Refletindo sobre o cristianismo (1ª Parte)
O cristianismo entre o templo e as veredas da história
Flavio Lazzarin
Padre
italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e
agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
“Settimana News” – 17-06-2021
A
tensão entre CARISMA e INSTITUIÇÃO se reproduz na história. Antes dos eventos
destes últimos anos, ainda não tinha percebido quão afiada é a espada da
Palavra e como ela divide mesmo onde pensávamos haver unanimidade em defesa da
vida
* quem se preocupa com o
Evangelho e
* quem vive com medo de perder
sua identidade católica,...
... reler e reinterpretar o capítulo nono da Dei Verbum [Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II] pode ser uma iniciativa autocrítica terapêutica.
O que se discute é a relação entre Tradição e Escritura, unidas na mesma matriz espiritual e “aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência”. Em jogo, relendo com léxico latino-americano, está a tensão ainda atual entre cristãos do Templo e cristãos do Caminho.
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JOSEPH RATZINGER e YVES CONGAR dois teólogos que se destacaram no antes e pós Concílio Vaticano II (1962-1965) |
Tradição nas tradições
Em primeiro lugar, é necessário sintetizar o que todas as teologias - incluindo o Magistério - nos dizem sobre a tradição. Existe uma Tradição com T maiúsculo, imutável e irreformável - que pode, no entanto, crescer pela hermenêutica e exegese - e a tradição-tradições com t minúsculo, fruto de contextos históricos que as sugeriram e que podem e, às vezes, devem ser modificadas e descartadas por fidelidade ao Evangelho.
O próprio Joseph Ratzinger [Papa Bento XVI], em um artigo juvenil, chegava a afirmar que a única Tradição com T maiúsculo é a pessoa de Jesus e a sua Palavra. E esta é uma interpretação que continua sendo católica, distante do princípio protestante, considerado herético e perigoso, da sola Scriptura.
Não se pode ignorar que foram as Igrejas que definiram o cânone, ou melhor, os cânones da Bíblia, em processos longos, diversos e complicados.
Considerando o que aconteceu na Igreja Católica, podemos afirmar que a primeira Tradição indiscutível é a decisão inspirada da Igreja a respeito da canonicidade dos livros inspirados da Bíblia. Essa transmissão dos livros canônicos mostra-nos a estreita relação entre a palavra de Deus e a Palavra Apostólica, mas a definição dessa inegável interpenetração não deve postular uma identificação – “de alguma forma formam um todo e tendem para o mesmo fim” - eliminando qualquer hierarquia entre os dois eventos.
Talvez os teólogos poderiam considerar esta interpretação
como uma simplificação redutiva, mas certamente a relação Escritura-Tradição
não pode ignorar a prioridade da Palavra de Deus como norma normans
[= a regra que rege] e, em segundo plano, a Tradição como norma
normata [= norma que é regida].
Nesse sentido, somente Jesus e sua Palavra relida e
interiorizada, em vínculo permanente com a vida e a história, orientam a práxis
evangélica dos seguidores.
A prioridade traída da Palavra
Tudo seria mais simples se bastasse esta afirmação da
prioridade normativa da Palavra em relação à Tradição. De fato,
não podemos ignorar que esta dialética entre Evangelho e Tradição está
amplamente presente no Novo Testamento, a ponto de se estabelecer como norma
normans da complexa fidelidade à comunhão eclesial.
Pode servir como exemplo a tensão, presente na
comunidade de Roma, já nos anos 65-70, entre o radicalismo perigoso dos
mártires e a “prudência” dos defensores do cristianismo como religio
licita [= religião lícita, religião permitida e apoiada pelo Império Romano],
que encontramos descrita no Evangelho de Marcos (Mc 3,21). Nesse versículo,
Jesus é chamado de louco por seus parentes. E isso acontece muito antes do
pacifismo de Clemente Romano, nos anos 90, e antecipa a aliança definitiva
da Igreja com os imperadores Constantino e Teodósio, no século IV.
