Democracia brasileira sob ataque
Como Bolsonaro corrói o Estado e as liberdades individuais por meio de leis
Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy
No
Brasil, presidente repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis operando
o Direito, aponta levantamento
Manifestações de bolsonaristas resumem, bem, o tipo de regime autoritário que se pretende instalar no Brasil. Há uma legião de "escravos voluntários" que apoiam essa desfaçatez |
A medida foi dissimulada em meio à Proposta de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11 aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando uma leva de ministros da Corte.
“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, disse Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de
Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP).
“Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o
controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do
Direito para obter legitimidade.”
Em 2004, Hugo Chávez elevou o
número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na
Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à
corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema. JAIR BOLSONARO & HUGO CHÁVEZ mesmo modo de proceder para implantar o autoritarismo e minar a democracia
Levantamento do Estadão sobre a atuação de Bolsonaro em 20
temas mostra que, desde sua posse, o presidente e seus ministros editaram 88
decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou resoluções ou
patrocinaram projetos de lei e alterações legais que incluíam medidas que corroíam
o Estado ou atentavam contra as liberdades civis e direitos constitucionais.
Ou seja, a cada 11 dias, ao menos uma medida desse tipo foi
criada pelo governo. O levantamento leva em conta a avaliação de analistas. Trata-se
de um processo de “cupinização” do governo das leis, na expressão do
professor emérito da USP e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer. “Você vai ‘cupinizando’ as regras do
Direito”, disse.
“No fundo, o que o governo Bolsonaro busca é, fugindo das
instituições e das regras do Direito, sempre definir a exceção para obter a
servidão voluntária e ‘cupinizar’ as instituições.”
Segundo Pires, o Direito é a forma usada por populistas autoritários para criar exceções com as quais modificam estruturas do Estado, atacam a democracia e negam direitos. Suas decisões são sempre tomadas levando em conta a oposição entre amigos e inimigos.
Lafer e Pires usam a mesma pista para compreender esses
governos e suas relações com o Direito: as obras do pensador francês Étienne de La Boétie e do jurista alemão Carl Schmitt. “La Boétie trata da servidão
voluntária e, evidentemente, o que os bolsonaristas acabam logrando é a
servidão voluntária de seus sequazes”, afirmou Lafer. O ex-ministro prossegue:
“Para Schmitt não interessa a normalidade; interessa a exceção. O que
caracteriza o pensamento dele é poder definir a exceção, a capacidade de poder
defini-la. O soberano tem o poder de declarar a exceção...
... No fundo, o que Bolsonaro quer é ter o poder soberano de
declarar a exceção.”
É isso que explicaria ações do governo, como a Medida Provisória 979, de 2020, que autorizava Bolsonaro a nomear reitores provisórios para universidades federais enquanto durasse a pandemia de covid-19. A intervenção na autonomia das universidades – identificadas pelo governo como centros dominados por inimigos esquerdistas – foi barrada pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolveu a MP sem analisá-la. Era a segunda vez que Bolsonaro tentava, sem sucesso, modificar o processo de escolha dos reitores.
O mesmo modo de agir – não para a adoção de políticas, mas
para atacar inimigos escolhidos pelo governo – teria marcado a ação do governo
em outra área: a do Meio Ambiente. Populações indígenas e a atuação de
ecologistas e de ONGs ligadas à Amazônia foram escolhidas como alvo pelo
governo, a ponto de o Supremo ter obrigado Bolsonaro a estabelecer um plano
de combate à covid-19 nas aldeias e ter destituído o presidente do Ibama sob a
acusação de ele ser conivente com a exploração ilegal de madeira.
Quase metade
das normas que corroem a base legal do Estado teve como alvo enfraquecer
a defesa do Meio Ambiente.
