É tempo de mediocridade!
Quando os medíocres tomam o poder
Alain Deneault
Filósofo
e escritor canadense
Jornal
«El País»
11-09-2019
A divisão e a
industrialização do trabalho manual e intelectual contribuíram para o advento
de uma “mediocracia”
ALAIN DENEAULT Filósofo e escritor canadense de Quebec |
Deixe de lado aqueles volumes
complicados: os manuais de contabilidade serão mais úteis. Não se mostre
orgulhoso, não seja inventivo nem dê sinais de desenvoltura: pode
parecer arrogante. Não seja tão apaixonado: as pessoas ficam assustadas.
E, o mais importante, evite as "boas ideias": muitas delas
acabam no triturador. Esse seu olhar penetrante dá medo: abra mais os olhos e
relaxe os lábios. Não basta que as suas reflexões sejam pouco consistentes,
têm de parecer pouco consistentes. Quando você falar sobre si mesmo,
certifique-se de que entendamos que você não é grande coisa. Isso facilitará
enquadrá-lo numa gaveta apropriada. Os tempos mudaram. Ninguém tomou a
Bastilha, nem pôs fogo no Reichstag [Parlamento alemão], o Aurora não fez um único
disparo. E, no entanto, o ataque foi lançado e teve êxito: os medíocres
tomaram o poder.
O que faz de melhor uma pessoa
medíocre? Reconhecer outra pessoa medíocre. Juntas se organizarão para
puxarem o saco uma da outra, vão se assegurar de devolverem favores uma à
outra e irão cimentar o poder de um clã que continuará a crescer, já
que em seguida encontrarão uma maneira de atrair seus semelhantes. O que
realmente importa não é evitar a estupidez, mas adorná-la com a aparência de
poder.
«Se a estupidez [...] não se
assemelhasse perfeitamente ao progresso, à habilidade, à esperança e à
melhoria, ninguém iria querer ser estúpido», disse Robert Musil.
Sinta-se à vontade para ocultar
seus defeitos atrás de uma atitude de normalidade. Sempre afirme ser pragmático
e esteja sempre disposto a melhorar, pois a mediocridade não admite a
incapacidade nem a incompetência. Você deve saber como usar os programas,
como preencher o formulário sem protestar, como se expressar espontaneamente e
repetir como um papagaio expressões como "altos padrões de governança
corporativa e valores de excelência", e como cumprimentar quem for
necessário no momento oportuno. No entanto, e isso é fundamental, não deve ir
além disso.
O termo mediocridade designa
o que está na média, assim como superioridade e inferioridade designam o que
está acima e por baixo. Não existe a medidade. A mediocridade não faz
referência à média como abstração, mas é o estado médio real, e a mediocracia, portanto, é o estado médio quando
a autoridade está garantida. A mediocracia estabelece uma ordem na qual a
média deixa de ser uma síntese abstrata que nos permite entender o estado das
coisas e se torna o padrão imposto que somos obrigados a acatar. E se
reivindicarmos nossa liberdade, isso servirá apenas para demonstrar quão
eficiente é o sistema.
A divisão e a industrialização do
trabalho — tanto manual como intelectual — contribuíram em grande medida para o
advento do poder medíocre. O perfeccionismo de cada tarefa, para que seja útil
a um conjunto inatingível, converteu charlatães em
"especialistas" que enunciam frases oportunas com porções mínimas
de verdade, enquanto os trabalhadores são rebaixados ao nível de
ferramentas para quem a “atividade vital […] não passa de um meio de garantir a
própria existência”.
[…] Laurence J. Peter e Raymond
Hull foram os primeiros a testemunhar a proliferação da mediocridade por
toda a parte de todo um sistema. Sua tese, O Princípio de Peter, que eles
desenvolveram nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, é implacável em
sua clareza: os processos sistêmicos propiciam àqueles com níveis médios de
competência subirem para posições de poder, afastando em seu caminho tanto os
supercompetentes como os totalmente incompetentes. Exemplos impressionantes
desse fenômeno são vistos nas escolas, onde será demitido um professor que não
for capaz de seguir um cronograma nem saiba nada sobre sua matéria, mas também
será dispensado um rebelde que adote mudanças importantes nos protocolos de
ensino para conseguir que uma sala de alunos com dificuldades obtenha melhores
qualificações — tanto em compreensão de leitura, como em aritmética — do que os
alunos de salas normais.
E também vão se livrar de um
professor não convencional cujos alunos completam o trabalho de dois ou três
anos em apenas um. Segundo os autores de O Princípio de Peter, neste
último caso, o professor é punido por ter alterado o sistema oficial de
qualificação e, sobretudo, por ter causado “um estado de extrema ansiedade ao
professor que deveria ser o responsável no ano seguinte pelo grupo que já
realizou todo o trabalho”. Este é o processo que vai dando origem aos "analfabetos secundários", para usar a
expressão cunhada por Hans Magnus Enzensberger. Este novo sujeito, produzido
em massa por instituições de ensino e centros de pesquisa, se vangloria de
possuir uma riqueza de conhecimentos úteis que, no entanto, não o leva a
questionar seus fundamentos intelectuais […]
A norma da mediocridade leva ao
desenvolvimento de uma imitação do trabalho que estimula a simulação de um
resultado. Fingir se torna um valor em si mesmo.
A mediocracia leva todos a subordinarem qualquer tipo de deliberação a modelos
arbitrários promovidos por instâncias de autoridade. Hoje figuram entre seus
exemplos o político que explica aos eleitores que eles têm que se submeter aos
desígnios dos acionistas de Wall Street; ou o professor universitário que
considera que o trabalho de um aluno é "teórico demais e científico
demais" quando excede as premissas que haviam sido expostas anteriormente
em um PowerPoint; ou o produtor cinematográfico que insiste em dar a uma
pessoa famosa um papel de liderança em um documentário sobre um assunto com o
qual ela não tem nenhuma ligação; ou o especialista que demonstra sua
"racionalidade" argumentando amplamente em favor do crescimento
econômico (irracional). Zinoviev já estava ciente das possibilidades do
trabalho simulado como uma força psicológica para alterar as mentes:
"A imitação do trabalho parece
exigir apenas um resultado, ou melhor, a mera possibilidade de justificar o
tempo investido: a comprovação e a avaliação dos resultados são realizadas
por pessoas que participaram da simulação, que guardam relação com ela e têm
interesse em perpetuá-la.”
Caberia pensar que uma
característica comum entre aqueles que compartilham esse poder seria a de um
sorriso cúmplice. Acreditando serem mais espertos do que todos os outros, ficam
satisfeitos com frases carregadas de sabedoria, como:
"É preciso entrar no
jogo". O jogo — uma expressão cuja absoluta imprecisão se
encaixa perfeitamente no pensamento medíocre — exige que, de acordo com o
momento, a pessoa acate servilmente as regras estabelecidas com o único
propósito de ocupar uma posição relevante no quadro social, ou que contorne
com ufanismo tais regras — sem nunca deixar de manter as aparências —, graças a
vários atos de conluio que pervertem a integridade do processo.
Fonte:
El País / Brasil – Opinião – Quarta-feira, 11 de setembro de 2019 – 12h10
(Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.
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