É tempo de Sínodo!
O Papa Francisco quer colocar o sínodo numa posição chave
no governo da Igreja
Entrevista com José Oscar Beozzo
Padre, teólogo e historiador
Luis Miguel Modino
A Igreja se prepara para mais uma assembleia,
o Sínodo para a Amazônia,
bem menor é claro, mas que na linha do Vaticano II
pretende buscar novos caminhos, que fazem referência
não só àquilo que está ao interior da Igreja,
mas também à questão da ecologia integral
JOSÉ OSCAR BEOZZO |
O Concílio Vaticano II, mesmo depois de mais de
cinquenta anos desde seu encerramento, ainda precisa avançar em alguns
pontos que não tem sido aplicados na vida da Igreja. Um dos grandes
estudiosos do Concílio e suas conclusões é o Padre José Oscar Beozzo, que em
sua longa trajetória teológica tem aprofundado sobre os ensinamentos recolhidos
na última grande assembleia da Igreja universal.
A Igreja se prepara para mais uma assembleia, o Sínodo para a Amazônia, bem menor
é claro, mas que na linha do Vaticano II pretende buscar novos caminhos, que
fazem referência não só àquilo que está ao interior da Igreja, mas também à
questão da ecologia integral, uma preocupação cada dia mais presente na
sociedade. O Padre Beozzo define o Sínodo como um grande teste nesse campo.
Na entrevista ele faz uma leitura histórica das últimas
décadas da Igreja, tentando mostrar elementos que possam ajudar a
entender alguns dos aspectos que aparecem no processo sinodal, numa tentativa
de abrir perspectivas de cara ao futuro da missão da Igreja na Pan-Amazônia e
dos povos que a habitam, especialmente os povos originários, guardiões
ancestrais da Mãe Terra, da Casa Comum.
Eis a entrevista.
Recentemente o Papa
Francisco falou que o Sínodo para a Amazônia é filho da Laudato Si', a
gente poderia dizer que o Sínodo para a Amazônia também é filho do Vaticano II?
José Oscar Beozzo: Todos os
sínodos nascem com a decisão de Paulo VI na última sessão do concílio,
dessa novidade na Igreja. O senado, um conselho que não são somente os
cardeais, mas associar a Igreja toda, a caminhada da Igreja e os temas
mais importantes para a vida da Igreja, a começar pelos presidentes das
conferências episcopais, e depois com bispos eleitos por cada Conferência
Episcopal a cada sínodo para participar segundo uma proporção. No caso do
Brasil são quatro, um por cada cem bispos para cada sínodo.
Os padres conciliares tinham pedido que fosse uma espécie de
Senado permanente, de contato para dirigir à Igreja, um colégio.
O sínodo, ele não nasce como um organismo permanente, mas também não é um
organismo da Cúria [Romana]. Ele é convocado a cada vez, e segundo, ele não
é deliberativo, como são os concílios, ele pode ser se o Papa decidir.
Então aquele sonho de conselho permanente e deliberativo, isso não se
concretizou até hoje. Só que há uma mudança com o Papa Francisco, ele
recupera a intuição inicial, e leva a causa do concílio, com um instrumento
solene na vida da Igreja, ele acaba de fazer uma constituição
apostólica, que o documento mais solene que o Papa pode fazer fora
dos concílios.
Mesmo nos concílios, as constituições são os documentos
chave, fundamentais. Então, o sínodo, ele é regido por uma constituição
apostólica, e ele quer colocar o sínodo numa posição chave no governo da Igreja.
O Vaticano II foi uma
tentativa de abrir a Igreja à realidade do mundo, de escutar os sinais dos
tempos uma tentativa de falar para o mundo todo. O Sínodo para a Amazônia
aborda o tema da ECOLOGIA INTEGRAL, que é uma realidade que atinge a todas as
pessoas, independentemente da sua crença, da sua condição. Como o Sínodo para a
Amazônia pode repercutir na vida da sociedade, na realidade mundial hoje?
