«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

LOUCURA DOCUMENTADA - POR QUE SE MATA?

Entrevista com Debora Diniz

Mônica Manir

Censo em manicômios realizado por antropóloga 
sugere que loucos cometem menos crimes que indivíduos tidos como sãos
Debora Diniz - antropóloga

Eduardo Coutinho não gostava da palavra "entrevista". Preferia "conversa", na qual ninguém é senhor das perguntas, ninguém é senhor das respostas. Numa conversa com a crítica equatoriana María Campaña Ramia, em 2012, ele explicou o macete para as pessoas se soltarem diante de sua câmera: "Estou ali para escutar, não para julgar". Apagou um cigarro pela metade, acendeu outro na sequência, continuou: "Conforme envelheço, mais fácil fica. Sou pai, sou avô, então dá para confiar em mim".

Quando resolveu filmar A Casa dos Mortos, em 2008, a antropóloga Debora Diniz se valeu de espírito semelhante: escutar, não julgar. Ela entrava no Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) de Salvador acompanhada pelos versos de Bubu, poeta que contava até então 12 internações em manicômios judiciários. O narrador questionava o sentido dos hospitais-presídios, "instituições híbridas que sentenciam a loucura à prisão perpétua".

O assassinato de Coutinho pelo filho Daniel chamou Debora para esta conversa com o Aliás. Primeiro porque o filho foi rapidamente dado como esquizofrênico, e Debora busca explicar os mecanismos que levaram a esquizofrenia a virar sinônimo de loucura. 

Segundo porque, a partir de A Casa dos Mortos, a antropóloga organizou um censo dos infratores manicomiais. Ali cruzou com patricidas, matricidas, infanticidas. "Homens matam mais os pais, mulheres matam mais os filhos." Terceiro porque quer aumentar o debate sobre a lógica interna classificatória de presídios, delegacias e manicômios. A métrica é a do perigo, diz ela, uma lógica que se traduz por políticas de controle e punição. "No entanto, as evidências sugerem que os loucos cometem menos crimes que indivíduos considerados sãos." Na decupagem desse roteiro, não há pureza nem perfeição – as únicas coisas, aliás, que revoltavam Coutinho. "A pureza e a perfeição são fascistas", sentenciou o cineasta. "Então meus filmes são pela vida, porque a vida será sempre imperfeita. A perfeição é a morte. Acabou."

Ainda não se confirmou se Daniel, filho de Eduardo Coutinho, sofre de esquizofrenia. De qualquer forma, foi a primeira hipótese levantada pelas notícias e mesmo pelos colegas do cineasta quando se soube do assassinato. A que você atribui essa associação imediata esquizofrenia/crime familiar?
Debora Diniz - É possível atribuir essa associação a três processos sociais. A esquizofrenia saiu dos consultórios e dos livros de psiquiatria para o vocabulário popular como se fosse genericamente "loucura". Um louco é agora um esquizofrênico, e houve uma medicalização da desrazão como se toda ela fosse uma expressão da esquizofrenia. Sim, toda esquizofrenia é uma forma de loucura, mas a loucura que habita os manicômios judiciários, por exemplo, se expressa por diversas classificações – transtorno afetivo uni e bipolar, transtorno de personalidade, transtornos mentais orgânicos, epilepsia, retardo mental, etc. A outra explicação é a sua prevalência populacional. Nos manicômios, é a forma de alienação mais comum. O terceiro motivo é a sua performance clara nas interações sociais – o sujeito fala sozinho, ouve vozes ou mesmo delira. Ele se apresenta como o personagem alienado da vida.
Como definiria a loucura hoje?
Debora Diniz - Loucura é uma construção histórica – antes mesmo que uma categoria médica. A forma como a classificamos e tratamos tem mudado rapidamente. Ao reconhecer o caráter histórico e político da loucura, não digo que Daniel não estivesse em delírio, em desorganização ou, psicanaliticamente falando, em sofrimento mental. E tendo a crer que ele não mente quando diz que pensava em salvar os pais. Queria se matar, mas atacou os pais antes, para livrá-los do desamparo diante da morte iminente do filho. Os julgamentos sobre verdade e mentira não se aplicam à desrazão. O que ele fez, naquele momento, não era um ato abominável de patricídio e matricídio, era um ato salvador. Claro que delirante, mas por isso mesmo não é possível compreender seu gesto seguindo nosso sentido tradicional de justiça ou de julgamento moral. Mas a loucura impõe um imenso sofrimento e solidão ao indivíduo. Ao contrário do que se possa imaginar, a loucura não é libertadora. Ela aprisiona o indivíduo ao incontrolável.
Eduardo Coutinho - cineasta assassinado

