Somos bons ou ruins?
As raposas altruístas
Leandro Karnal
Historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor várias obras, entre as quais “O dilema do porco-espinho”
Leiam
para pensar melhor! A esperança está sempre em pensar.
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RAPOSA-PRATEADA |
Outro livro povoado de indicativos esperançosos é Humanidade - Uma História Otimista do Homem (Rutger Bregman, Crítica). O historiador holandês começa contestando um senso comum pessimista: a teoria do verniz. Somos civilizados porque estamos bem. Chegando a guerra, a fome ou a doença, somos selvagens egoístas. O “verniz” civilizacional é fino e pode ser quebrado sempre. A base do truísmo, inspirada em clássico como Thomas Hobbes, é sobre o caráter malévolo da nossa espécie.
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Livro publicado no Brasil em fevereiro de 2021, pela editora Crítica (Grupo Planeta) |
Com exemplos concretos, dos bombardeios de Londres na Segunda Guerra aos experimentos no campo da psicologia, o autor vai atacando a ideia de um homem ruim esperando chance de exercer sua força destrutiva. O mais curioso é o debate sobre o conhecido O Senhor das Moscas, de William Golding. A visão publicada na década de 1950 parece ser um eterno sucesso. Pegue um grupo de ordenados estudantes ingleses. Solte-os, sem autoridade, em uma ilha em situação de risco. Cai a máscara britânica e emerge o selvagem assassino. A obra ficcional deu origem a bons roteiros de cinema para exibir aquilo, afinal, que todos acreditamos: somos terríveis, no fundo, ou logo no raso mesmo. O autor ganhou Prêmio Nobel.
O livro Humanidade duvida da base real de O Senhor das Moscas. Depois de muita busca, Bregman encontrou um caso concreto: os náufragos de Tonga. Seis garotos de um internato católico saíram da ilha e acabaram naufragando próximos à deserta Ata. Enfrentaram sede, tempestades tropicais e uma perna quebrada. Custaram a conseguir fogo.
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Livro publicado no Brasil em março de 2014 pela editora Alfaguara |
Organizaram-se e sobreviveram com camaradagem e administrando
os poucos recursos do lugar. Viraram amigos para sempre após terem sido
resgatados, com excelente saúde, um ano depois.
Uma história de sucesso e de trabalho em grupo. Nunca fez o sucesso de O Senhor das Moscas. Por que adoramos ler uma ficção pessimista e rejeitamos estudar uma história real que mostra o fracasso da teoria do verniz? É uma pergunta a que o autor tenta responder.
Claro que o livro trata das grandes experiências de maldade, incluindo nossos campos de concentração do século 20. Há casos extremos de crueldade deliberada de indivíduos e de grupos. Bregman trata um a um. O caso que mais me interessou foi o de um experimento soviético. Dmitri Belyaev, zoólogo e geneticista, encontrou-se com a estudante Lyudmila Trut. Era na Moscou de 1958. A teoria da evolução era criticada pelo Estado naquela época. Parecia uma invenção ocidental capitalista. O professor tinha uma ideia para testar com a raposa-prateada, um animal nunca domesticado e sempre agressivo. Como uma espécie perfeitamente selvagem poderia originar “cachorrinhos” dóceis?
O experimento começou com os pesquisadores colocando as mãos protegidas por grossas luvas nas gaiolas dos animais. Se a raposa hesitasse um pouco antes de morder, era separada para reprodução. A maioria mordia imediatamente. Em quatro gerações de raposas um pouco mais “dóceis”, surgiram as primeiras ninhadas com filhotes que abanavam o rabo e ficavam felizes com a presença dos tratadores. Avançando gerações, as raposas passaram a ter comportamentos de cachorros domésticos e levavam um caráter juvenil por mais tempo: brincavam mesmo na vida adulta e atendiam por nomes.
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Livro publicado no Brasil em novembro de 2007, pela Companhia das Letras |
No congresso internacional de
geneticistas, em 1978, vinte anos de pesquisas com raposas-prateadas vieram ao
conhecimento geral. Mais tarde, as transformações físicas das raposas
amistosas foram ficando evidentes. Estudos posteriores, como o de Brian Hare, demonstraram a sobrevivência do mais
amigável na espécie humana, quase repetindo as raposas. Brian foi até a
fazenda das raposas que já estavam na geração 45. Fez testes e descobriu que
as raposas, selecionadas pela amistosidade, tinham desempenho superior no item
inteligência ao das mais ferozes. A docilidade estimulara muitas coisas no
cérebro das raposas. No estudo de Brian, o mesmo tinha ocorrido com os seres
humanos e ajudava a explicar a redução das várias espécies de Homo
que existiram.
As
mais violentas desapareceram, as mais sociáveis prosperaram.
Seria, a rigor, um experimento científico sobre a superioridade das pessoas negociadoras sobre as agressivas.
Meu objetivo hoje? Estimular
que você leia e chegue a suas próprias conclusões. Que analise cada
argumento e pense sobre nossos vernizes ou constituições
anteriores.
Seríamos
bons ou ruins por natureza?
Devemos seguir os argumentos
duros de Richard Dawkins (O Gene Egoísta,
Companhia das Letras) ou as reflexões de Rutger Bregman. Eu só tenho uma
certeza:
... ler obras variadas, contrapor argumentos e pensar
de forma autônoma não me torna uma pessoa boa ou ruim, porém, com certeza,
mais capaz de argumentar.
Então, para todos os humanos, bons e ruins, segue minha recomendação: leiam para pensar melhor! A esperança está sempre em pensar.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Cultura / Colunista – Quarta-feira, 19 de maio de 2021 – Pág. H6 – Internet: clique aqui (acesso em: 19/05/2021).
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