Beozzo: Houve dois momentos nos últimos
sessenta anos em que a Igreja colocou um tema fundamental para a vida do mundo
todo, que foi a Pacem in Terris, após a crise dos mísseis em Cuba, a questão
da crise nuclear, e que o Papa São João XXIII, pela primeira vez, muda a
doutrina da Igreja na questão da guerra. Ele diz, diante das armas modernas,
químicas, biológicas e nucleares, nenhuma guerra é justa. Sempre teve na
doutrina tradicional a guerra defensiva e justa, mas ele disse que nenhuma
guerra é justa diante do desastre, da hecatombe que ela pode produzir. Ela
foi acolhida no mundo todo, e é o primeiro documento na história da Igreja que
não é dirigido às pessoas da Igreja simplesmente. Todos os documentos eram
dirigidos aos cardeais, aos arcebispos, aos fiéis, e esse daí é dirigido a
todos os homens de boa vontade, a gente diria hoje aos homens e mulheres de boa
vontade.
E a Laudato Si' é o segundo documento da Igreja que
eu diria tem um impacto tão profundo quanto a Pacem in Terris, porque de novo
trata de uma crise de sobrevivência da humanidade e socioambiental. O
Sínodo da Amazônia, eu acho que é um grande teste de quanto a Igreja, nessa
área tão sensível, como é a Amazônia, em relação ao clima mundial, questões da
água, da preservação ambiental, do respeito aos povos que vivem outras formas
de vida, ele vai ser um grande passo de quanto a Igreja é capaz realmente de
assumir no seu dia a dia, na sua realidade as grandes propostas da Laudato
Si'.
A Laudato Si' é um
documento que repercutiu na vida da sociedade, às vezes até despertou mais
interesse do que dentro de alguns ambientes da própria Igreja. Depois de quatro
anos de publicação da Laudato Si', como a gente percebe que isso está
tomando corpo, está se introduzindo dentro da sociedade, dentro da vida da
Igreja?
Beozzo: Eu penso assim, a Laudato Si',
como ela tem esse destino amplo, ela acolhe toda pesquisa, reflexão dos
cientistas, que cita diretamente aquele painel da ONU, cita diretamente as
conclusões dos cientistas e as toma como ponto de partida. Acolhe a prática
da Igreja no mundo inteiro, e isso é muito importante. Na caminhada em relação
às questões da crise ambiental nas Igrejas locais. Um belo documento das
Filipinas, onde se pergunta o que vocês fizeram com nosso país, por causa dos
desastres, e vai passando documentos da Igreja do Brasil, documento da Igreja
da França, documentos dos Estados Unidos. Ela recolhe a caminhada dos
Igrejas locais nessa questão.
Mas depois, tem um belo respiro na questão espiritual,
logo no começo, dos números nove a doze da Laudato Si', são textos
diretos do Patriarca Bartolomeu, patriarca ecumênico de Constantinopla, que é
um dos grandes defensores da questão do compromisso das Igrejas com a questão
climática. Recolhe documentos do Conselho Mundial de Igrejas, mas depois
vai além, ele vai à escuta dos mestres espirituais, das diferentes
religiões. Então você tem textos de místicos muçulmanos, ele escuta
à humanidade inteira, por meio de grandes literatos, de Borges, na
Argentina. Se trata de uma caminhada da humanidade, de um selo de autoridade
moral que nenhum outro documento tem. Ele foi decisivo para o Acordo de Paris, a carta o precede em alguns
meses e aquilo foi um empuxão do acordo que ninguém esperava que pudesse
acontecer.
Daí para frente, eu vejo assim, muitas universidades que
lidam com a questão ambiental, o tem como livro de texto, de leitura
obrigatória, para várias cadeiras das universidades, o texto do Papa,
porque ele acrescenta, não só dados científicos, mas um grande aporte nessa
busca, pelas pessoas de boa vontade, os partidos verdes, ecologistas do mundo
inteiro, a juventude, ficaram encantados, porque é um texto de grande
qualidade, de grande profundidade e apelo. Então, acho que a Laudato Si',
você tem razão que alguns ambientes de Igreja, que estão muito voltados só para
questões internas, liturgia, muito pano, eles veem a Laudato Si' como
algo estranho, mas não é, e sim um texto que está preocupado com o destino
da humanidade, preocupado com a crise socioambiental.
