Atualizando os “Dez Mandamentos”
Os Dez Mandamentos:
versão atualizada para elites
(Edição apócrifa revista e atualizada para o Terceiro
Milênio)
Ladislau Dowbor
Economista, doutor em Ciências Econômicas
pela Escola Central de Planejamento e Estatística de
Varsóvia,
professor da PUC-SP e da Umesp
Uma paráfrase dos Dez
Mandamentos
destinada à elite
impenitente deste nosso país e
das demais nações do
planeta
I – Não Comprarás o
Estado
Resgatar a dimensão pública do Estado.
Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro das
corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam
risco são pagas por quem cria o risco? Uma das propostas mais evidentes da
última crise financeira, e que encontramos mencionada em quase todo o espectro
político, é a necessidade de se reduzir a capacidade das corporações
privadas ditarem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no
sentido de:
* reduzir
impostos sobre transações financeiras,
* de reduzir
a regulação do banco central,
* de
autorizar os bancos a fazerem toda e qualquer operação,
* somado com
o poder dos lobbies financeiros,
tornam evidente a necessidade de
se resgatar o poder regulador do estado, e para isto os políticos devem ser
eleitos por pessoas de verdade, e não por pessoas jurídicas, que constituem
ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não tivermos financiamento
público das campanhas, políticos que representem os interesses dos
cidadãos, prevalecerão os interesses econômicos de curto prazo e a corrupção.
Veja regulamentação em O Estado Empreendedor,
de Mariana Mazzucatto (Portfolio-Penguin, 2014).
II – Não Farás Contas
Erradas
As contas têm de refletir os
objetivos que visamos. O PIB [Produto Interno Bruto] indica a
intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade do que
se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais de que o
planeta dispõe. Contamos como aumento do PIB os desastres ambientais, o
aumento de doenças, o cerceamento de acesso a bens livres, o comércio de
drogas. O IDH já foi um imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade
integrada dos resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da
alocação de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não
seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e
ambientalmente sustentável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente
em diversos países, setores ou pesquisas. A adoção em todos as cidades de
indicadores locais de qualidade de vida tornou-se hoje indispensável para
que seja medido o que efetivamente interessa: o desenvolvimento sustentável, o
resultado em termos de qualidade de vida da população. Muito mais do que o output,
trata-se de medir o outcome. A recente Economia
Donut, de Kate Raworth (Rio de Janeiro: Zahar, 2019) ajuda muito.
III – Não Reduzirás o
Próximo à Miséria
Algumas coisas não podem faltar a
ninguém. A pobreza crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em
si, como pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao
conhecimento, a deformação do perfil de produção que se desinteressa das
necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. Os custos de se tirar da
miséria e da pobreza a massa de pessoas que vivem situações dramáticas são
ridículos, frente aos custos adicionais que a desigualdade gera. E são
custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos
econômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício
ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas ridículas milhões de
crianças por ano. O benefício de curto e médio prazo é grande, na medida em
que os recursos direcionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a
pequena e média empresa, agindo como processo anticíclico, como se tem
constatado nas políticas sociais de muitos países. No mais longo prazo, será
uma geração de crianças que terão sido alimentadas decentemente, o que se
transforma em melhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida
adulta. A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda, é
simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, e o dinheiro é
simplesmente mais útil onde é mais necessário. O dinheiro na mão do pobre
vira consumo, produção e emprego. Na mão do rico vira dívida pública e
conta no Panamá. Veja País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras, Oxfam.
IV – Não Privarás
Ninguém do Direito de Ganhar O Seu Pão
Universalizar a garantia do emprego
é viável. Toda pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve
poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer,
inclusive para resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem
acesso a formas organizadas de produzir e gerar renda. Temos os recursos e
os conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou
cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil. As experiências de Maharashtra
na Índia demonstraram a sua viabilidade, como o mostram as numerosas
experiências brasileiras, sem falar no New Deal da crise dos anos 1930. São
opções onde todos ganham: o município melhora o saneamento básico, a moradia,
a manutenção urbana, a policultura alimentar. As famílias passam a poder
viver decentemente; e a sociedade passa a ser melhor estruturada e menos
tensionada. Os gastos com seguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada
vila ou cidade é obrigada a ter um cadastro de iniciativas intensivas em mão de
obra. Dinheiro emprestado ou criado desta forma representa investimento,
melhoria de qualidade de vida, e dá excelente retorno. E argumento
fundamental: assegura que todos tenham o seu lugar para participar na
construção de um desenvolvimento sustentável. Na organização econômica, além do
resultado produtivo, é essencial pensar no processo estruturador da
sociedade, através da inclusão produtiva. A dimensão de geração de
emprego de todas as iniciativas econômicas tem de se tornar critério central.
