«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Leitura obrigatória

 Reedição mostra que François Rabelais é comparável a Dante, Shakespeare e Cervantes

 Rodrigo Petronio

Escritor, Filósofo e professor titular da FAAP (São Paulo) 

Renascentista francês ganha tradução, apresentação e notas de Guilherme Gontijo Flores em obra recém publicada

FRANÇOIS RABELAIS

François Rabelais (1483?-1553) é um monumento da literatura mundial, comparado a Dante, Shakespeare e Cervantes. Entretanto, é chocante a defasagem de traduções de sua obra em comparação a estes outros autores canônicos. Isso começa a ser corrigido no Brasil com o trabalho meticuloso do tradutor, poeta e pesquisador Guilherme Gontijo Flores, que traz a público a primeira versão integral das Obras Completas de François Rabelais. A Editora 34 a dividiu em três volumes. E todo trabalho ocorreu no âmbito do Programa de Apoio à Publicação Carlos Drummond de Andrade (PAP-CDA) da Embaixada da França no Brasil e com o apoio do Ministério da Europa e das Relações Exteriores. Além da organização, tradução, apresentação e notas de Flores, a edição conta com mais de 120 ilustrações de Gustave Doré (1832-1883). 

Professor de língua e literatura latinas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flores é conhecido do leitor brasileiro pela tradução dos quatro volumes do seminal A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (UFPR, 2011-2013), com os quais ganhou os prêmios APCA e Jabuti. Confirmando o que se esperava, a tradução de Rabelais é um trabalho simplesmente excepcional. 

A edição começa com os clássicos Gargântua (1534) e Pantagruel (1532). Consistem em dois livros dedicados aos personagens homônimos, mais três livros de aventuras apenas de Pantagruel. As edições anteriores dispõem primeiro Gargântua e depois Pantagruel. Flores inverteu a sequência. Optou por seguir a ordem das publicações e não a gênese das personagens. 

Projeto – edição completa em três volumes 

O projeto se dispõe assim:

Volume 1: Pantagruel (Livro 1) e Gargântua (Livro 2).

Volume 2: Pantagruel (Livros 3, 4 e 5), além de capítulos manuscritos que não aparecem nas edições do quinto livro (cuja autoria ainda hoje é duvidosa).

Volume 3: obra sortida e diversa, a maioria nunca traduzida em língua portuguesa.

Flores seguiu o exemplo de M. A. Screech e Gabriel Hormaechea em suas respectivas traduções para o inglês e o espanhol. Em vez de notas de rodapé extensas, criou introduções explicativas pequenas e eruditas para cada capítulo. 

A vida de François Rabelais 

Nascido em Chinon, vila medieval francesa, Rabelais foi (quase) tudo:

* monge franciscano,

* depois beneditino;

* quase expulso da Igreja por ter tido três filhos;

* secretário na corte de Francisco I;

* tradutor de gregos e latinos;

* médico pela Universidade de Montpellier e

* professor de medicina no Hospital de Lyon.

Como era comum no Renascimento, sua curiosidade era infinita. Versado em línguas antigas e modernas, foi um legítimo polímata, alguém que transita em diversos saberes e ciências, da filosofia, magia, geomancia e astrologia à anatomia, filologia, numismática, cabala e hermetismo. 

Pantagruel é um gigante, filho de Gargântua. A mãe morrera sufocada no parto pelo peso do bebê. Ambos descendem de uma longa dinastia de gigantes que remonta a mitos medievais e cuja principal fonte são As Grandes e Inestimáveis Crônicas do Grande e Enorme Gigante Gargântua. Como Shakespeare, Rabelais imprime uma fisionomia singular a narrativas anônimas. A primeira edição de Pantagruel teria surgido entre 1531 e 1532, resta apenas um exemplar sem data. É assinada pelo mestre Alcofribas Nasier (anagrama de François Rabelais), destilador de quinta-essência (referência à alquimia). 