Para ler, baixar e imprimir a íntegra da encíclica Laudato
Si’,
O senhor falou sobre o
encontro de Paris, um dos seus grandes defensores hoje é o presidente da
França, Emmanuel Macron, que de fato, ele insistiu para na última reunião do G7
falar sobre a Amazônia desde esse ponto de vista da preservação ambiental e do
cuidado do planeta. Ele chegou colocar no Twitter que nossa casa tinha pegado
fogo o que provocou até um conflito diplomático entre o Brasil e a França.
Poderíamos dizer que aquilo que o Papa defende nesse campo da ecologia integral
está no mínimo provocando questionamentos, uma reação dos líderes políticos no
mundo?
Beozzo: Eu penso assim, como eu disse
antes, a posição dele tão clara, tão decisiva, tão superior das picuinhas
políticas que podem ter, e existem, e são normais, essa posição superior de
um apelo à humanidade toda, foi decisiva para que se chegasse a um acordo que
se achava impossível os Estados Unidos na época, China, ter se aderido ao
acordo, houve uma convergência. E como aconteceu em Paris, evidentemente, a
França se sentiu um pouco madrinha do acordo. Eram todos os países, mas ela
sentiu essa conferência como própria.
Eu penso que o presidente Macron, ele é defensor antes dessa
crise, desse momento, mas também ele está espicaçado, o partido dele afundou, e
nas eleições ao parlamento europeu, a segunda força política na França é o
Partido Verde, e em vários países da Europa. O político sempre
procura para onde o vento está soprando, e o vento sopra neste momento na
direção da crise socioambiental, que está reclamando uma política mais severa é
mais responsável em relação ao meio ambiente.
O desastre ambiental que o governo Bolsonaro tem provocado
na área ambiental, onde houve uma carta de todos os ministros anteriores, e
é a segunda, de todos os anteriores ministros do meio ambiente, de governos tão
diferentes como Collor, Sarney, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula,
Dilma, todos os ministros, unanimemente, já vinham denunciando esse descaso
com a Amazônia, com o meio ambiente, e de modo particular com essa total
indiferença em relação ao desastre que está acontecendo na Amazônia,
acusando Deus e todo mundo, e não a própria política governamental, onde teve
uma carta desses ministros todos, dirigida ao presidente da Câmara, Rodrigo
Maia, e ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre, pedindo uma moratória e parar
todas as medidas legislativas que ferem o meio ambiente, que são muitas, abrir
as áreas indígenas à mineração, um desastre.
Eles pedem uma moratória, se colocam à disposição para uma
consulta pública no país, sobre o sistema, eles se colocam a disposição do
parlamento para estar presentes, trazer os cientistas e que o parlamento assuma
suas responsabilidades, já que o governo federal é um disparate, o atual
ministro de meio ambiente, e tudo o que o governo não só vem falando, mas
executando, desmonta o IBAMA, desmonta o ICMBio, todos os organismos
governamentais que cuidam do meio ambiente, foram realmente desarticulados,
destroçados, por esse atual governo.
Outra das questões que
aparece no Vaticano II, mas que depois perdeu muita força é a questão de uma Igreja
ministerial. O Instrumentum Laboris do Sínodo para a Amazônia quer
recuperar essa Igreja ministerial, e inclusive insistindo no protagonismo das
mulheres. Como isso pode repercutir na vida da Igreja na Amazônia e na vida da
Igreja Universal, essa tentativa de recuperar uma das linhas principais do
Vaticano II?
