É hora de novos caminhos para os cristãos
A pseudo-religião que começa com “F”: um exemplo de patologia religiosa
Tomáš Halík
Teólogo e Sociólogo tcheco
La Croix International - Paris (França)
18 de novembro de 2020
Os
fiéis têm um papel urgente a desempenhar no combate ao fundamentalismo e ao
fanatismo
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TOMÁŠ HALÍK |
No Brasil, o último título de sua autoria que foi publicado é: Não sem esperança: O retorno da religião em tempos pós-otimistas, Editora Vozes (Petrópolis, RJ), 2019.
Eis o artigo.
O que isto tem em comum?
- Terroristas promulgando
slogans religiosos;
- Apoiadores cristãos de
Donald Trump;
- Radicais pró-vida;
- Adversários católicos do
Papa Francisco que lhe enviam “correções filiais”;
- Grupos guerrilheiros alegando
“defender o homem heterossexual branco”;
- Os esforços de Jarosław Kaczyński para transformar a Polônia em um Estado católico autoritário.
Exploremos isso mais de perto.
Os terroristas que
falam abertamente sobre a sua lealdade ao Islã e proclamam slogans religiosos
representam o exemplo mais evidente, bem conhecido e perigoso de patologia
religiosa.
Eles estão completamente alheios aos princípios éticos do Islã, tirando do seu contexto citações das escrituras sagradas e abusando delas para disseminar ódio e violência.
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Marcha pró-vida com presença de católicos nos Estados Unidos |
Trump
e os radicais pró-vida
Os cristãos que apoiam Donald Trump ignoram inteiramente o fato de que ele é um político populista imoral, cuja vida pessoal, ações e comportamento contradizem os princípios morais do cristianismo.
Contentando-se com a sua
retórica antiabortiva, eles estão dispostos a segui-lo e apoiá-lo cegamente.
Nenhum
político é um messias.
A tarefa profética da
Igreja inclui fornecer críticas construtivas e a “dessacralização” de
políticos que afirmam ser salvadores. A Igreja é chamada a nos lembrar
constantemente de que eles são apenas seres humanos com suas forças e
fraquezas.
Alguns radicais pró-vida
ignoram que criminalizar o aborto não é a única forma, nem a mais apropriada,
de proteger a vida nascitura.
Por exemplo, o
endurecimento da lei atual sobre o aborto na Polônia provavelmente levará ao
turismo de aborto de mulheres polonesas para países vizinhos, assim como a
abortos domésticos perigosos.
A legislação existente na
maioria dos países europeus não força ninguém a fazer um aborto.
A coragem dos pais que se
dispõem a aceitar um feto com graves problemas de saúde e a cuidar permanentemente
de um filho com graves deficiências representa um admirável ato de bravura
moral.
No entanto, ninguém pode ser
forçado à bravura, especialmente não pelos moralizadores que “amarram
pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão
dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo” (cf. Mt 23,4).
Os defensores da vida nascitura devem se concentrar mais na assistência prática a mães solteiras e a famílias com crianças com deficiências graves.
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PAPA FRANCISCO entre cardeais, no Vaticano |
Os
corretores do papa e os “defensores do homem heterossexual branco”
Os adversários do Papa Francisco que lhe enviam “correções filiais” claramente não são terroristas nem fanáticos religiosos.
Frequentemente, eles estão
entre os cristãos verdadeiramente “bons e justos” que têm preocupações genuínas
sobre a identidade da fé católica interpretada como um sistema a-histórico
imutável de declarações doutrinárias.
Esse sistema é perfeitamente coerente em si mesmo, mas desmorona como um castelo de cartas quando exposto à realidade da vida. Essas pessoas aderem ao tipo de religião legalista à qual Jesus se opôs durante toda a sua vida.
Os grupos guerrilheiros
fascistas que buscam “defender o homem heterossexual branco”, inspirados na
tradição da Ku Klux Klan, costumavam se concentrar em ataques contra negros,
judeus e católicos.
Hoje, esses grupos
fomentam o ódio especialmente contra gays e migrantes. Sua ideologia se baseia na xenofobia, o medo da
diferença cultural. Eles gostam de se ver como os defensores do “Ocidente
cristão”.
Até agora, a atividade deles
permaneceu, em geral, no nível de agressividade verbal (principalmente nas
redes sociais digitais, mas também em comícios de fanáticos).