Você organizou um censo da população nos manicômios judiciários brasileiros. Quantos dos infratores assassinaram os pais?
Debora Diniz - Primeiro é preciso ter clareza que loucura e crime não andam juntos. Menos ainda loucura e violência. Não temos estudos sobre comportamentos desviantes ou atos violentos que comparem sistematicamente indivíduos em estado de alienação mental com indivíduos em estado razoável. No entanto, as evidências sugerem que os loucos cometem menos crimes que indivíduos considerados sãos. Mas há, sim, sujeitos que mataram pais e mães nos manicômios judiciários. O censo de 2011 localizou 158 indivíduos que mataram um dos pais ou, mais raramente, ambos. Isso correspondia a cerca de 5% da população total dos manicômios judiciários do Brasil, que era de 2.839 em medida de segurança.
E quem pratica mais esses crimes: homens ou mulheres?
Debora Diniz - Os homens matam preferencialmente os pais, e as mulheres, os filhos. Você pode me dizer que há casos de homens que matam os filhos e estão em presídios comuns. Sim, porque nem todos os casos são movidos pela loucura. Alguns crimes apresentam razões, mesmo que infames. Por outro lado, é possível que alguns sujeitos alienados estejam em presídios comuns. Sabemos muito pouco sobre como ocorre essa classificação prévia. Olhar os manuais de direito penal ou de psiquiatria forense nos diz quase nada sobre a lógica interna classificatória de presídios, delegacias e manicômios.
Há explicação para os homens matarem mais os pais?
Debora Diniz - Pelos dados que coletamos não tenho como explicar essa diferença de gênero, apenas ensaiar hipóteses. Os homens em intenso sofrimento mental se mantêm como filhos, talvez por isso o pai e a mãe sejam suas vítimas principais. As mulheres têm na gravidez e no parto um momento crítico para os surtos quando já vêm de um histórico de sofrimento mental com pouca assistência. No momento, pesquiso os arquivos de todas as mulheres que mataram os filhos e que se encontravam internadas em manicômios judiciários em 2011 – elas são 21. Mas repito: o homicídio é um crime raro e único. A recidiva para o homicida, isto é, o indivíduo que matou, é internado em um manicômio e depois comete outro homicídio, é de 1% entre a população total internada. O homicídio é um crime terrível, porém, em geral, é um evento único na história do sujeito.
A família é sempre o cenário desses crimes...
Debora Diniz - Porque o louco é confinado à casa. As paredes da casa se tornam, tristemente, os limites do mundo, e as pessoas que ali habitam são a população desse mundo. A família passa a ser quem cuida, mas também quem proíbe ou oprime. Não que a família de Daniel fosse melhor ou pior que as outras – não sabemos como cuidar dos loucos, e todas as tentativas tendem a ser frágeis. Vivemos em uma ordem social com pouco espaço para a dependência e a perturbação. Queremos sujeitos independentes, livres, autônomos. Potencialmente, o louco é alguém incômodo e que reluta em aceitar sua condição. As famílias se cansam. Elas envelhecem e também precisam ser cuidadas. Precisam do Estado, das políticas de saúde, dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Li uma frase de um dos produtores de Eduardo Coutinho que me emocionou: "Devemos ter compaixão, porque ele (Daniel) terá uma vida difícil. Espero que ele sobreviva. Não vamos desejar o mal, porque acho que Coutinho teria o desejo de ver esse filho amado curado". Sim, Daniel era um filho, ele tem uma mãe que luta para sobreviver, tem um irmão que ficou órfão e, quem sabe, será o cuidador do assassino do pai. Compaixão é um sentimento digno de ser lembrado para os humanos, mesmo aquele que a desrazão transformou em infrator.