Para a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, governos autoritários têm projeto de destruição de direitos. No Brasil, muitas das medidas contestadas nesta gestão foram adotadas como portaria ou decreto, em razão da resistência do Congresso a mudar as leis, como no caso das legislações ambiental e de armas. Ela destacou ainda o perigo de mudanças na lei eleitoral servirem para restringir a democracia e a representação popular. “O Ministério Público é resiliente e seus integrantes vão cumprir seu dever. Assim como o STF, que entendeu muito bem que deve ser uma barreira à desconstrução da Constituição.”
Lafer também destacou a resistência no Brasil a medidas do atual governo. “A tradição política do Direito é conter o arbítrio. É o que dizia Rui Barbosa na Oração aos Moços. Ele sempre procurou assegurar o governo das leis e não o dos homens. Cabe ao advogado, nesse sentido, um tipo de magistratura. É isso que muitos juristas, preocupados com a res pública [= a coisa pública, o bem-comum], procuram fazer: exercer essa magistratura.”
Juntamente com o Judiciário, as universidades e a área ambiental, a imprensa é um dos alvos prioritários da ofensiva antidemocrática de Bolsonaro. Levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), divulgado na semana passada, identificou 87 ataques do presidente à imprensa nos primeiros seis meses deste ano, o que representa um aumento de 74% em relação ao semestre anterior. Foram 49 ataques contra a imprensa em geral, 28 contra veículos específicos e dez contra jornalistas. Se considerado o “sistema Bolsonaro” – grupo que inclui a família e os ministros do presidente –, o número de ataques no semestre chega a 331. No ranking de agressores, Bolsonaro está em primeiro lugar, seguido por três filhos de seus filhos.
Também divulgado na semana passada, o Relatório Global de Expressão, da organização Artigo 19, qualificou o Brasil como uma “democracia em crise”. No relatório, que é relativo a 2020, o País registrou só 52 pontos na escala de liberdade de expressão, que vai de zero a cem, sendo zero a nota de um país sem liberdade de expressão e cem a de total liberdade. Foi a menor pontuação brasileira no indicador desde a primeira medição, em 2010.
O documento enumera 464 situações em que o presidente, ministros
ou assessores próximos “atacaram ou deslegitimaram jornalistas e o seu trabalho,
nível de agressão pública que não é visto desde o fim da ditadura militar”.
A Artigo 19 é uma organização que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo. Seu nome tem origem no 19.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
O Estadão procurou o Palácio do Planalto e a
assessoria da Casa Civil para que comentassem o papel do governo na erosão da
democracia, mas não houve resposta aos questionamentos da reportagem.
Atentados contra liberdades civis e direitos constitucionais
Daniel Bramatti
Entrevista com Luis
Manuel Fonseca Pires
Juiz, professor de Direito da PUC-SP e pesquisador
Estudioso
afirma que governo opera sob premissa de “amigos e inimigos” como elemento
estruturante
LUIS MANUEL FONSECA PIRES |
Autor do livro Estados de Exceção, a usurpação da soberania popular, Pires afirmou ser necessário atualizar a concepção clássica de estado de exceção, pois, na atualidade, ela é acompanhada da ideia de “volatilidade do inimigo”. Ora ele é uma instituição, ora ele é um grupo.
Há um denominador comum por trás das medidas
legais do governo Bolsonaro?
Luis Manuel Fonseca Pires:
É preciso entender que o autoritarismo contemporâneo é um processo em
construção. Ele não se dá em um dia, em um momento específico. É um
processo que se elabora permanentemente. É preciso ter consciência de que isso
não é um sinal de fragilidade da ascensão do autoritarismo. É simplesmente
que essa é a estratégia do terceiro milênio, ele se elabora dessa forma
gradual. É uma construção que opera por fragmentação. O autoritarismo
contemporâneo seleciona âmbitos da vida civil e instituições públicas que ele
ataca sistematicamente, mas de um modo circular. Ora é preciso atacar o
Judiciário, ameaçar o impeachment de algum ministro, depois, deixa-se isso de
lado e se vai para um âmbito civil. Por exemplo: a liberdade de imprensa. E é
preciso atacar e massacrar essa liberdade. O estado de exceção
tradicionalmente se estrutura pela equação amigo e inimigo. No romance (1984)
ninguém sabe direito se Emanuel Goldstein existe
ou não, se é uma lenda. Mas há uma cultura de ódio contra ele porque o estado
totalitário precisava ter um inimigo, porque sem um inimigo ele não sobrevivia.