Os cinco livros narram as bufonarias dos protagonistas nos limites da gargalhada. Some-se a isso a criação de neologismos e jogos semânticos, mesclas de latim, grego, árabe, hebraico e linguagem de feira, gírias, jargões e baixo calão. Um de seus equivalentes seria o poeta italiano Teofilo Folengo (1491-1544) e seu plurilíngue, macarrônico e divertido poema narrativo Baldus (1517). Não por acaso, ambos foram fontes de James Joyce para a escrita de Ulysses (1922). 

PANTAGRUEL - ilustração de Gustave Doré

O gênero da obra de Rabelais 

A obra de Rabelais é de dificílimo enquadramento. Uma primeira abordagem se refere ao chamado “gênero misto”. Este se consolida com a tragicomédia La Celestina de Fernando de Rojas (c. 1470-1541) e é bastante teorizado nos séculos 16 e 17. Rabelais se encaixa tanto na comédia quanto na sátira, respectivamente definidas pelos risos “sem dor” e “com dor”, segundo Aristóteles. A primeira implica festividade coletiva. A segunda pressupõe admoestação e vitupério. Ou seja: corrosão do caráter alheio.

Pode-se entender Pantagruel como mais cômico e Gargântua como mais satírico.

Outros aspectos recorrentes na fortuna crítica rabelaisiana é a utilização de recursos antigos e medievais. Estes podem ser divididos em cinco grupos:

* a carnavalização,

* a paródia,

* o fantástico,

* o grotesco e

* o cinismo. 

1) Carnavalização

Dentre as fontes populares medievais, o célebre estudo do teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) destaca a carnavalização: inversão de papéis sociais e subversão das hierarquias alto/baixo. Para Bakhtin, o “baixo materialismo” é uma das definições essenciais desse tipo de moral invertida.

2) Paródia

Já a paródia é um “canto paralelo” (para odès). Trata-se de um modo pelo quais um autor imita e emula uma obra alheia, deslocando-a para um registro ou um gênero “inferiores”.

3) Fantástico

Quanto ao fantástico (representação de seres gerados pela fantasia), foi identificado pelo historiador de arte lituano Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) como uma das bases de toda Idade Média, em contraposição ao icástico (representação de seres empíricos). Ou seja: fantásticas são todas as imagens que imitam modelos mentais mais do que objetos extensos.

4) Grotesco

Um longo debate entre proporção e desproporção vem desde os tratados gregos e latinos. Qual seria a melhor régua para medir a arte? Os limites variariam conforme as prescrições de cada gênero. Os adeptos do grotesco apostam em uma aplicação deliberada de desproporcionalidades. O intuito seria ampliar os limites de um determinado gênero. Corroer a beleza. Deformar a forma.

5) Cinismo

Por fim, o cinismo (kyen, cão) é um movimento da filosofia grega. Tornou-se icônico na figura do filósofo Diógenes de Sínope (404/412? a.C.-c. 323 a.C.). Adeptos fervorosos da natureza, os cínicos defendiam os instintos contra a hipocrisia da civilização. Como protoanarquistas e performers, a ação cínica vai da masturbação em praça pública ao nudismo, do culto à pobreza à crítica a todos os deuses, costumes, valores e virtudes de Atenas, incluindo a filosofia. Seguindo estudos de Marie-Odile Goulet-Cazé, Bracht Branham, Peter Sloterdijk e Niehus-Pröbsting, o cinismo migrou da filosofia para a literatura e as artes. E teve uma explosão no Renascimento. Um de seus expoentes é Hieronymus Bosch (1450-1516), o Rabelais da pintura. O cinismo também fora assimilado por Lutero e por movimentos cristãos de combate ao catolicismo. Além disso, do boca do inferno Gregorio de Matos à obscena e genial senhora Hilda Hilst, o cinismo é uma das matrizes de toda literatura moderna. 

