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Limpando nossos espaços. Literalmente
José Tolentino Mendonça
Jornal «Avvenire» - Roma (Itália)
17-09-2019
Arcebispo, teólogo e escritor português
Arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e bibliotecário
da Biblioteca Apostólica Vaticana,
recém nomeado cardeal
«Quando nos recusamos
a sujar as mãos no cuidado da vida,
acabamos bem
rapidamente ficando sem as mãos»
«O poeta Charles Péguy
escreveu, com razão, que, quando nos recusamos a sujar as mãos no cuidado da
vida, acabamos bem rapidamente ficando sem as mãos. É um fato: muitas vezes
vivemos sem as mãos, as perdemos lá atrás em alguma etapa do caminho,
esquecemos seu significado, sua função, sem ter consciência disso por anos e
anos», escreve José Tolentino Mendonça, arquivista do Arquivo
Secreto do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, e recém
nomeado cardeal, e que foi professor e vice-reitor da Universidade Católica
Portuguesa.
Eis o texto do artigo.
Certa vez ouvi pela boca de um monge
que a maneira mais rápida de se adaptar a uma nova situação é pegar uma
vassoura na mão.
Ele contava com realismo que
durante sua vida tudo lhe custara esforços: chegar a um novo mosteiro, iniciar
um novo ciclo, uma estação diferente, iniciar uma nova etapa do caminho. Mas
que em cada um daqueles momentos a vassoura (no sentido literal ou figurado)
foi para ele, mais do que qualquer outra coisa, a indispensável facilitadora.
Fiz uma pausa para pensar sobre
isso. É um aprendizado importante o que nos faz preferir a vassoura à
cadeira, à cela ou ao cetro.
A vassoura é um elemento humilde,
é verdade. E, não raro, deixa desarmadas nossas expectativas e as idealizações
das quais começamos, bem como as disposições tão ordenadas do protocolo social.
O conhecimento, no entanto, que ela nos oferece é imediato, evidente, concreto,
focado no minúsculo, atento aos detalhes, aderente ao espaço da existência e ao
seu ritmo cotidiano.
Podemos conhecer uma dada realidade
de muitas maneiras, mas nunca a conheceremos de modo tão preciso como quando
lhe dedicamos todo o nosso cuidado. É o tomar conta, no fundo, que nos
permite conhecer. Os planos que engendramos de um ponto de vista mais
teórico ou mais distanciado - como exige, por exemplo, uma leitura crítica -
certamente têm sua relevância e oportunidade, mas não podemos esquecer que, por
si só, são apenas mapas aproximados.
As ideias valem muito; no entanto,
elas não valem sozinhas. Necessitam daquelas adaptações que somente a prova
de sua aplicabilidade pode garantir. Uma relação mais completa, mais dialógica
e mais incisiva começa quando, com um gesto mínimo como o de pegar uma
vassoura, passamos da posição de espectadores para a de atores. Existe
um saber que pode vir unicamente da dedicação voluntária ao serviço.
Em momentos diferentes da
nossa vida,
quando não nos parece claro o
que podemos fazer ou por onde começar,
vamos pegar na mão uma
vassoura.
A vassoura vai sujar as nossas mãos
e assim nos ensinará tantas coisas às quais dificilmente teríamos acesso de
outra maneira. O poeta Charles Péguy escreveu, com razão, que,
quando nos recusamos a sujar as mãos no cuidado da vida, acabamos bem
rapidamente ficando sem as mãos. É um fato: muitas vezes vivemos sem as
mãos, as perdemos lá atrás em alguma etapa do caminho, esquecemos seu
significado, sua função, sem ter consciência disso por anos e anos. A
vassoura - e o que ela simboliza - também realiza um movimento providencial de
resgate em relação a nós mesmos. Na realidade, as mãos que se entregam
também redescobrem a si mesmas como mãos, como operadoras do dom, como
protagonistas da história.
As mãos que se entregam finalmente
ouvem seu próprio idioma; entendem que elas se realizam não como afasia, mas
como linguagem. É por isso que a vassoura tem tanta sabedoria para nos
transmitir: revela que o exercício prático do cuidado (começando pelo
cuidado mais ínfimo, elementar) nos permite saber em que ponto do mundo nos
encontramos e, ao mesmo tempo, em que ponto nós mesmos nos encontramos.
Pode acontecer que acabamos desistindo de pensar na felicidade porque a
consideramos condicionada por uma longa e exorbitante lista de fatores.
A lista dos «se» que vamos somando
torna a felicidade inacessível, e isso tem um custo: o de padronizar nossa
visão para essa declaração de impossibilidade. No entanto, fazemos um
passo decisivo quando temos a coragem de redefinir nossas razões de gratidão e
admiração.
Lembro-me de um poema antigo que
diz: «Non potrei essere più felice. / Vado a prendere l’acqua al pozzo. / E
spazzo le foglie nel mio cortile» (Eu não poderia ser mais feliz. / Vou
pegar água do poço. / E varro as folhas no meu jardim”.
Traduzido
do italiano por Luisa Rabolini.
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