No entanto, esses grupos
guerrilheiros facilmente poderiam recorrer a atos de violência e a atividades
terroristas à la extremismo islâmico, com quem eles compartilham vários traços
psicológicos semelhantes.
A presença deles é bastante tragicômica nos países pós-comunistas, incluindo a República Tcheca, onde o “homem heterossexual branco” está ameaçado, acima de tudo, como observou um jornalista tcheco, pela obesidade.
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JAROSŁAW KACZYŃSKI - Primeiro Ministro da Polônia entre 2006 e 2007 |
Sonhos
de uma nação católica autoritária
A tentativa de Jarosław Kaczyński de transformar a Polônia em um Estado católico autoritário é um exemplo perigoso de uma aliança entre religião e política que contribui para a secularização radical da sociedade polonesa e leva o cristianismo ao descrédito aos olhos dos jovens e das pessoas instruídas.
Empregando a ficção de um
“tsunami de homossexualismo que é pior do que o comunismo” para assombrar as
pessoas, alguns bispos acabaram criando esse “demônio”, soprando a
energia do medo deles sobre ele e liberando-o na sociedade.
Criar
demônios em vez de fomentar o diálogo e o entendimento é sempre perigoso.
Os esforços para formar
uma “aliança de bispos conservadores de países do Visegrado” – Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia –,
convocada por Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump (provavelmente ainda
cumprindo pena na prisão por fraude), desacreditariam a Igreja nessa região,
substituindo o cristianismo por uma ideologia política de extrema direita.
Eles tentam se aproveitar da
afinidade de certos católicos com regimes autoritários (como o Estado eslovaco
durante a Segunda Guerra Mundial ou a Espanha franquista e muitos outros). Historicamente,
a Igreja sempre pagou caro por tal afetação.
A Igreja polonesa agora
tem que enfrentar uma onda de escândalos
que estão sendo revelados e a reação à política de Kaczyński. Embora essa onda
possa ser catártica, ela é e será agonizante, mesmo assim. No fundo, há a
necessidade de “divorciar” o catolicismo do nacionalismo.
Essa aliança tem profundas
raízes históricas e, sem dúvida, ajudou a manter a identidade nacional polonesa
no passado.
Com uma mudança de paradigma civilizacional em curso, no entanto, é necessário que a vitalidade do cristianismo polonês hoje vá além dos “ícones de polonesidade” e redescubra o Evangelho e a fé libertada do nacionalismo e do clientelismo político.
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Tradução: à esquerda - "Seus fanáticos religiosos"; à direita - "Nossos fanáticos religiosos" |
As
notórias palavras que começam com “F”: a pseudo-religião fundamentalista e
fanática
Eu sugiro que todos esses fenômenos mencionados acima podem ser subsumidos sob a categoria a que me refiro como “pseudo-religião que começa com ‘F’” (com um “F” de fundamentalismo e fanatismo).
Apesar de todas as
diferenças, esses grupos compartilham uma mentalidade semelhante, caracterizada
pelo uso seletivo da retórica religiosa.
É uma retórica que
contradiz o cerne ético dessas religiões,
que tem aversão a uma abordagem histórica e hermenêutica da religião, que promove:
* a intolerância (um sentimento de “posse de
toda a verdade”),
* que funde a religião com interesses de poder
de certos círculos políticos, e assim por diante.
Uma abordagem seletiva das
fontes religiosas e a “exculturação da religião” (a perda de um contexto
original) transformam esse fenômeno em uma “religião civil” secular e
política. Embora o conteúdo seja secundário, a carga emocional
representa o ponto final de conexão.
Devo enfatizar que a
“pseudo-religião que começa com ‘F’” é uma construção teórica semelhante às
quatro categorias de “tipos ideais” de Max Weber. Seu objetivo é ajudar a
encontrar características comuns de fenômenos aparentemente incomensuráveis
para mais bem compreendê-los.
Isso não significa que todas as características individuais podem ser encontradas em todos os fenômenos, ou que as características estão representadas na mesma intensidade. Eu ofereço essa sugestão como uma hipótese.
As
sementes da «pseudo-religião que começa com “F”»
O fenômeno da
“pseudo-religião que começa com ‘F’” deve ser exposto à pesquisa empírica
psicológica, sociológica, teológica e histórico-cultural que levem seriamente
em consideração as suas causas e efeitos.
A “pseudo-religião que
começa com ‘F’” parasita as religiões, bloqueando seu potencial ético e
desenvolvendo o potencial letal que
jaz no “lado sombrio da religião”, preservado nos resquícios do abuso da
religião pelos poderosos do passado.
