Antes que seja tarde demais!
“Estamos vendo o início da era da
barbárie climática.”
Entrevista com Naomi Klein
Escritora, ambientalista e
ativista social canadense
Natalie Hanman
The Guardian – Londres (Inglaterra)
14-09-2019
«Existem limites,
temos algumas decisões difíceis a tomar,
precisamos descobrir
como gerenciar o que resta,
temos que
compartilhar de modo equitativo»
NAOMI KLEIN |
Nesta entrevista, a autora de “Sem
logo” [Rio de Janeiro: Record, 2002] fala sobre possíveis soluções, de
Greta Thunberg, das greves de nascimento e sobre onde ela encontra esperança.
Eis a entrevista.
Por
que você está publicando o livro “On Fire: The (Burning) Case for a Green
New Deal here” [Pegando fogo: a (ardente) defesa de um New Deal Verde, em
tradução livre] agora?
Naomi Klein: Eu ainda
sinto que o modo como falamos sobre as mudanças climáticas é muito
compartimentado, muito isolado das outras crises que enfrentamos. Um tema
realmente forte que atravessa o livro são os vínculos entre isso e a crise da
supremacia branca crescente, as várias formas de nacionalismo, o
fato de tantas pessoas serem expulsas das suas pátrias e a guerra que é
travada pela nossa atenção. São crises intercruzadas e interconectadas,
e, portanto, as soluções também precisam ser.
O
livro reúne ensaios da última década. Você mudou de ideia sobre alguma coisa?
Naomi Klein: Quando olho
para trás, eu acho que não dei uma ênfase suficiente para o desafio que as
mudanças climáticas levantam para a esquerda. É mais óbvio o modo como a
crise climática desafia uma visão mundial dominante de direita e o culto de um
centrismo sério que nunca quer fazer nada grande, que está sempre procurando
dividir o prejuízo. Mas esse também é um desafio para uma visão de mundo de
esquerda, que está essencialmente interessada apenas em redistribuir os
espólios do extrativismo [o processo de extrair recursos naturais da Terra] e
não em considerar os limites do consumo infinito.
O
que está impedindo a esquerda de fazer isso?
Naomi Klein: No contexto
norte-americano, o maior tabu de todos é realmente admitir que haverá
limites. Você vê isso no modo como a Fox News cobriu o New Deal
Verde – “Eles estão perseguindo os hambúrgueres de vocês!” Isso corta o coração
do sonho americano –, cada geração vai mais longe do que a última, sempre há
uma nova fronteira para expandir, toda a ideia das nações coloniais e
colonizadoras como a nossa.
Quando alguém aparece e diz que, de
fato, existem limites, que temos algumas decisões difíceis a tomar, que
precisamos descobrir como gerenciar o que resta, que temos que compartilhar de
modo equitativo, é um verdadeiro ataque psíquico. E a resposta [à esquerda] tem
sido evitar e dizer: “Não, não, não vamos tirar as suas coisas, haverá todos os
tipos de benefícios”. E realmente haverá benefícios: teremos cidades mais
habitáveis, teremos ar menos poluído, gastaremos menos tempo presos no
trânsito, podemos projetar uma vida mais feliz e mais rica em muitas maneiras.
Mas teremos que encolher do lado do consumo infinito e descartável.
Você
se sente encorajada pelas conversas sobre o Green New Deal?
Naomi Klein: Eu sinto
uma enorme empolgação e uma sensação de alívio por finalmente estarmos
falando sobre soluções na escala das crises que enfrentamos. Por não
estarmos falando de um pequeno imposto sobre o carbono ou de um esquema de “cap-and-trade”
como uma bala de prata. Estamos falando de transformar a nossa economia.
De qualquer maneira, esse sistema está falhando para com a maioria das
pessoas, e é por isso que estamos neste período de profunda
desestabilização política – que está nos dando os Trumps e os Brexits
e todos esses líderes “machões” –, então por que não descobrimos como mudar
tudo de baixo para cima e fazemos isso de um modo que resolva todas essas
outras crises ao mesmo tempo?
Há todas as chances de que
erraremos o alvo, mas cada fração de grau de aquecimento que sejamos capazes
de adiar é uma vitória, e todas as políticas que sejamos capazes de vencer
e que tornam as nossas sociedades mais humanas significam que resistiremos mais
aos inevitáveis e vindouros choques e tempestades sem escorregar para a
barbárie. Porque o que realmente me aterroriza é o que estamos vendo nas
nossas fronteiras na Europa, América do Norte e Austrália – eu não acho que
seja coincidência que os Estados coloniais e colonizadores e os países que são
os motores desse colonialismo estejam na vanguarda disso. Estamos vendo o
início da era da barbárie climática. Vimos isso em Christchurch,
vimos isso em El Paso, onde você tem esse casamento da violência
supremacista branca com o cruel racismo anti-imigrantes.
