A desigualdade é ideológica e política
É o que afirma um dos mais renomados
e competentes economistas do mundo:
Thomas Piketty
Eduardo Febbro
Jornal «Página/12» - Buenos Aires (Argentina)
06-09-2019
Em “Capital e ideologia”, o economista francês derruba
as narrativas do liberalismo
THOMAS PIKETTY Economista francês |
O liberalismo voltará sobre suas raízes teológicas e um
exército de evangelizadores liberal-populistas sairá outra vez com capa e
espada para demolir a impecável demonstração sobre a semente das
desigualdades que o economista francês Thomas Piketty publica nesses
dias na França. Trata-se de Capital e Ideologia,
o segundo livro que Piketty publica depois do monumental êxito que teve seu
primeiro trabalho, O Capital no Século XXI,
o qual circulou no mundo com mais de dois milhões e meio de exemplares. Como o
anterior, o novo livro do economista francês não preserva espaço, pelo
contrário, os estende. São mil e duzentas páginas em que o postulado central
consiste em demonstrar que “a desigualdade é ideológica e política” e não
“econômica ou tecnológica”, que as desigualdades jamais são “naturais”,
mas sim edificadas por uma ideologia que cria as categorias divisórias:
* mercado,
* salários,
* capital,
* dívida,
* trabalhadores mais ou menos
capacitados,
* cotizações da bolsa de valores,
* paraísos fiscais,
* ricos,
* pobres,
* clérigos,
* nobreza,
* competitividade nacional ou
internacional.
“Se trata de construções sociais e históricas que
dependem integralmente do sistema legal, fiscal, educativo e político que se
escolhe implementar e das categorias que se criam”. Piketty derruba dois dos
mitos mais espalhados pela direita:
1º) postula que as desigualdades se
explicam em muitos casos por causas “naturais”;
2º) recorre à existência histórica de
supostas “leis fundamentais”.
Thomas Piketty oferece nessa mastodôntica pesquisa um olhar
novo sobre o processo da desigualdade, assim como uma história com
perfil mundial das desigualdades e as ideologias que as promovem.
A tão famosa crença, como publicitado na Argentina, sobre
o caráter incontestável do sistema econômico liberal (“o mundo nos apoia”) se
esfumaça nas páginas de Capital e Ideologia como areia entre os dedos.
Não é certo. Não existe, alega o economista, nenhum determinismo, menos ainda
uma organização social com o mandato “eterno”. A permanência ou não da cultura do capital depende da mobilização política e
ideológica, de que se imaginem outras formas de gestão em que as
desigualdades deixariam de existir e o capital, assim, já estaria mais
concentrado em um punhado de poderosos.
O livro de Thomas Piketty é um elixir em tempos de horizontes
tapados e retóricas repetitivas. O economista sustenta inclusive
propor a ideia de um “novo socialismo participativo”,
de uma propriedade “social” pactuada mediante a cogestão ou também uma
“propriedade temporal”. Não há tampouco, para Piketty, nenhum fatalismo
histórico, mas sim uma assombrosa série de ações e coincidências que
autorizam as mudanças.
Nada está decidido de antemão, recorda o autor, tanto mais
que as relações de força que se estabelecem preocupam a ordem material: “são
sobretudo intelectuais e ideológicas. Dito de outra forma, as ideias e as
ideologias contam na história porque permitem imaginar permanentemente e
estruturar novos mundos e sociedades diferentes”. Piketty fustiga esse pensamento conservador marcadamente tendencioso e
sempre disposto a “neutralizar as desigualdades”, dotando-as de “fundamentos
naturais e objetivos”. Ou seja, como a desigualdade é um processo natural,
não há maneira de erradicá-la. E se tentar, é, finalmente, todo o sistema que
corre perigo. Essa falácia é a que preside todas as narrativas do
liberalismo contemporâneo: não há vida fora do sistema. Se sair, haverá
somente fome. Falso. Ainda, em sua análise histórica da desigualdade, o
economista francês destaca que “em seu conjunto, as diversas rupturas e
processos revolucionários e políticos que permitiram reduzir e transformar as
desigualdades do passado foram um imenso êxito, ao tempo que desembocaram
na criação de nossas instituições mais valiosas, aquelas que, precisamente,
permitiram que a ideia de progresso humano se tornasse uma realidade”.