Já o estado de exceção contemporâneo tem a estratégia de mudar os
campos de ataque. Ele não pretende ser totalitário. Ele pretende ir minando
vários campos.
O pressuposto ainda é o mesmo: ele precisa ter o inimigo como estruturante de suas ações. Os atos e as políticas públicas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. Nós não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal, porque todos os governos podem praticar medidas legais ou ilegais que devem ser corrigidas. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante. Mas com a estratégia da circularidade. Há algo que é preciso atualizar na concepção clássica de estado de exceção, que é mais um motivo para chamarmos de ‘estados de exceção’ na atualidade, que é a ideia da volatilidade dos inimigos.
Por que o inimigo agora é difuso, ao
contrário do que ocorria nos autoritarismo do século 20?
Fonseca Pires: Houve uma larga produção de
pensamento crítico à esquerda e à direita após a 2.ª Guerra Mundial sobre os
absurdos produzidos pelo estado de exceção clássico, que se identificou com a
ideia do totalitarismo, a ideia da produção de um homem novo, do domínio de
todos os campos ao mesmo tempo. A partir dos anos 1970, na América Latina,
você começa a contar com o uso do Direito de uma forma mais sofisticada,
mascarando a produção da exceção. Tanto porque o pensamento crítico não
tolerava mais isso quanto pela legitimidade que o Direito dá às situações
arbitrárias. Seria muito melhor para a construção da legitimidade o uso da
ação judicial. Esse é um modo diferente do novo autoritarismo.
Ele tem o cuidado de dissimular suas práticas e precisa contar muito
mais com o Direito como aliado.
A cúpula nazista não estava preocupada com o Direito. Hoje é
o contrário. Após a 2.ª Guerra há um processo de transformação em que há
necessidade de se contar com a comunidade jurídica, com os legisladores, a
produção de políticas, os atos do Executivo, com o Ministério Público, o
Judiciário e as posições-chave nas universidades. Todos os lugares onde de
algum modo se produzem atos, decisões e o ensino jurídico.
As universidades têm dois motivos para serem atacadas:
a) primeiro pela produção jurídica
que podem oferecer e,
b) segundo, por serem um local de
pensamento crítico.
Regimes autoritários contemporâneos têm os três pilares do
pensamento crítico como inimigos:
* a Educação,
* a Cultura e
* a liberdade de imprensa.
E operam com circularidade nos ataques aos inimigos. Precisam
ter o inimigo do mês ou da semana. Numa semana ele é Leonardo Di Caprio. Na
outra, o youtuber Felipe Neto ou o pensamento do Paulo Freire. A volatilidade é
a marca da sociedade contemporânea. Mas sem o inimigo não se estrutura o
estado de exceção. Nem no passado, nem no presente.
A produção legal e infralegal do governo
seria fundamental então para entender como o governo Bolsonaro opera?Livro escrito pelo entrevistado, lançado em março de 2021, pela editora Contracorrente
Fonseca Pires: É essencial ter produção jurídica para dar verniz de legitimidade. Essa é a ideia. Para que as medidas autoritárias não se apresentem como tais, elas precisam contar com o Direito para tentar dar uma racionalidade à produção da vontade política arbitrária. O elemento mediador do conflito entre a política e o Direito é a Constituição. Esta estabelece uma relação de valores fundamentais. Por exemplo: a ciência. Se a Constituição é a mediadora das vontades políticas, isso significa que as decisões possíveis dos governos devem estar no âmbito da ciência. Não se pode negar a ciência. Como então produzir políticas públicas negacionistas, acabar com distanciamento e o uso de máscaras na pandemia? Como tomar medidas contra o senso comum estabelecido pela ciência? Essa vontade política é arbitrária porque rompe com o horizonte de possibilidades que a Constituição deu. Em uma pandemia, não é uma alternativa legal você negar a pandemia. Quando a vontade política pretende impor o negacionismo, ela precisa atualmente do Direito, ao contrário do que ocorria no passado ou em regimes autoritários clássicos, como a Coreia do Norte.