Beozzo: A grande virada teológica do
Vaticano II, no plano eclesial, ela tem duas pernas, se a gente pode
dizer assim, a primeira e principal é de deslocar a definição da Igreja da
hierarquia. Quando eu estudei teologia, a primeira tese do tratado de
eclesiologia era o Romano Pontífice, na primeira tese começava tratando do Papa
e também o primeiro esquema preparatório do Vaticano II começava pela
hierarquia, e foi uma grande batalha, e o voto decisivo depois do capítulo
inicial tratar as grandes figuras da Igreja no Antigo Testamento e no Novo, era
o capítulo II, dizer, que é a Igreja? E a definição que se propôs da Igreja
é o Povo de Deus.
Isso altera profundamente a base sobre a qual você pensa a
Igreja, que é o Povo de Deus. Você desloca da hierarquia, do Sacramento da
Ordem, como estruturante da Igreja, para o batismo. Ele que é a estrutura
fundante da Igreja, com um sacerdócio régio, profético, de governo, que está
em todos os batizados. O apostolado, a chamada à santidade, está em todas
as pessoas, não é, como se dizia na Ação Católica, não é o mandato da
hierarquia para você poder fazer alguma coisa. Não, não é mandato, o mandato
nasce do batismo, e daí deriva uma concepção diferente de ministérios.
Batizado deveria ser semente, estar facultado para todos os ministérios, cabe a
Igreja regular isso.
Cada batizado poderia em se, desdobrar todos os diferentes
ministérios na Igreja, e isso aconteceu no pós-concilio, em todas Igrejas,
houve uma profusão de novos ministérios, e muitas Igrejas reconhecem esses
ministérios. No dia de Pentecostes há uma grande cerimônia, onde o bispo
confere esses mistérios de ministros extraordinários do batismo, do matrimônio,
de ministros extraordinários da Eucaristia. Já tem um caminho, e as
comunidades, elas mesmas criam os seus mistérios, e todas essas comunidades que
o padre acabou fechando, não autorizando os ministérios, quando o padre não
está presente, eles têm os ministérios necessários, né. Sempre são mulheres
que dirigem a comunidade que pregam a Palavra, que organizam a celebração e os
serviços, as visitas. Você tem esses ministérios bíblicos dentro da Igreja.
O que falta é um passo de ter um selo de reconhecimento do estado, desses
ministérios dentro da Igreja.
CONCÍLIO VATICANO II - 1962 Sessão de Abertura - interior da Basílica de São Pedro - Vaticano |
Depois
do Vaticano II e das primeiras conferências do episcopado latino-americano foi
surgindo e se institucionalizando o Conselho Episcopal Latino-americano, o
CELAM. Em nível Pan-Amazônico, a REPAM foi uma tentativa, não só desde o
episcopado, mas desde a Igreja como um todo, de articular essa caminhada da
Igreja Pan-Amazônica. Uma das sugestões do Instrumento de Trabalho é incentivar
ainda mais essa articulação Pan-Amazônica, como ajudar a Igreja da Pan-Amazônia
a tomar consciência de que a caminhada, a luta, não só da Igreja, como dos
povos na Pan-Amazônia são comuns, e a gente tem que caminhar nessa direção de
uma Igreja Pan-Amazônica que que vive a fé e caminha junto?
Beozzo: Essa consciência da singularidade
da Amazônia nasceu bem antes, você tem iniciativas como o CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), aqui no Brasil, que é de 1972, e depois começou
uma articulação dessas mesmas questões, por exemplo indígenas, com o Peru,
Bolívia. Todo o esforço depois de uma teologia índia, ter uma
consciência, ter um selo. Essa sempre foi uma região chamada entre aspas de
missionária. Nesse momento significava uma Igreja menor, que dependia do
estrangeiro que vinha aqui, tinha um pedacinho para cada congregação. Isso foi
sendo superado com uma articulação, com um acréscimo nessas dimensões, mas não
ia no coração do problema, que era a questão indígena. Acabou havendo
uma espécie de articulação no cuidado dos povos indígenas na região Amazônica.
