanidade enfrenta um
tempo desafiador. Conta com imensas possibilidades de vida feliz para todas as
pessoas, mas as políticas econômicas
dominantes estão controladas e a serviço da concentração da riqueza, da renda.
Conta com mediações de comunicação que poderiam facilitar a participação
democrática, mas o controle do Estado
por forças conservadoras e até fascistas, bem como o controle das mídias
sociais por empresas monopolistas, impedem que as decisões sejam tomadas de
forma democrática. Com isso, em lugar de avançar na direção de relações de
paz entre os povos, a guerra e a violência ainda são ferramentas de dominação;
em lugar de utilizar as tecnologias já disponíveis e em desenvolvimento para
produzir a energia necessária com fontes menos agressivas ao meio ambiente da
vida, aumenta a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, aumentando
o aquecimento e agravando as mudanças climáticas.
O Brasil faz parte desse
cenário e é exemplo de antidemocracia e de uso dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário a serviço da minoria abastada que domina e explora a
natureza, os trabalhadores, os povos e comunidades tradicionais em todos os
biomas.
Firma-se, dessa forma, entre os campeões da desigualdade socioeconômica, da
injustiça tributária, da especulação financeira, da submissão aos interesses
das grandes corporações transnacionais.
Em
relação aos movimentos sociais, percebe-se, por um lado, grande dificuldade
para construir unidades mobilizadoras, seja porque encontravam-se relativamente
desmobilizados pelas relações políticas com os governantes dos últimos 12 anos
ou porque a população demora um pouco para sentir em seu cotidiano os efeitos
das reformas conservadoras e elitistas. Por outro, ainda buscam formas para
enfrentar a violência com que os governantes têm reprimido as mobilizações. Há
sinais evidentes de que uma das estratégias de sustentação do governo federal
ilegítimo, nascido de um golpe parlamentar, é a generalização do medo e a classificação das mobilizações sociais
legais como ameaça terrorista à ordem imposta por quem muda a Constituição a
seu bel prazer, a serviço de seus interesses.
Como
todos os poderes que pretenderam perenizar-se como o “fim da história” foram
derrotados por seus próprios erros e pelas forças que a eles se opuseram com
propostas mais humanizadoras, com certeza haverá tempos melhores também em
nosso país. O tempo atual é também
oportunidade para rever criticamente os equívocos e as oportunidades perdidas
no período em que a maioria da população confiou o exercício do poder político
a quem se comprometeu construir um país mais justo e democrático.
A Igreja no Brasil tem sua história marcada por
personagens que trouxeram à luz o debate político, nomes como dom Helder Câmara
e dom Paulo Evaristo Arns, entre outros. Como avalia a participação da Igreja
hoje, nesse cenário?
Ivo Poletto: A presença e atuação da
Igreja Católica no Brasil não deve ser medida apenas a partir de suas
lideranças. A força da palavra de dom Helder, dom Paulo Evaristo, dom Pedro Casaldáliga,
dom Tomás Balduino, dom Ivo Lorscheiter, dom Luciano Mendes e outros tinha
raízes, ao mesmo tempo, na qualidade dos cristãos/ãs e das comunidades
eclesiais que animavam em suas igrejas particulares e na coerência pessoal que
os levava a enfrentar as injustiças com coragem. Eram ouvidos, respeitados e até temidos porque promoviam Comunidades
Eclesiais de Base dinâmicas, que fermentavam a sociedade com lutas por justiça
e em favor da construção de novas formas de convivência social e política, com
novas formas de economia solidária.
A presença menos profética
desta Igreja na atualidade se deve ao enfraquecimento da vida pessoal e
comunitária dos cristãos nas bases, fruto provavelmente da volta ao
clericalismo e ao pietismo, promovidos por movimentos conservadores e por um clero formado com
visão eclesiocêntrica, com pouca relação com as práticas e mensagens de Jesus
de Nazaré, com medo, indiferença ou paternalismo na relação com os
empobrecidos. E fruto certamente também da diminuição
de lideranças capazes de estimular a qualidade da vida e da presença cristã na
sociedade.
Nessa
perspectiva, não faz mal orar ao Senhor
que nos envie pessoas abertas à conversão permanente como o papa Francisco,
capaz de promover com coragem reformas internas no modo de organizar-se como
Igreja, e capaz de animar as pessoas, as comunidades, as igrejas particulares e
as conferências episcopais a se converterem de forma coerente no seguimento e
anúncio do Evangelho de Jesus, sendo presença revolucionária, transformadora,
testemunho de esperança na história concreta de cada localidade, de cada
região, de cada país, do mundo e do universo.
Como
conceber outras chaves de leitura que subvertam a lógica da modernidade,
propondo outras leituras da Criação, da relação entre economia e sociedade, da
relação entre ser humano e meio ambiente e das desigualdades que se atualizam
no século XXI?
Ivo Poletto: Esse é um tema complexo, em
relação ao qual me limitarei a duas sugestões. A primeira delas é a
contribuição dos povos de longa história, dos povos originários, que
denominamos indígenas, na formulação de visões e formas de vida que questionam
profunda e radicalmente a visão e forma de vida que se tornou dominante no
Ocidente no período da modernidade, e por isso se tornou e se impôs como
civilização, com pretensa única civilização. Trata-se da riqueza em todas as dimensões da vida presente na proposta
do bem viver.
Ao
contrário da civilização moderna, hegemonizada pelo capitalismo, que reduziu a
Terra a um amontoado, ideologicamente considerado infinito, de recursos a serem
apropriados e usados pela livre iniciativa para produzir mercadorias,
exploração e lucros, a Terra é ser vivo,
mãe de todas as formas de vida, inclusive dos seres humanos, e, por isso, cada
povo deve conviver nela no território a ele destinado. Ao praticar e propor
relações de cooperação entre pessoas livres de propriedade e relações que não
interferem gravemente e ajudam a manter a harmonia com todos os bens e
espíritos da natureza, há no bem viver não um modelo, mas uma fonte inesgotável
de possibilidades de construção de comunidades e sociedades não e pós-capitalistas.
A
segunda sugestão é tomar a [encíclica
de papa Francisco] Laudato Si' como base e ponto de partida para uma crítica radical
ao sistema e à civilização dominantes – em que se extrema a apropriação e o
uso de tecnologias que geram, ao mesmo tempo, destruição da Terra e das
condições de vida dos pobres, e é, por isso, um sistema que mata – a partir da
mensagem bíblica, centrada nas práticas e palavras de Jesus de Nazaré. Uma
leitura que se aprofunda a partir da mediação da teologia franciscana da
Criação.
Nada justifica a
concentração da riqueza e a geração ou manutenção da miséria existente na
humanidade atual, a não ser a loucura e a irracionalidade que elas revelam ser
o DNA da pós-moderna sociedade dominada pelo capital financeiro globalizado, que se pretende acima de
toda e qualquer lei e regulação.
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