Leitura obrigatória
Reedição mostra que François Rabelais é comparável a Dante, Shakespeare e Cervantes
Rodrigo Petronio
Escritor, Filósofo e professor titular da FAAP (São Paulo)
Renascentista francês ganha tradução,
apresentação e notas de Guilherme Gontijo Flores em obra recém publicada
FRANÇOIS RABELAIS |
Professor de língua e literatura latinas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flores é conhecido do leitor brasileiro pela tradução dos quatro volumes do seminal A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (UFPR, 2011-2013), com os quais ganhou os prêmios APCA e Jabuti. Confirmando o que se esperava, a tradução de Rabelais é um trabalho simplesmente excepcional.
A edição começa com os clássicos Gargântua (1534) e Pantagruel (1532). Consistem em dois livros dedicados aos personagens homônimos, mais três livros de aventuras apenas de Pantagruel. As edições anteriores dispõem primeiro Gargântua e depois Pantagruel. Flores inverteu a sequência. Optou por seguir a ordem das publicações e não a gênese das personagens.
Projeto – edição completa em três volumes
O projeto se dispõe assim:
Volume 1: Pantagruel (Livro 1)
e Gargântua (Livro 2).
Volume 2: Pantagruel (Livros 3,
4 e 5), além de capítulos manuscritos que não aparecem nas edições do quinto
livro (cuja autoria ainda hoje é duvidosa).
Volume 3: obra
sortida e diversa, a maioria nunca traduzida em língua portuguesa.
Flores seguiu o exemplo de M. A. Screech e Gabriel Hormaechea em suas respectivas traduções para o inglês e o espanhol. Em vez de notas de rodapé extensas, criou introduções explicativas pequenas e eruditas para cada capítulo.
A vida de François Rabelais
Nascido em Chinon, vila
medieval francesa, Rabelais foi (quase) tudo:
* monge
franciscano,
* depois
beneditino;
* quase
expulso da Igreja por ter tido três filhos;
* secretário
na corte de Francisco I;
* tradutor
de gregos e latinos;
* médico
pela Universidade de Montpellier e
* professor
de medicina no Hospital de Lyon.
Como era comum no Renascimento, sua curiosidade era infinita. Versado em línguas antigas e modernas, foi um legítimo polímata, alguém que transita em diversos saberes e ciências, da filosofia, magia, geomancia e astrologia à anatomia, filologia, numismática, cabala e hermetismo.
Pantagruel é um gigante, filho de Gargântua. A mãe morrera sufocada no parto pelo peso do bebê. Ambos descendem de uma longa dinastia de gigantes que remonta a mitos medievais e cuja principal fonte são As Grandes e Inestimáveis Crônicas do Grande e Enorme Gigante Gargântua. Como Shakespeare, Rabelais imprime uma fisionomia singular a narrativas anônimas. A primeira edição de Pantagruel teria surgido entre 1531 e 1532, resta apenas um exemplar sem data. É assinada pelo mestre Alcofribas Nasier (anagrama de François Rabelais), destilador de quinta-essência (referência à alquimia).
Os cinco livros narram as bufonarias dos protagonistas nos limites da gargalhada. Some-se a isso a criação de neologismos e jogos semânticos, mesclas de latim, grego, árabe, hebraico e linguagem de feira, gírias, jargões e baixo calão. Um de seus equivalentes seria o poeta italiano Teofilo Folengo (1491-1544) e seu plurilíngue, macarrônico e divertido poema narrativo Baldus (1517). Não por acaso, ambos foram fontes de James Joyce para a escrita de Ulysses (1922).
PANTAGRUEL - ilustração de Gustave Doré |
O gênero da obra de Rabelais
A obra de Rabelais é de dificílimo
enquadramento. Uma primeira abordagem se refere ao chamado “gênero misto”.
Este se consolida com a tragicomédia La Celestina de Fernando de Rojas (c. 1470-1541) e é bastante
teorizado nos séculos 16 e 17. Rabelais se
encaixa tanto na comédia quanto na sátira, respectivamente
definidas pelos risos “sem dor” e “com dor”, segundo Aristóteles. A primeira
implica festividade coletiva. A segunda pressupõe admoestação e vitupério. Ou
seja: corrosão do caráter alheio.
Pode-se entender Pantagruel
como mais cômico e Gargântua como mais satírico.
Outros aspectos recorrentes na
fortuna crítica rabelaisiana é a utilização de recursos antigos e medievais.
Estes podem ser divididos em cinco grupos:
* a
carnavalização,
* a paródia,
* o
fantástico,
* o grotesco
e
* o cinismo.
1) Carnavalização
Dentre as fontes populares
medievais, o célebre estudo do teórico russo Mikhail
Bakhtin (1895-1975) destaca a carnavalização: inversão de papéis
sociais e subversão das hierarquias alto/baixo. Para Bakhtin, o “baixo
materialismo” é uma das definições essenciais desse tipo de moral
invertida.
2) Paródia
Já a paródia é um “canto
paralelo” (para odès). Trata-se de um modo pelo quais um autor imita e
emula uma obra alheia, deslocando-a para um registro ou um gênero
“inferiores”.
3) Fantástico
Quanto ao fantástico (representação
de seres gerados pela fantasia), foi identificado pelo historiador de arte
lituano Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) como
uma das bases de toda Idade Média, em contraposição ao icástico (representação
de seres empíricos). Ou seja: fantásticas são todas as imagens que imitam
modelos mentais mais do que objetos extensos.
4) Grotesco
Um longo debate entre proporção e
desproporção vem desde os tratados gregos e latinos. Qual seria a melhor régua
para medir a arte? Os limites variariam conforme as prescrições de cada gênero.