Veja o relatório da OIT, Trabalhar para um futuro mais prometedor.
V – Não Trabalharás
Mais de Quarenta horas
Podemos trabalhar menos, e
trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida.
A subutilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que
desigual na sua gravidade. No Brasil, o setor informal situa-se na ordem de
40% da PEA. Uma imensa parte da nação “se vira” para sobreviver. Somando
com 13 milhões de desempregados, são 50 milhões de pessoas. No lado dos
empregos de ponta, as pessoas não vivem por excesso de carga de trabalho. Não
se trata aqui de uma exigência de luxo: são incontáveis os suicídios nas
empresas onde a corrida pela eficiência se tornou simplesmente desumana. O stress profissional está
se tornando uma doença planetária, e a questão da qualidade de vida no trabalho
passa a ocupar um espaço central. A redistribuição social da carga de trabalho
torna-se hoje uma necessidade. As resistências são compreensíveis, mas a
realidade é que com os avanços da tecnologia os processos produtivos tornam-se
cada vez menos intensivos em mão de obra, e reduzir a jornada é uma questão de
tempo. A redução da jornada não reduzirá o bem-estar ou a riqueza da
população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tempo
livre, com mais atividades de cultura e lazer. Não precisamos
necessariamente de mais carros e de mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais
qualidade de vida. Veja o livro O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil, [Nota de IHU On-Line: obra do
autor] (Fundação Perseu Abramo, 2015).
VI – Não Organizarás a
Tua Vida em Função do Dinheiro
A mudança de comportamento, de
estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom senso. Neste
planeta de 7,8 bilhões de habitantes, com um aumento anual da ordem de 80
milhões, toda política de bom senso envolve também uma mudança de comportamento
individual e da cultura do consumo. O respeito às normas ambientais, a
moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso inteligente dos meios
de transporte, a generalização da reciclagem, a redução do desperdício – há um
conjunto de formas de organização do nosso cotidiano que passa por uma mudança
de valores e de atitudes frente aos desafios econômicos, sociais e ambientais. Hoje
95% dos domicílios no Brasil têm televisão, e o uso informativo inteligente
deste e de outros meios de comunicação tornou-se fundamental. Frente aos
esforços necessários para reequilibrar o planeta, não basta reduzir o
martelar publicitário que apela para o consumismo desenfreado, é preciso
generalizar as dimensões informativas dos meios de comunicação. A mídia
científica praticamente desapareceu, os noticiários navegam no atrativo da
criminalidade, quando precisamos vitalmente de uma população informada sobre
os desafios reais que enfrentamos. Grande parte da mudança do comportamento
individual depende de ações públicas: as pessoas não deixarão o carro em casa
(ou deixarão de tê-lo) se não houver melhor transporte público, não farão
reciclagem se não houver sistemas adequados de coleta. Precisamos de uma
política pública de mudança do comportamento individual. Veja A terra inabitável, de David Wallace-Wells (São
Paulo: Companhia das Letras, 2019).
VII – Não Ganharás
Dinheiro com o Dinheiro dos Outros
Racionalizar os sistemas de
intermediação financeira é viável. A alocação final dos recursos financeiros
deixou de ser organizada em função dos usos finais de estímulo e orientação de
atividades econômicas e sociais, para obedecer às finalidades dos próprios
intermediários financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade
pública, seja no quadro das instituições públicas, seja no quadro dos
bancos privados que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto
precisam de uma carta-patente que os autoriza a ganhar dinheiro com dinheiro
dos outros. A crise financeira de 2008 no plano internacional, e a crise
brasileira a partir de 2014 demonstraram com clareza o caos que gera a ausência
de mecanismos confiáveis de regulação no setor. O dinheiro não é mais
produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade
sistêmica de um recurso que é público. A intermediação financeira é um meio,
não é um fim. A intermediação financeira com juros extorsivos apenas gera
uma pirâmide especulativa e insegurança, além de desorganizar os mercados e as
políticas econômicas. Leia A era do capital improdutivo [Nota de IHU On-Line:
obra do autor] (São Paulo: Editoras Outras Palavras e Autonomia Literária,
2017).