Claro que a REPAM acabou consolidando esse caminhar,
trazendo outros elementos, né, e ela foi fundamental na preparação do Sínodo
da Amazônia. Então, é possível que se consolide uma articulação mais
permanente e reconhecida, dentro de estruturas como o CELAM que tem seu
departamento de missões, que tem esse espaço amazônico, como aconteceu com o
sul de México, com as dioceses de Chiapas, Tecoatepec, como aconteceu com a
Amazônia peruana. Depois isso foi se destruindo pela política de nomeação de
bispos que permaneceu no episcopado de João Paulo II e Bento XVI, nessas
regiões que tinham um ímpeto missionário, uma liberdade.
Estou pensando no Equador com Leónidas Proaño, nos
bispos dominicanos na Amazônia peruana. Tudo isso foi muito desarticulado e
pode ser reorganizado. O Sínodo está sendo um teste para isso, falta que
os bispos assumam, não são todos que assumem, mas a região amazônica é uma
área que exige um trabalho no dia-a-dia da Igreja, não de manutenção de
estruturas, mais de criação de novas formas de pastoral, de
acompanhamento, de formas de viver a Igreja.
Então, a REPAM pode ser um espaço onde essas coisas são
chocadas e nascem, e o Sínodo pode dar uma institucionalidade ampla, e não
apenas regional. E aí a discussão seriam os trabalhos de como se tecem os laços
mais fortes, como acontece no Brasil com a CNBB, como acontece no CELAM e uma
articulação missionária aqui na Amazônia. Sempre que se cria um organismo
novo, tem que garantir a liberdade de cada membro desse organismo, mas
também como ele tece os laços com as estruturas inferiores, isso é um desafio.
Na CNBB, nos diferentes
episcopados que fazem parte da Pan-Amazônia, realmente existe essa consciência
pan-amazônica que possa ajudar diante das ameaças que a Amazônia e seus povos
estão sofrendo hoje?
Beozzo: Eu penso que essa é uma
consciência crescente, que não se pode ignorar. Mas eu penso assim, num
centro industrial como São Paulo, eles tem um pouco de dificuldade, como
Igreja, para dizer, bom a Amazônia é uma problema meu, embora hoje, com todos
os estúdios que existem, São Paulo não existe sem os rios aéreos que fazem
chover lá em São Paulo e até em Buenos Aires. Uma consciência dessa
interligação e que a Amazônia não é questão de pulmão do mundo, pois solta
oxigênio e come oxigênio, mas ela é um regulador fundamental para essas regiões
do sul do país, onde estão quase dois terços da população e três quartos dos
PIB nacional, elas iam ser um deserto, como é o Atacama no Chile, ou os
desertos da África. São desertos no sul e no norte, como o deserto de
Sonora no México ou o deserto de Gobi, na China, tudo na mesma faixa, que não
chove, pela rotação dos ventos, e tudo, menos aqui na América do Sul. Porque a
Amazônia é a chave de manter áreas que seriam áridas no restante do mundo,
pela formação climática, e não é por causa da floresta amazônica, além de ter
um imenso lençol subterrâneo, o maior do mundo, em Álter do Chão.
O Rio Amazonas joga no oceano 18 milhões de metros cúbicos de
água, que é mais do que todos os outros nove maiores rios do mundo, e além
disso tem esses rios aéreos que são chave na agricultura, também até na
Argentina, e que estão ocupando o debate científico, o debate climatológico, e
tem clara consciência que essas regiões dependem disso. Aquilo de que tudo
está interligado, aqui é muito mais sério, nós vivemos da Amazônia, mesmo zonas
que estão distantes.
A consciência de tudo isso foi muito sacudido com o projeto
de Igrejas irmãs, aqueles que saíram de igrejas de Santa Catarina, Rio Grande
do Sul, São Paulo, Minas Gerais, e enviaram seus missionários, e os bispos
foram visitá-los, ganharam consciência. Não é geral, mas já é diferente de uma
total indiferença que havia, lá era para os estrangeiros, não para nós. Essas
igrejas não tinham uma conexão, nem faziam parte da CNBB no começo. Só que com
o Concilio, João XXIII disse que todos os que tinham responsabilidade
ministerial no território venham para o Concilio, e todo mundo apoiou. Os
bispos que acataram são incorporados à vida da CNBB, depois ter criado uma
comissão interna da Amazônia, o cardeal Hummes ter assumido isso com tanto
empenho, eu creio que isso mudou o panorama, e em outros países também.