Primeiro volume da obra completa de François Rabelais, publicada pela Editora 34, em maio de 2021. Outros dois volumes, ainda, serão publicados, em breve

Características da obra rabelaisiana 

Uma inspiração de Rabelais é o poeta François Villon (1431-1463), um dos primeiros a incorporar a fala das ruas e o argot, linguagem popular e cifrada de artesãos medievais. Outras duas são obras que relativizam a loucura: a Nau dos Loucos de Sebastian Brant (1457-1521) e o Elogio da Loucura (1509) de Erasmo de Rotterdã, referência da erudição e do humanismo que, não por acaso, foi seu amigo. 

A obra rabelaisiana une excesso, glutonice e nonsense em doses excepcionais contra inimigos. Um dos seus alvos favoritos é a pedanteria e o pernosticismo dos acadêmicos (nos dias de hoje não faltaria material para sua diversão). São os “escumadores de latim”, intelectuais pseudoprofundos que latinizam tudo. São chamados de sorbonistas: sofistas da Sorbonne. 

Um traço formal importante diz respeito ao narrador. Este se diz “discípulo do mestre Pantagruel”. E o picareta Panurgo, parceiro constante de Pantagruel, refere-se a este como seu “mestre e senhor”. Isso gera uma interessante equivalência entre narrador e Panurgo, entre escritor e trapaceiro. Há também reiterados diálogos com o leitor. E, ao apontar fontes externas à obra, o narrador sugere narradores implícitos, como mais tarde Cervantes fará no Quixote. 

Panurgo é uma personagem-tipo impressionante. Vindo da Turquia, interpela Pantagruel e seus amigos e lhes fala em alemão, italiano, escocês, basco, holandês, espanhol, dinamarquês, hebraico, grego, latim e outras línguas fictícias. Segundo o narrador, “conhecia sessenta e três jeitos de encontrar”... dinheiro. Malfeitor, trapaceiro, beberrão, treteiro, patife e com vários processos em Paris. Por fim, compara-se a Odisseu. 

Os juristas não escapam à pena ferina de Rabelais. As contendas judiciais são ridicularizadas nas figuras de Beijacu e Chuparrabo. As narrativas de conquista do Novo Mundo são parodiadas no saboroso capítulo em que Pantagruel engole um exército, incluindo o narrador. Este descreve um país inteiro dentro de suas tripas. 

Diante disso tudo, qual seria a religião de Rabelais? O historiador Lucien Febvre dedicou um livro a este problema. Entre o ateísmo desbragado e uma divinização do corpo, entre o combate anticlerical interno à Igreja e o panteísmo renascentista, entre a secularização e a revolução protestante em relação à fé, o enigma continua em aberto. 

A plasticidade e a riqueza lexicais de Flores são espetaculares:

a) Xingamentos: xepas, banguelas, sararás, nós cegos, bundas moles, pançudos, matracas, chumbregas, xibungos, lerdezas, jacus, metidinhos.

b) Brincadeiras: pinocle, bisca, passa-dez, mexe-mexe, tapão, zanga, fedor, resta-um, uíste, mancala, ganizes, civete, pique-pega, pitorra, muçunga. E um dos pontos altos são os

c) brasileirismos: mortinho da silva, bicuda, mirréis, jecadas, cacarecos, monta-garupa, babaca, zé-ruela. 

Falando em Brasil, o leitor deve imaginar o quanto a podridão atual do país seria produtiva. Se Rabelais estivesse vivo, não lhe faltariam parasitas, rachadeiros, negacionistas, juizecos, fascistas, genocidas, ladrões, picaretas, fisiologistas, quadrilheiros, terraplanistas, milicianos e toda uma escumalha para banquetear Pantagruel, em um vilipêndio sem fim.

Por outro lado, enquanto o puritanismo emporcalha tudo, à direita e à esquerda, o CINISMO SUJO e a LINGUAGEM EXUBERANTE de Rabelais talvez sejam um dos poucos recantos de resistência para a VIDA.

Uma esfera onde a dor se converte em alegria e a fraqueza vira força – pelo riso. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Aliás / Literatura – Domingo, 1 de agosto de 2021 – Pág. H6 – Internet: clique aqui (acesso em: 02/08/2021).

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