“A democracia é sempre vulnerável a autocratas eleitos”

 Rodrigo Turrer

Entrevista com Steven Levitsky

Professor de Ciência Política em Harvard (EUA) e coautor de “Como as democracias morrem” 

Como líderes autoritários podem solapar instituições democráticas, como é possível perceber esse processo e o que fazar para evitá-lo

STEVEN LEVITSKY

Como líderes autoritários eleitos solapam a democracia?

Steven Levitsky: Às vezes eles fazem de maneira devagar e sutil, então muitos cidadãos sequer percebem o que está acontecendo. A primeira regra de qualquer autocrata ou pretendente de autocrata é regular o Judiciário. Ele tenta desmerecer as regulações da Suprema Corte e em seguida controlá-la, usando maioria no Congresso para que a lei fique em suas mãos e ele possa usar isso como uma arma contra seus adversários ou um escudo contra possíveis acusações. Vimos isso na Turquia, na Rússia, na Hungria, na Venezuela. É assim que começa.

[No Brasil, os bolsominions defendem o fechamento do Supremo Tribunal Federal]

Outra maneira comum de começar esse processo é usar referendos para minar outras instituições democráticas. Então usa-se o referendo para:

* alterar a Constituição,

* mudar o Congresso,

* estabelecer uma nova composição no Judiciário,

* minar a oposição.

Uma vez que a Suprema Corte esteja na mão do autocrata, ele vai usá-la para punir e enfraquecer a oposição. Estamos vendo isso começar em El Salvador. Estamos vendo esse processo bem estabelecido na Nicarágua. E foram todos líderes eleitos, em democracias até então saudáveis.

Quando é possível perceber que esse processo começou?

Levitsky: Às vezes é bem óbvio. Alberto Fujimori fechou o Congresso. Hugo Chávez convocou um referendo para alterar a Constituição. Mas em outros lugares é preciso atentar para a maneira como o presidente trata as instituições democráticas que deveriam salvaguardar a democracia, sejam autoridades eleitas, sejam cortes, tribunais constitucionais, ou agências independentes que tem por obrigação fiscalizar e monitorar o funcionamento do governo.

Quando você percebe que um líder está começando a aparelhar essas agências, está desacreditando seu funcionamento, reduzindo sua independência, ou cortando o financiamento para ela, como está acontecendo em El Salvador neste momento, é um sinal. Às vezes é apenas populismo, uma maneira do líder acenar para as bases, mas em geral é um sinal preocupante do começo de um assalto à democracia.

Então é preciso reforçar o funcionamento das instituições democráticas.

Em países em que agências não são tão independentes e o sistema político tem propensão maior à corrupção por haver menos salvaguardas, o que se pode fazer para evitar a erosão democrática?

Levitsky: É mais difícil. Onde agências reguladoras e mecanismos fiscalizatórios têm independência, caso de Chile, Argentina, Uruguai, Brasil e México, é mais fácil deter os arroubos autoritários de um presidente. No Brasil, por exemplo, apesar do pendor autoritário de Bolsonaro, ele não tem sido capaz de controlar o Judiciário, que é muito independente. Em países em que isso não acontece, caso de El Salvador, é basicamente a comunidade internacional ou a própria política local. No Peru, por exemplo, a política é tão fragmentada que ninguém consegue ser forte o suficiente para impor sua vontade como acontece com Bukele em El Salvador ou Chávez na Venezuela.

Nos últimos 20 anos os líderes eleitos no Peru, por mais corruptos e mais ricos que fossem, eram tão fracos politicamente que nunca tiveram controle do Congresso, nunca foram populares o suficiente para convocar um referendo ou mudar a Constituição e impor sua vontade. Neste caso, foi a fragmentação política que preservou o jogo democrático. Mas a única maneira concreta de preservar e salvaguardar a democracia é que seus atores sejam fortes o suficiente e as instituições independentes para fiscalizar e monitorar o líder eleito. 

Como proteger a democracia de líderes eleitos que não respeitam o sistema democrático?

Levitsky: Em todo o mundo, as democracias estabelecidas enfrentam um processo de “erosão”: estão muito menos estáveis ​​e ainda menos democráticas do que décadas atrás. Nenhuma democracia é inquebrantável, e a maior ameaça à democracia é acreditar que ela é permanente e não precisa ser defendida. A democracia sempre é vulnerável à eleição de líderes autoritários. Seja ele Getúlio Vargas, Juan Perón, Hugo Chávez, Donald Trump, Jair Bolsonaro, ou Bukeke.

Quando as pessoas estão insatisfeitas, ou com raiva do sistema, elas reagem e elegem líderes populistas que prometem mudar o sistema.