Livro de Thomas Piketty: "Capital e Ideologia" - em francês Ainda sem previsão de data de publicação no Brasil |
Com essa prova histórica, Piketty abre uma janela para
mostrar outra paisagem e, de quebra, romper uma das narrativas mais extenuantes
dos conservadores: aquela que tapa todos os futuros repetindo que nenhum outro
modelo é possível.
A esse
propósito, o autor escreve:
“as
desigualdades atuais e as instituições presentes
não são as
únicas possíveis, apesar do que
possam
pensar os conservadores:
ambas estão
também chamadas a se transformar
e a se
reinventar permanentemente”.
Uma vez mais, nada está jogado de antemão, nada é “um
fundamento” imóvel. Essa rocha indeslocável é a base sobre a qual se apoia
o rico para seguir sendo mais rico, e o pobre sempre pobre. É a nudez de
todo o repertório capitalista: se o rico é menos rico, o pobre será mais pobre.
Piketty apresenta a desigualdade como um objeto de grande plasticidade que é
perfeitamente possível modelar, e, justamente, assim fizeram as ideologias:
“seguindo os fios dessa história – escreve – se constata que sempre
existiram e existirão alternativas. Em todos os níveis de desenvolvimento, existem
múltiplas maneiras de estruturar um sistema econômico, social e político:
* de definir as relações de
propriedade,
* organizar um regime fiscal ou
educativo,
* tratar um problema de dívida
pública ou privada,
* de regular as relações entre as
distintas comunidades humanas...
Existem vários caminhos possíveis capazes de organizar uma
sociedade e as relações de poder e de propriedade dentro dela”.
Piketty proclama que “o progresso humano existe, porém é
frágil porque, a todo momento, pode se chocar contra os desvios da desigualdade
e da identidade do mundo (...) O progresso humano existe, porém é um combate”.
Original, fundamentado e rigoroso, com um enfoque radicalmente histórico que toma inclusive em conta a literatura, Capital e Ideologia chega
em melhor momento, justo nesse ponto em que somente pareceria haver
diagnósticos e poucas conjecturas para desenhar outro mundo. Nunca o
liberalismo havia inundado tanto o espírito humano com sua mensagem
unidirecional. Como o macrismo na Argentina, seu recado em todos os
lados é o mesmo: ou se suicidam conosco, ou morrerão de fome. Piketty
desarma com uma precisão de relojoeiro essa ideia destilada em 99% dos meios de
comunicação do mundo. O autor chama essa tendência de “a ideologia proprietarista”.
A crença globalizada consiste em repetir que qualquer
iniciativa de justiça social equivale a ir “direto para a instabilidade
política e o caos permanente, o que terminará por se voltar contra os mais
modestos. A resposta proprietarista intransigente consiste em que não há
que correr esse risco, e que essa Caixa de Pandora da redistribuição da
propriedade nunca se deve abrir”. Ao contrário, argumenta Piketty, não somente
há que abri-la, mas sim que a história nos prova que foi aberta em muitos
momentos e que, graças a esses momentos, se construiu o progresso humano.
O ensaio se propõe precisamente a essa meta: “convencer o
leitor de que podemos nos apoiar nas lições da história para definir uma
norma de justiça e de igualdade exigentes em matéria de regulação e partilha da
propriedade mais além da simples sacralização do passado”. Como em O
Capital no Século XXI, Piketty não formula rupturas revolucionárias, mas
sim propõe uma forma radical de reorganização.
Não é um livro para reforçar convicções, nem um enésimo e indigesto
paralelepípedo pseudoprogressista cheio de diagnósticos acertados e vazio de
alentos futuros. Capital e Ideologia é um livro para respirar,
como uma janela aberta para um mundo onde, de repente, não há só um modelo
possível, mas sim infinitas possibilidades.
Traduzido do espanhol por Wagner
Fernandes de Azevedo. Para acessar a versão original deste artigo, clique aqui.
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