VIII – Não Tributarás as
Ações que Mais Nos Ajudam
A filosofia do imposto, de quem se
cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista. Uma política tributária
equilibrada na cobrança, e reorientada na aplicação dos recursos, constitui um
dos instrumentos fundamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser
promovida por mecanismos democráticos. O eixo central não está na redução dos
impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produtiva
em termos sociais e ambientais. A taxação das transações especulativas
(nacionais ou internacionais) deverá gerar fundos para financiar uma série de
políticas essenciais para o reequilíbrio social e ambiental. O imposto sobre
grandes fortunas é hoje essencial para reduzir o poder político das dinastias
econômicas (1% das famílias do planeta detém mais riqueza do que os 99%
seguintes). O imposto sobre a herança é fundamental para dar chances a
partilhas mais equilibradas para as sucessivas gerações. É importante
lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão vinculadas não a um
acréscimo de capacidades produtivas, e sim à aquisição maior de empresas por um
só grupo, gerando uma pirâmide cada vez mais instável e menos governável de
propriedades cruzadas, impérios onde a grande luta é pelo controle do poder
financeiro, político e midiático, e a apropriação de recursos naturais. O
sistema tributário tem de ser reformulado no sentido anticíclico, privilegiando
atividades produtivas e penalizando as especulativas; no sentido do maior
equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido de proteção
ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança climática, bem como
o uso de recursos naturais não renováveis. O poder redistributivo do Estado é
grande, tanto pelas políticas que executa – por exemplo as políticas de saúde,
lazer, saneamento e outras infraestruturas sociais que melhoram o nível de
consumo coletivo – como pelas que pode fomentar, como opções energéticas,
inclusão digital e assim por diante. A democratização aqui é fundamental. A
apropriação dos mecanismos decisórios sobre a alocação de recursos públicos
está no centro dos processos de corrupção, envolvendo as grandes bancadas
corporativas, por sua vez ancoradas no financiamento privado das campanhas.
Leia Democracia Econômica, [Nota de IHU
On-Line: obra do autor] (São Paulo: Vozes, 2008).
IX – Não Privarás o
Próximo do Direito ao Conhecimento
Travar o acesso ao conhecimento e
às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido. A participação efetiva
das populações nos processos de desenvolvimento sustentável envolve um denso
sistema de acesso público e gratuito à informação necessária. A conectividade
planetária que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso
direto. O custo-benefício da inclusão digital generalizada é simplesmente
imbatível, pois é um programa que desonera as instâncias administrativas
superiores, na medida em que as comunidades com acesso à informação se
tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação
deste tipo de tecnologia até nas regiões mais pobres se constata na propagação
do celular e das plataformas colaborativas. O impacto produtivo é imenso para
os pequenos produtores que passam a ter acesso direto a diversos mercados tanto
de insumos como de venda, escapando aos diversos sistemas de atravessadores
comerciais e financeiros. A inclusão digital generalizada permite destravar
um conjunto de processos de mudança que hoje se tornam indispensáveis. A
criação de redes de núcleos de fomento tecnológico online, com ampla
capilaridade, pode se inspirar da experiência da Índia, onde foram
criados núcleos em praticamente todas as vilas do país. É particularmente
importante a flexibilização de patentes no sentido de assegurar ao conjunto da
população mundial o acesso às informações indispensáveis para as mudanças
tecnológicas exigidas por um desenvolvimento sustentável. Leia A sociedade de custo marginal zero, de Jeremy
Rifkin (M. Books, 2015).
X – Não Controlarás a
Palavra do Próximo
Democratizar a comunicação
tornou-se essencial. A comunicação é uma das áreas que mais explodiu em
termos de peso relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência
cercados de mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade
ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica
concentração internacional e nacional – e a sua crescente interação entre os
dois níveis – gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo
obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos
como símbolo de sucesso. O espectro eletromagnético em que estas mensagens
navegam é público, e o acesso a uma informação inteligente e gratuita para
todos é simplesmente viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas
alternativas de mídia que surgem por toda parte, há como introduzir uma
cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada,
pluralismo em vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais. Leia [clicando sobre o nome]:
* IHU,
* Carta Maior,
*
GGN,
* Brasil 247,
* Guardian,
e outras tantas fontes confiáveis
de informação.
O copyright da presente
edição revista e ampliada dos Dez Mandamentos é aberto, na linha do Creative
Commons. Sendo o Alto Secretariado hoje bem equipado, dispondo das mídias
sociais mais avançadas, os que por acaso tenham dificuldades técnicas na
aplicação da presente versão dos Mandamentos, poderão recorrer a textos de
Exegese no blog dowbor.org.
Ignacy Sachs, Carlos Lopes e Ladislau Dowbor
expressaram aqui transcrições pessoais, e as pessoas que encontrem dificuldades
políticas na aplicação dos presentes Mandamentos deverão dirigir as suas
reclamações às Instâncias Superiores. Sim, as leituras aqui recomendadas
mencionam apenas os títulos, sem os autores. Na era da internet, procure e
acharás.
PS:
Respeitarás a mulher, e não apenas a do próximo.
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