Então, a primeira regra para proteger a democracia é ter certeza que alguém assim não seja eleito. O partido político, que é uma instituição democrática, precisa impedir que em seus quadros haja alguém com inclinação autoritária e não seja dominado por um populista - o que, na minha opinião, foi o maior erro do Partido Republicano quando Trump participou das primárias. Em seguida, a elite econômica tem que barrar ou deixar de financiar partidos ou candidatos que tenham pendores autoritários, porque se aliar a candidatos que não apoiam a democracia é um erro. A segunda regra é garantir que as instituições democráticas sejam funcionais e preservadas desses que querem agarrar o poder. Mas não existe uma fórmula fechada ou perfeita para prevenir ataques autoritários, porque a democracia é sempre vulnerável. 

AUTORITÁRIOS DE HOJE: da esquerda para a direita, temos: Donald Trump (ex-presidente dos Estados Unidos), Vladimir Putin (Rússia), Jair Bolsonaro (presidente do Brasil), Xi Jinping (presidente da China) e Recep Tayyip Erdogan (presidente da Turquia)

Temos visto muitos líderes internacionais levantando a bandeira de fraude eleitoral: Donald Trump, Netanyahu, Keiko Fujimori. Quais os efeitos de longo prazo dessas alegações?

Levitsky: É terrível. É o pior cenário para uma democracia. A história, ainda, vai avaliar os efeitos desse processo, mas o exemplo que Trump iniciou e que tem sido copiado por outros líderes derrotados é um comportamento muito perigoso. Primeiro, porque é um ataque direto à credibilidade do sistema eleitoral, e mina a legitimidade de todo o processo, que está no coração da democracia. As instituições eleitorais nos Estados Unidos funcionam. As instituições eleitorais no Peru funcionam. São confiáveis, independentes e têm reconhecimento internacional. Mas os candidatos perdedores saem alardeando que a eleição foi fraudada sem nenhuma evidência, particularmente por causa do papel das mídias sociais. Esses candidatos tem uma base de apoio forte, e estão jogando para sua base de apoio, que passa a ter sua própria interpretação dos fatos, sua ‘verdade pessoal’. Então, 30% a 40% de um país compra imediatamente essa versão de fraude sem nenhuma evidência, e passa a acreditar que o sistema foi fraudado, que foi roubado. 

É aí que a legitimidade de todo o sistema eleitoral começa a ruir e a erosão democrática se consolida. Foi o que o Partido Republicano permitiu que Trump fizesse, que Keiko Fujimori fez. Esse é um passo gigante para erodir uma democracia: quando um candidato majoritário rasga as regras do jogo democrático e não aceita o resultado de uma eleição legítima.

A democracia só funciona quando o perdedor aceita o resultado de uma eleição. Essa talvez seja a primeira regra do jogo democrático.

E quando ela não é seguida, a democracia se torna muito mais vulnerável. É neste ponto que estamos nos Estados Unidos, é assim que a situação está no Peru, e infelizmente, outros países vão ver cenas parecidas em suas eleições. 

Depois que a democracia está erodida, como reconstruí-la?

Levitsky: É sempre possível, mas é difícil. A Rússia, por exemplo, nunca foi uma democracia de fato, ela sempre esteve dominada por líderes autoritários e Putin sempre exerceu controle sobre o processo eleitoral, sobre as instituições e sobre a oposição. Mas em países em que existe uma tradição democrática, caso do Chile, Argentina, Brasil, com histórico eleitoral e de respeito às regras democráticas, as instituições democráticas estão arraigadas e têm mais capacidade de se manter independentes. A sociedade civil teria mais dificuldade em aceitar o fim do jogo democrático. 

Mas existem democracias muito instáveis, caso do Equador e da Bolívia. Nesses países, líderes autoritários tentaram dominar todo o sistema eleitoral, como Rafael Corrêa e Evo Morales, mas não perduraram. A democracia foi brevemente sufocada sob seus mandatos, mas a sociedade civil e as instituições reagiram e conseguiram virar o jogo. Mesmo em democracias estabelecidas, como é o caso dos Estados Unidos, existe a chance de uma séria crise eleitoral, e eu acredito que teremos uma em 2024, com alegações de fraude e de roubo. Mas as chances de o processo retornar aos trilhos aumentam se você tiver partidos políticos fortes, uma oposição democrática, agências que fiscalizem o processo eleitoral, um Judiciário independente e uma sociedade civil engajada. Com isso é possível trazer a democracia de volta. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional / Democracia em Erosão – Domingo, 27 de junho de 2021 – Pág. A12 – Internet: clique aqui (acesso em: 01/07/2021).

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