Encontramos no epistolário paulino mais um testemunho dessa
dialética normativa entre dois estilos de interpretação da Tradição: por
exemplo, as cartas aos Colossenses, aos Efésios, a segunda aos
Tessalonicenses, a primeira e a segunda a
Timóteo, a carta a Tito optam por uma inserção pacífica das
comunidades no contexto social, cultural e político em que vivem, enquanto
nas cartas aos Romanos, aos Gálatas e até mesmo na carta
a Filemon prevalece o desafio profético contra um Cristianismo
eminentemente jurídico, mais preocupado com a doutrina do que com a fé, em
oposição àquele inspirado pela profecia.
Essas contradições não deveriam nos escandalizar, porque
fazem parte do conjunto normativo da Palavra de Deus em todas as épocas da
história da Igreja e nos acompanharão até a Parusia [= a segunda e definitiva
vinda do Filho de Deus]. Em outras palavras, trata-se da tensão constitutiva
entre carisma e instituição, que, surpreendentemente, em alguns momentos,
convivem profeticamente na Igreja e na própria hierarquia.
Por exemplo, em João XXIII,
em Medellín [II Conferência Geral do Episcopado
da América-Latina e Caribe, Colômbia, 1968], em setores significativos do
episcopado latino-americano no período das ditaduras militares. Lembramos
também que o próprio Concílio Ecumênico Vaticano II revela
essa duplicidade, onde a inspiração evangélica e a fidelidade à Tradição se
fazem presentes nos próprios documentos. E esse dilema certamente pode ser
descrito, não resolvido, pela reflexão teológica, por isso deveria ser vivido
fraternalmente nas comunidades.
Convém recordar também a revolução mística de Francisco e Clara,
inspirada no Evangelho lido e obedecido sine glossa [= sem comentário,
sem outras interpretações] e eleito como única norma de vida comunitária, como
alternativa ao direito canônico. Deve-se notar que desde o início do
franciscanismo a dialética entre o Evangelho e a organização jurídica foi a
causa da separação entre espirituais (o movimento) e o conventuais (a ordem).
Apesar disso, os herdeiros de Francisco e Clara conviveram dialeticamente sem romper a comunhão eclesial, mas essa atitude não havia funcionado com os gnósticos e os cátaros dos primeiros séculos e não funcionou depois com Ockham, albigenses, hussitas, até Lutero, que queimou, junto com a bula que o condenava, uma cópia do Corpus Iuris Canonici [= Código de Direito Canônico].
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HANS KÜNG teólogo suíço que teve um papel importante durante e após o Concílio Vaticano II |
As vítimas da sã doutrina
É uma tensão que persiste nas posições antijurídicas,
radicais ou moderadas, do pós-concílio. Pensemos, por exemplo, na
teologia de Leonardo Boff, no livro Igreja,
Carisma e Poder. E lembramos a condenação infligida pela Congregação para a
Doutrina da Fé.
E com Boff, é preciso lembrar a longa lista dos
processados e condenados:
* Hans Küng
[1928-2021: teólogo e filósofo suíço],
* José
María Castillo [1929, 91 anos de idade, teólogo espanhol, padre jesuíta
até 2007],
* Gustavo
Gutiérrez [1928, 93 anos de idade, teólogo peruano, dominicano, considerado
o fundador da Teologia da Libertação],
* Juan
Antonio Estrada [1945, 75 anos de idade, teólogo espanhol jesuíta],
* Jacques
Dupuis [1923-2004: teólogo jesuíta belga],
* Ivone
Gebara [1944, 76 anos de idade, teóloga brasileira e freira da Congregação
das Irmãs de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho],
* Lavinia
Byrne [1947, 74 anos de idade, teóloga britânica e ex-freira da Instituto
da Bem-Aventurada Virgem Maria],
* Jon
Sobrino [1938, 82 anos de idade, sacerdote e teólogo espanhol jesuíta],
* Bernhard
Häring [1912-1998: teólogo moral alemão, Congregação dos Redentoristas],
* Charles E.