Nessa perspectiva, qual a importância do
controle do STF?
Fonseca Pires: É um objetivo que deve estar
presente para a construção de um regime autoritário. Hoje, no Brasil, os
pontos mais marcantes de resistência à ascensão do autoritarismo são:
* a liberdade de imprensa,
* os movimentos sociais,
* o Poder Judiciário.
E o Direito passa a ser utilizado como recurso de minar essa resistência. Ele é usado para escolher reitores de universidades que não foram os mais votados. Há ataques constantes à imprensa quando esta tenta identificar suspeitas de corrupção e o uso da Lei de Segurança Nacional para intimidar jornalistas e opositores pacíficos em protestos. O Direito é usado para minar os inimigos – e não a força bruta.
Como esses governos mobilizam pessoas contra
os inimigos?
Fonseca Pires: As vontades políticas arbitrárias são mobilizadas por afetos políticos, por sentimentos. Aquilo que no passado se manifestava por meio de ordem administrativa, de detenção ou de execução, como na Noite dos Longos Punhais (a execução de líderes da S.A., a mando de Hitler, em 1934), hoje se manifesta no Direito. Ele é o repositório desses afetos. Ele tem o papel de converter os afetos políticos – como o ódio – em discursos pretensamente racionais. Como o ódio ao processo de conhecimento se materializa para calar professores e o desenvolvimento do pensamento crítico em sala de aula? Como fazer isso no terceiro milênio? É preciso do Direito para que ele se converta em discurso de pretensa racionalidade com o nome de escola sem partido.
Mas não se trataria apenas de mera “passagem
de boiada”?
Fonseca Pires: Todas as vontades
arbitrárias, que não se encontram na Constituição, para se manifestarem são
estados de exceção. Os regimes autoritários
contemporâneos não fecham o Parlamento ou o Judiciário. Eles funcionam com as
instituições formalmente presentes. Essa nova estratégia mantém um grau de
permanência na vida civil: não é preciso eliminar todos os órgãos de imprensa
ou todas as políticas públicas ambientais.
Vive-se com ataques, que os vão minando gradualmente, o que
dificulta a produção do pensamento crítico.
Pessoas que não se deram conta da gravidade da situação têm
como horizonte as referências históricas. Elas dizem que este ou aquele não é
um regime autoritário porque o Congresso está funcionando. O regime autoritário
do passado tinha a meta de fincar a bandeira. Havia dia, mês e ano para
celebrar sua instauração. Hoje o autoritarismo é fluido com a constante
atualização dos inimigos a serem combatidos. Não vamos ter uma data para
celebrar o fim da democracia, pois autoritarismo contemporâneo usa o símbolo da
democracia como justificativa de suas medidas de exceção.
O objetivo não é fechar universidades, mas capturá-las. O
objetivo não é fechar o Supremo ou o Congresso, mas colocá-los ao
lado de quem opera os estados de exceção.
Bolsonaro não conseguiria fazer tudo isso sozinho. Ele precisa do apoio de outras forças. A volatilidade do inimigo é também traço da volatilidade do soberano nos estados de exceção. Ele não pode se estabelecer às claras; é uma fantasmagoria. O novo autoritarismo não tem uma meta. A meta é o presente. O que está acontecendo é o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Política / Democracia em Erosão – Domingo, 1 de agosto de 2021 – Págs. A8 e A9 – Internet: clique aqui (acesso em: 02/08/2021).
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