O papel da tristeza na vida
Quem avisa o presidente?
Daniel Martins de Barros
Psiquiatra
Pode
não parecer, mas existe uma ligação íntima entre tristeza, raiva e desistência
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DANIEL MARTINS DE BARROS |
É difícil para uma criança entender que é possível ficar triste e não chorar – nessa idade, uma coisa leva a outra quase automaticamente. Então, o certo deve ser nem ficar triste. Para não parecer fraco.
Precisamos parar com essa
distorção. Tal exercício contínuo de
negação dos sentimentos leva a uma baixa capacidade de discerni-los, afetando o
bem-estar e aumentando o risco de depressão.
De
tanto querermos que os homens não fiquem tristes, eles acabam se tornando
infelizes, veja só.
Além do que, tais ensinamentos criam um ambiente de negação da tristeza que estimula a raiva e a agressividade como únicos recursos para expressar as emoções negativas.
Já o famigerado “desistir não é uma opção” é fruto de uma cultura que idolatra uma certa ideia de sucesso, valorizando apenas o que considera vitória. Enquanto não comprar a casa, ganhar a promoção, juntar um milhão, casar, ter filhos, o que for, a pessoa não acha que teve sucesso.
E, cega por seu ídolo, não desiste até alcançar aquilo, mesmo que tenha de sacrificar tudo mais pelo caminho: amizades, relacionamentos, saúde, sanidade. Evidentemente, desistir tem de ser uma opção. Há tantas e tão graves situações em que o melhor a fazer seria mesmo desistir. Quanto sofrimento não seria evitado.
À primeira vista, pode não parecer, mas existe uma ligação íntima entre tristeza, raiva e desistência. No reino animal, a raiva é a emoção que motiva as disputas, seja por território, comida, reprodução.
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Foto: REUTERS/Dinuka Liyanawatte |
Um bicho rosna para o outro, mostra os dentes, faz cara de bravo, cada um tentando intimidar mais o seu adversário. E muitas dessas disputas terminam sem luta: se um dos animais consegue se mostrar realmente imbatível, o outro desiste da briga e abaixa a cabeça, assume uma postura encurvada, com uma queda brusca em sua energia que o ajuda a evitar entrar numa luta perdida.
Algo muito semelhante à
tristeza que sentimos quando perdemos definitivamente algo e acabamos
cabisbaixos, sem força, acusando a derrota.
A RAIVA
fica numa ponta, tentando fazer o outro desistir, enquanto a TRISTEZA fica na
outra, nos ajudando a digerir essa perda.
Parece claro como pode ser tóxico um contexto em que a tristeza e a desistência não são permitidas. Ao contrário do que transmite essa visão superficial da vida interna humana, é preciso muito mais coragem para desistir do que para seguir numa luta perdida.
Olhar a situação de frente e dizer “É demais para mim”, retirar-se estrategicamente e preservar vida e sanidade requer muita fibra moral. Quem nunca viu pessoas acreditando terem ido longe demais para desistir, escolhendo avançar em direção à tragédia alegando não ter força para desistir?
Quando vemos alguém reagir com agressividade a situações adversas da vida, vale a pena ficarmos atentos. É alguém atravessando uma fase bastante difícil emocionalmente, mas sem recursos internos para o manejo das próprias emoções por acreditar que homem não chora.
Se, ainda por cima, a pessoa acreditar que desistir não é uma opção, pode se ver presa numa situação em que não gostaria de estar, mas não consegue sair. Ela nem deixa chegar à própria consciência a sensação de que aquela luta era mais do que poderia enfrentar. No entanto, a percepção de que aquilo não era para si escapa de vez em quando, seja em atos ou em palavras.
Sem saber muito bem por que o sujeito começa a se sabotar, criar situações embaraçosas para si mesmo, colocar-se em posições insustentáveis, tentando inconscientemente cruzar uma linha que ponha um fim naquele sofrimento. Devemos ficar atentos porque essa pessoa pode dar sinais de que está no limite com frases como “Estou a ponto de explodir”, “Não aguento mais”, ou “Minha vida é uma desgraça, é problema o tempo todo”. Quando ouvimos isso de alguém, é preciso avisar a pessoa que ela está colocando sua vida – e a das pessoas à sua volta – em risco.
Quem avisa o presidente?
Fonte: O Estado de S. Paulo – Saúde – Segunda-feira, 16 de novembro de 2020 – Pág. A12 – Internet: clique aqui (acesso em: 21/11/2020).
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