Essa
é uma das seções mais assustadoras do seu livro: eu acho que esse é um link que
muitas pessoas não fizeram.
Naomi Klein: Esse padrão
está claro há um bom tempo. A supremacia branca emergiu não apenas porque as
pessoas tinham vontade de pensar em ideias para matar muitas pessoas, mas
porque era útil proteger ações bárbaras, mas altamente lucrativas. A
era do racismo científico começa junto com o comércio transatlântico de
escravos, é uma justificativa para essa brutalidade. Se vamos responder às
mudanças climáticas fortalecendo as nossas fronteiras, então é claro que as
teorias que justificariam isso, que criam essas hierarquias da humanidade,
voltarão à tona. Há sinais disso há anos, mas está ficando cada vez mais
difícil negar, porque você tem assassinos que estão gritando dos telhados.
[Inclusive, aqui, no Brasil!]
Uma
crítica que você ouve sobre o movimento ambiental é que ele é dominado por
pessoas brancas. Como você lida com isso?
Naomi Klein: Quando você
tem um movimento que é predominantemente representativo do setor mais
privilegiado da sociedade, então a abordagem será muito mais temerosa da
mudança, porque as pessoas que têm muito a perder tendem a ter mais medo de
mudar, enquanto as pessoas que têm um muito a ganhar tenderá a lutar mais
por isso. Esse é o grande benefício de ter uma abordagem às mudanças climáticas
que as relaciona com as chamadas questões “básicas”: como conseguiremos
empregos mais bem remunerados, moradia a preços acessíveis, um modo de as
pessoas cuidarem de suas famílias?
Eu tive muitas conversas com
ambientalistas ao longo dos anos, nas quais eles parecem realmente acreditar
que vincular o combate às mudanças climáticas com o combate à pobreza ou
com a luta pela justiça racial tornará a luta mais difícil. Temos que sair
desta ideia: “A minha crise é maior do que a sua: primeiro salvamos o
planeta e depois lutamos contra a pobreza, o racismo e a violência contra as
mulheres”. Isso não funciona. Isso afasta as pessoas que lutariam
mais por mudanças.
Esse debate mudou bastante nos Estados
Unidos por causa da liderança do movimento pela justiça climática e porque são
as congressistas negras que estão defendendo o New Deal Verde. Alexandria
Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib
vêm de comunidades que receberam um tratamento injusto nos anos de
neoliberalismo e além, e estão determinadas a representar, a realmente
representar os interesses dessas comunidades. Elas não têm medo das mudanças
profundas, porque suas comunidades precisam desesperadamente disso.
Fogo nas proximidades de Porto Velho (RO), no Brasil - Setembro de 2019 Foto: Bruno Kelly / Reuters |
No
livro, você escreve: “A verdade nua e crua é que a resposta para a pergunta: ‘O
que eu, como indivíduo, posso fazer para impedir as mudanças climáticas?’ é
nada”. Você ainda acredita nisso?
Naomi Klein: Em termos
de carbono, as decisões individuais que tomamos não vão acrescentar nada
comparável ao tipo de escala de mudanças de que precisamos.
E eu acredito que o fato de que, para muitas pessoas,
é muito mais confortável falar sobre o nosso próprio consumo pessoal, do que
falar sobre mudanças sistêmicas, seja um produto do neoliberalismo, do fato de
que nós fomos treinados a nos ver como os consumidores em primeiro lugar.
Para mim, esse é o benefício de
fazer essas analogias históricas, como o New Deal ou o Plano Marshall
– isso nos lembra de uma época em que fomos capazes de pensar em mudanças nessa
escala. Porque temos sido treinados a pensar muito pequeno. É
incrivelmente significativo que Greta Thunberg tenha transformado a sua vida em uma emergência
viva.
O Malizia II, barco com Greta Thunberg a bordo, chega ao porto de Hudson, Nova York. Foto: Bebeto Matthews / AP |
Sim,
ela zarpou para a cúpula climática da ONU em Nova York em um iate com carbono
zero...
Naomi Klein: Exatamente.
Mas isso não tem a ver com aquilo que Greta está fazendo como indivíduo. Trata-se
daquilo que Greta está transmitindo nas escolhas que ela faz como ativista, e
eu absolutamente respeito isso. Eu acho isso magnífico. Ela está usando o
poder que ela tem para transmitir que esta é uma emergência e tentando
inspirar os políticos a tratá-la como uma emergência. Eu não acho que
alguém esteja isento de examinar suas próprias decisões e comportamentos, mas
eu acho que é possível enfatizar demais as escolhas individuais. Eu fiz uma
escolha – e isso tem sido verdade desde que escrevi “Sem logo” e comecei a
receber essas perguntas como: “O que eu devo comprar, onde devo comprar,
quais são as roupas éticas?”. A minha resposta continua sendo que eu não
sou uma consultora de estilo de vida, não sou um guru de compras de ninguém e
eu tomo essas decisões na minha própria vida, mas não tenho a ilusão de que
essas decisões farão a diferença.