Curran [1934, 87 anos de idade, sacerdote e teólogo moral norte-americano],
* Marciano
Vidal [1937, 84 anos de idade, sacerdote e teólogo moral espanhol da
Congregação dos Redentoristas],
* Roger
Haight [1936, 85 anos de idade, sacerdote e teólogo jesuíta
norte-americano],
* Eugen
Drewermann [1940, 81 anos de idade, ex-sacerdote católico e teólogo
alemão],
* Tissa
Balasuriya [1924-2013: sacerdote e teólogo cingalês],
* Yves
Congar [1904-1995: cardeal e teólogo dominicano francês, considerado um
dos maiores especialistas em eclesiologia do século XX],
* Edward
Schillebeeckx [1914-2009: teólogo dominicano belga, pioneiro na busca de
um novo paradigma em teologia, que fosse adequado à modernidade e
pós-modenidade],
* Piet
Schoonenberg [1911-1999: teólogo jesuíta holandês] etc.
Não foram apenas teólogos: foram Igrejas e
povos, com seus sonhos de vida em plenitude e justiça, a serem renegados e
ocultados.
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PAPA FRANCISCO com o Evangeliário, livro litúrgico com o texto dos evangelhos utilizados nas celebrações eucarísticas católicas |
Os acontecimentos atuais mais uma vez nos mostram essa tensão
perene entre o Papa Francisco e os defensores da tradição jurídica e doutrinal,
à qual supostamente o bispo de Roma estaria desobedecendo.
A nossa história ensina-nos que esse conflito constitutivo e normativo pode ser administrado no âmbito da fraternidade e sororidade eclesial ou, no pior dos casos, pode provocar soluções cismáticas dolorosas e antievangélicas. Onde - é prioritário não o esquecer - a fraternidade passa necessariamente pela Cruz de Jesus e das suas testemunhas; Cruz que é a vitória definitiva sobre a morte e sobre as prepotências do Templo e do Palácio.
Uma guerra civil pela vida e pela morte
Mas existe um “porém”, e foi o amigo Sandro
Gallazzi quem chamou a atenção para isso: não podemos reduzir o
conflito ao âmbito eclesial. A tensão entre carisma e instituição se
reproduz na história. Antes dos eventos destes últimos anos, ainda não tinha
percebido quão afiada é a espada da Palavra e como ela divide mesmo onde
pensávamos haver unanimidade em defesa da vida.
Multiplicam-se os mal-entendidos, as divisões, as inimizades
profundas entre nós, na família, na Igreja, com os vizinhos e, obviamente, na
sociedade e na política.
E não se trata do clássico embate entre direita e esquerda, porque
vivemos em um contexto muito mais radical, criado pela VIOLÊNCIA CAPITALISTA e
o RETORNO DO FASCISMO, que novamente se apropria da Tradição.
É uma guerra civil mundial entre aqueles que defendem a vida
e aqueles que estão a serviço da morte. O cenário não é ad intra [=
no interior], na Igreja Católica. O único teatro em que “a aparência deste
mundo passa” (1Cor 7,31) é a história. E não é preciso sair como “Igreja em
saída”, porque, desde sempre, mesmo que não o tenhamos percebido, estamos “fora”,
na única “cidade”, na única história, na única sagrada corporeidade, dos
sofredores, irmãos e irmãs do Crucifixo, que vence a morte e seus algozes.
O texto poderia ser lido do ponto de vista intraeclesial, mas
seria uma redução covarde diante das dimensões da barbárie que ameaça a vida. O
estilo, aparentemente moderado, é sugerido pelo temor de que o ódio possa
dominar minha vida e trair o ágape.
Quando me deparo com irmãos e irmãs que se deixam seduzir pela morte,
oro: “Perdoai-os, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – 18 de junho de 2021 – Internet: clique aqui (acesso em: 08/07/2021).
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