Precisamos analisar quais
tipos de religiosidade são particularmente propensos a tal abuso e onde
procurar o potencial de “imunidade moral” dentro das tradições religiosas
para combater esses tipos patológicos.
Por exemplo, um impacto até agora muito fraco dos métodos histórico-críticos em relação às escrituras sagradas na teologia islâmica torna o Islã mais facilmente utilizável pela “pseudo-religião que começa com ‘F’”. Um argumento semelhante pode ser defendido em relação ao fundamentalismo cristão.
Obviamente, para que o fundamentalismo se transforme em fanatismo, e para que o fanatismo se transforme em terrorismo, são necessárias diversas circunstâncias sociais.
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PAPA FRANCISCO assinando sua nova encíclica "Fratelli Tutti", na Basílica Inferior de Assis, diante do túmulo de São Francisco, em 3 de outubro de 2020 |
O
Evangelho, a Fratelli tutti e outros meios para combater a «pseudo-religião
que começa com “F”»
Diante de uma aliança de fenômenos sob a égide da “pseudo-religião que começa com ‘F’”, é inevitável fortalecer uma aliança de pessoas de vários pontos de vista e crenças – aquelas que procuram oferecer uma alternativa positiva da religião como uma escola para superar o egoísmo, cultivar os instintos (especialmente o instinto agressivo), derrotar o medo e alimentar a solidariedade, a justiça e a convivência pacífica.
A encíclica Fratelli tutti do
Papa Francisco traz importantes impulsos nesse sentido.
Os teólogos cristãos estão
diante da tarefa de pensar sobre uma teologia e uma espiritualidade para essa
“oikumene mais ampla” (ou, para usar as palavras da Fratelli tutti, uma “nova
fraternidade”).
Nos países onde a
“pseudo-religião que começa com ‘F’” já se enraizou nas estruturas eclesiais
tradicionais e sobre os quais paira uma profunda crise de confiança na Igreja,...
... é
necessário voltar às raízes do Evangelho, iniciando verdadeiramente uma “nova
evangelização”.
Em países fortemente
secularizados como a República Tcheca, parece que a Igreja não tem nada a
perder.
De fato, porém, é preciso se dissociar claramente das expressões da “pseudo-religião que começa com ‘F’” que afastam da Igreja o público que pensa criticamente e que, simultaneamente, atraem e fascinam as pessoas que anseiam por respostas simples a questões complicadas e por “certezas inabaláveis”.
Formas
alternativas de viver a fé cristã de modo inteligente e inteligível
É necessário destacar exemplos alternativos de grupos cristãos que:
* buscam genuinamente uma interpretação inteligente e
inteligível da fé cristã,
* fomentam a vida espiritual pessoal (por meio de uma
abordagem contemplativa da realidade),
* buscam uma participação ativa dos cristãos na
sociedade civil e em iniciativas culturais, educacionais e ecológicas, e
* se engajam no fortalecimento do ecumenismo e do
diálogo inter-religioso e intercultural.
Os cristãos não deveriam estar ausentes entre aqueles que defendem
a imunidade social contra o populismo, as fake news e as teorias
da conspiração (infelizmente, muitas vezes são os adeptos da «pseudo-religião
que começa com “F”» os defensores mais zelosos dessa patologia social).
Graças a Deus, existem comunidades
ecumênicas abertas na República Tcheca e em outros lugares ao redor do
mundo que podem se tornar uma fonte de esperança, mesmo que as instituições
estabelecidas da Igreja – como o sistema de administração paroquial – entrem em
colapso.
O que
será decisivo é a abertura e a educação de quem tem responsabilidade oficial na
Igreja e a iniciativa e a responsabilidade dos “leigos”.
Para buscar respostas
adequadas aos “sinais dos tempos”, precisamos de uma discussão completamente
livre e aberta nas nossas Igrejas. Um exemplo dessa discussão é o “Caminho
Sinodal” na Igreja Católica da Alemanha.
Devemos nos dar conta de que o
que está acontecendo no ambiente cristão afeta significativamente a vida da
sociedade como um todo, pois os cristãos representam uma parte insubstituível
dela, independentemente da representação percentual.
Hoje, estamos em uma encruzilhada.
Traduzido do inglês por Moisés Sbardelotto.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 20 de novembro de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 21/11/2020).
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