Algumas
pessoas estão optando por fazer greves de nascimento. O que você acha disso?
Naomi Klein: Eu fico
feliz que essas discussões estejam chegando ao domínio público, em vez de serem
questões furtivas das quais temos medo de falar. Isso tem isolado muito as
pessoas. Certamente foi assim para mim. Uma das razões pelas quais eu esperei o
máximo que pude para tentar engravidar, e eu dizia isso ao meu parceiro o tempo
todo, era: “O quê? Você quer ter um guerreiro ao estilo Mad Max que brigue com
seus amigos por comida e água?”. Foi só quando eu comecei a fazer parte do
movimento pela justiça climática e pude ver um caminho a seguir que eu pude
imaginar ter um filho. Mas eu nunca diria a ninguém como responder a essas
perguntas muito íntimas.
Como uma feminista que conhece a
história brutal da esterilização forçada e os modos pelos quais os corpos das
mulheres se tornam zonas de batalha quando os formuladores de políticas decidem
que vão tentar controlar a população, eu acho que a ideia de que existem
soluções reguladoras quando se trata de ter ou não ter filhos é
catastroficamente a-histórico. Precisamos lutar juntos contra a nossa
tristeza climática e contra os nossos medos climáticos juntos, seja qual
for a decisão que decidamos tomar, mas a discussão que precisamos fazer é sobre
como construímos um mundo para que essas crianças possam levar prósperas vidas
carbono zero?
Durante
o verão [do Hemisfério Norte], você incentivou as pessoas a lerem o romance
“The Overstory”, de Richard Powers. Por quê?
Naomi Klein: Ele foi
incrivelmente importante para mim, e estou feliz que tantas pessoas tenham me
escrito desde então. Powers escreve sobre as árvores: que as árvores
vivem em comunidade e estão em comunicação, e planejam e reagem juntas, e
estamos completamente errados no modo como as conceituamos. É a mesma
conversa que estamos tendo sobre se vamos resolver isso como indivíduos ou se
vamos salvar o organismo coletivo. Também é raro, na boa ficção, valorizar
o ativismo, tratá-lo com um verdadeiro respeito, com seus fracassos e tudo mais,
reconhecer o heroísmo das pessoas que põem seus corpos em risco. Eu acho
que Powers fez isso de um modo realmente extraordinário.
Qual
é a sua opinião sobre aquilo que o Extinction Rebellion [movimento
ambientalista internacional de resistência não violenta] já alcançou?
Naomi Klein: Uma coisa
que eles fizeram muito bem é nos libertar desse modelo clássico de campanha em
que estamos há muito tempo, em que você conta a alguém algo assustador, pede
que ele clique em algo para fazer algo a respeito, pula toda a fase em que
precisamos nos lamentar juntos, e sentir juntos, e processar aquilo que
acabamos de ver. Porque o que eu ouço muito das pessoas é: “Tudo bem, talvez
aquelas pessoas dos anos 1930 ou 1940 podiam se organizar bairro a bairro, ou
de local de trabalho a local de trabalho, mas nós não podemos. Nós acreditamos
que nos rebaixamos tanto como espécie que somos incapazes de fazer isso.” A
única coisa que vai mudar essa crença é ficar cara a cara, em comunidade, tendo
experiências longe das telas, um com o outro nas ruas e na natureza, ganhando
algumas coisas e sentindo esse poder.
Você
fala sobre resistência no livro. Como você segue em frente? Você se sente
esperançosa?
Naomi Klein: Eu tenho
sentimentos complicados sobre a questão da esperança. Não passa um dia sem que
eu não tenha um momento de pânico total, de terror brutal, de completa
convicção de que estamos condenados, e então eu me empurro para fora disso. Eu
me sinto renovada com essa nova geração que é tão determinada, tão forte.
Eu me sinto inspirada pela disposição de participar da política eleitoral,
porque, na minha geração, quando tínhamos 20 ou 30 anos, havia tanta suspeita
sobre sujarmos as nossas mãos com a política eleitoral que perdemos muitas
oportunidades.
O que me dá a maior esperança agora
é que finalmente temos a visão daquilo que queremos, ou pelo menos o
primeiro esboço disso. É a primeira vez que isso acontece na minha vida. E
eu também decidi ter filhos. Eu tenho um filho de sete anos que é completamente
obcecado e apaixonado pelo mundo natural. Quando eu penso nele, depois de
passarmos um verão inteiro conversando sobre o papel do salmão na alimentação
das florestas onde ele nasceu, na Colúmbia Britânica, e sobre como elas estão
ligadas à saúde das árvores, do solo, dos ursos, das orcas e de todo esse
magnífico ecossistema, e eu penso em como seria ter que dizer a ele que não
há mais salmões, isso me mata. Então, isso me motiva. E me destrói.
Traduzido
do inglês por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão original desta
entrevista, clicando aqui.
Comentários
Postar um comentário