Os adeptos do grotesco apostam em uma aplicação deliberada de
desproporcionalidades. O intuito seria ampliar os limites de um
determinado gênero. Corroer a beleza. Deformar a forma.
5) Cinismo
Por fim, o cinismo (kyen,
cão) é um movimento da filosofia grega. Tornou-se icônico na figura do
filósofo Diógenes de Sínope (404/412? a.C.-c.
323 a.C.). Adeptos fervorosos da natureza, os cínicos defendiam os instintos
contra a hipocrisia da civilização. Como protoanarquistas e performers, a
ação cínica vai da masturbação em praça pública ao nudismo, do culto à pobreza
à crítica a todos os deuses, costumes, valores e virtudes de Atenas, incluindo
a filosofia. Seguindo estudos de Marie-Odile
Goulet-Cazé, Bracht Branham, Peter Sloterdijk e Niehus-Pröbsting,
o cinismo migrou da filosofia para a literatura e as artes. E teve uma
explosão no Renascimento. Um de seus expoentes é Hieronymus
Bosch (1450-1516), o Rabelais da pintura. O cinismo também fora
assimilado por Lutero e por movimentos cristãos
de combate ao catolicismo. Além disso, do boca do inferno Gregorio de Matos à obscena e genial senhora Hilda Hilst, o cinismo é uma das matrizes de toda
literatura moderna. Primeiro volume da obra completa de François Rabelais, publicada pela Editora 34, em maio de 2021. Outros dois volumes, ainda, serão publicados, em breve
Características da obra rabelaisiana
Uma inspiração de Rabelais é o poeta François Villon (1431-1463), um dos primeiros a incorporar a fala das ruas e o argot, linguagem popular e cifrada de artesãos medievais. Outras duas são obras que relativizam a loucura: a Nau dos Loucos de Sebastian Brant (1457-1521) e o Elogio da Loucura (1509) de Erasmo de Rotterdã, referência da erudição e do humanismo que, não por acaso, foi seu amigo.
A obra rabelaisiana une excesso, glutonice e nonsense em doses excepcionais contra inimigos. Um dos seus alvos favoritos é a pedanteria e o pernosticismo dos acadêmicos (nos dias de hoje não faltaria material para sua diversão). São os “escumadores de latim”, intelectuais pseudoprofundos que latinizam tudo. São chamados de sorbonistas: sofistas da Sorbonne.
Um traço formal importante diz respeito ao narrador. Este se diz “discípulo do mestre Pantagruel”. E o picareta Panurgo, parceiro constante de Pantagruel, refere-se a este como seu “mestre e senhor”. Isso gera uma interessante equivalência entre narrador e Panurgo, entre escritor e trapaceiro. Há também reiterados diálogos com o leitor. E, ao apontar fontes externas à obra, o narrador sugere narradores implícitos, como mais tarde Cervantes fará no Quixote.
Panurgo é uma personagem-tipo impressionante. Vindo da Turquia, interpela Pantagruel e seus amigos e lhes fala em alemão, italiano, escocês, basco, holandês, espanhol, dinamarquês, hebraico, grego, latim e outras línguas fictícias. Segundo o narrador, “conhecia sessenta e três jeitos de encontrar”... dinheiro. Malfeitor, trapaceiro, beberrão, treteiro, patife e com vários processos em Paris. Por fim, compara-se a Odisseu.
Os juristas não escapam à pena ferina de Rabelais. As contendas judiciais são ridicularizadas nas figuras de Beijacu e Chuparrabo. As narrativas de conquista do Novo Mundo são parodiadas no saboroso capítulo em que Pantagruel engole um exército, incluindo o narrador. Este descreve um país inteiro dentro de suas tripas.
Diante disso tudo, qual seria a religião de Rabelais? O historiador Lucien Febvre dedicou um livro a este problema. Entre o ateísmo desbragado e uma divinização do corpo, entre o combate anticlerical interno à Igreja e o panteísmo renascentista, entre a secularização e a revolução protestante em relação à fé, o enigma continua em aberto.
A plasticidade e a riqueza lexicais
de Flores são espetaculares:
a) Xingamentos:
xepas, banguelas, sararás, nós cegos, bundas moles, pançudos, matracas,
chumbregas, xibungos, lerdezas, jacus, metidinhos.
b) Brincadeiras:
pinocle, bisca, passa-dez, mexe-mexe, tapão, zanga, fedor, resta-um, uíste,
mancala, ganizes, civete, pique-pega, pitorra, muçunga. E um dos pontos altos
são os
c) brasileirismos: mortinho da silva, bicuda, mirréis, jecadas, cacarecos, monta-garupa, babaca, zé-ruela.
Falando em Brasil, o leitor deve
imaginar o quanto a podridão atual do país seria produtiva. Se
Rabelais estivesse vivo, não lhe faltariam parasitas, rachadeiros,
negacionistas, juizecos, fascistas, genocidas, ladrões, picaretas,
fisiologistas, quadrilheiros, terraplanistas, milicianos e toda uma escumalha
para banquetear Pantagruel, em um vilipêndio sem fim.
Por outro lado, enquanto o puritanismo
emporcalha tudo, à direita e à esquerda, o CINISMO SUJO e a LINGUAGEM
EXUBERANTE de Rabelais talvez sejam um dos poucos recantos de resistência
para a VIDA.
Uma esfera onde a dor se converte em alegria e a fraqueza vira força – pelo riso.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Aliás / Literatura – Domingo, 1 de agosto de 2021 – Pág. H6 – Internet: clique aqui (acesso em: 02/08/2021).
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