De todas as intuições que
trouxe o Vaticano II, que a gente sabe que depois nem todas foram concretizadas,
aquelas que ainda faltam concretizar, até que ponto o Sínodo para a Amazônia
pode ajudar nisso?
Beozzo: Eu assinalo dois déficits na
recepção do Vaticano II, na questão eclesiológica. Tem três documentos
eclesiológicos que são aprovados solenemente e publicados no mesmo dia, no dia
21 de novembro de 1964, a Lumen Gentium, o documento Unitatis
Redintegratio, que é parte integrante do projeto de Igreja e suas relações
ecumênicas, e também Orientalis Ecclesiarum, o documento do Oriente. A
Igreja respira com dois pulmões, o pulmão oriental, o mais antigo, e o pulmão
ocidental, latino. E a gente dizia, a Igreja faz assim, mas não, faz assim
na área ocidental, latina. Por exemplo, os padres não casam na Igreja, mas em
todas as outras 19 Igrejas orientais católicas, os padres são casados. Numa
Igreja que é a grandona, católica, ocidental, tem um regime. Em outras questões,
a língua da liturgia é o latim, mas não é, tem o rito alexandrino, que a
liturgia é em grego, tem o rito bizantino católico, a liturgia é
em armênio, nas Igrejas católicas da Armênia.
Você tem uma diversidade de ritos, e isso é
reconhecido na Sacrosanctum Concilium, essa diversidade faz parte da
mesma aprovação da Lumen Gentium, que está de braço grudado com toda a
questão do ecumenismo e de braço grudado com o reconhecimento da diversidade e
da riqueza das Igrejas católicas orientais. Esse é um déficit, a Igreja
continua só pensando na Igreja latina, não pensa que a Igreja católica é
formada pela Igreja latina e por 19 Igrejas que não são latinas, e são
católicas, e tem regimes distintos, vivem a sinodalidade de maneira muito
profunda. O Patriarca Maximus IV no Concílio,
ele fez um discurso, a língua oficial era o latim, ele se levantou e falou em
francês, desafiando. Não que ele não soubesse latim, foi para desafiar a
assembleia.
E depois disse, as Igrejas do Oriente não devem nada à
Igreja de Ocidente, nem na sua teologia, nem na sua eclesiologia, nem na sua
liturgia, nem nos Padres da Igreja, que são do Oriente, estamos em comunhão
com Roma, mas não somos romanos, o qual é uma coisa muito importante, o cardeal
Maximus abalou o Concílio. Então, esse para mim é um déficit, quando se trata a
Lumen Gentium, nenhuma das escolas de teologia, não trata junto com os
outros dois documentos que foram aprovados no mesmo dia e fazem parte de um
bloco eclesiológico.
A eclesiologia, ela tem duas pernas, uma que é a Lumen
Gentium e outra que é a Gaudium et Spes, a Igreja no mundo de
hoje, ela não existe para si, ela tem uma missão no mundo, ela existe para fora.
Não se pode pensar a Igreja sem amarrar essas duas pontas. Eu me recordo nos
cinquenta anos do Vaticano II, eu estava numa comissão, estava tudo sendo
decidido assim, num ano a constituição sobre a liturgia, outro ano não sei o
que, e eu falei, onde está a Gaudium et Spes, como se isso caísse das
nuvens. Aí assumiu, o ano 2016 foi consagrado ao estudo da Igreja na sociedade,
o serviço na sociedade, mas ela escapa nos seminários, escapa na vida
cotidiana. Sem pensar que nós não somos católicos, não somos fiéis ao
Concilio se não amarramos essas duas pontas, que o regime interno da Igreja
está ligada a sua missão no mundo. Essa é outra grande questão, esse é outro
grande movimento eclesiológico fundamental para que a Igreja não se feche em si
mesma como vem acontecendo nos últimos tempos.
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