Qual a idade média dos infratores e das vítimas?
Debora Diniz - Não sei a idade média das vítimas, há muito pouco sobre elas nos dossiês de cada paciente. Mas os loucos infratores nos manicômios judiciários têm em média 39 anos, são na maioria pretos ou pardos, apresentam baixa escolaridade e estão fora do mundo do trabalho.
Quão determinante é a falta de tratamento nesses casos de infração?
Debora Diniz - Nos casos de infanticídio – ou mais propriamente de assassinato dos filhos pela mãe, que hoje analiso –, todas estavam sem tratamento adequado ou sem tratamento algum. Só foram ouvidas quando cometeram um dos crimes mais nefandos da existência. O patricídio, o matricídio ou o infanticídio são expressões do horror. As imagens dos dossiês são insuportáveis. Mas estou segura de que isso só aconteceu porque fomos incapazes de cuidar de quem cometeu esse ato terrível. Veja que falo "nós" aqui – jamais reduziria esse a um dever familiar. São políticas de saúde, redes de assistência e sociabilidade para o louco. Não é uma discussão para perdão ou prisão, mas para novas formas de cuidar da saúde mental para que o sujeito em sofrimento não chegue a se transformar nesse ser sem lugar.
O paciente consegue seguir o tratamento, se acha que está ‘normal’?
Debora Diniz - Essa é a principal dificuldade – a adesão ao tratamento. O sujeito precisa ser permanentemente acompanhado. Não é fácil manter a base de medicamentos e muitos dos remédios são pesados, com importantes efeitos para o bem-estar. Além disso, a identificação social como um sujeito louco não é simples. Abandonar os medicamentos pode ser tanto um sinal de descuido como um ato solitário de resistência. Em ambas as situações é um caminho destrutivo para a sobrevivência.
O censo dos manicômios expõe que a maior parte desses indivíduos deveria estar legalmente livre. Por que não está?
Debora Diniz - Porque o sistema não foi feito para cuidar dessas pessoas, mas para segregá-las. Acredite: para um sujeito como o Daniel, é muito pior ir para um manicômio judiciário que para um presídio. No presídio, há penas que limitam a permanência; no manicômio, o que há são medidas de segurança que podem ser por tempo indeterminado. As garantias de direitos e proteções devidas a essa população não funcionam. Eis alguns números escandalosos: 41% dos exames de cessação de periculosidade estão em atraso; o tempo médio de permanência à espera de um laudo psiquiátrico é de dez meses (o artigo 150, § 1o do Código de Processo Penal determina 45 dias) e o de espera para o exame de cessação de periculosidade é de 32 meses; 7% dos indivíduos têm sentença de desinternação e se mantêm em regime de internação. A métrica é a do perigo, mas não precisamos ter medo do louco. O medo se traduz por políticas de controle e punição. Não há diagnósticos psiquiátricos que determinem a periculosidade de um sujeito – o censo nos mostrou que todos os sujeitos, com diferentes singularidades psíquicas e classificações psiquiátricas, cometiam as mesmas infrações. Ser esquizofrênico não é ser perigoso. Precisamos desafiar o pouco lugar no mundo que destinamos a eles.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 9 de fevereiro de 2014 - Pg. E2 - Internet: clique aqui.

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