Quem se enriquece no Brasil?
O governo Bolsonaro e o butim da burguesia
Eduardo Costa Pinto
Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
O
novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder econômico e político
dos SEGMENTOS PRIMÁRIOS, intensivos em commodities, e
BANCÁRIO-FINANCEIRO, abrindo espaços para a intensificação da exploração dos
recursos naturais e da força de trabalho
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EDUARDO COSTA PINTO |
* a destruição de empresas e
empregos,
* a deterioração das instituições
(Executivo, Legislativo e sistema político, Judiciário e Forças Armadas) e
* a forte redução da autonomia nacional.
Esse “doido espetáculo”, em que permanecemos até hoje, sob o governo Bolsonaro, foi formado por vários ventos, vindos de diversas direções e intensidades. O vento que veio dos quartéis, trazendo o capitão Bolsonaro, somente apareceu no final de 2017 e não pode ser responsabilizado exclusivamente pela profunda crise (em suas múltiplas dimensões: econômica, política, social, institucional e democrática e sanitária) que o Brasil atravessa.
As bandeiras, levantadas em 2018 pelo candidato Bolsonaro e pelos militares, do restabelecimento da ordem econômica, política, moral e psicossocial brasileira vêm caindo uma a uma: desde a posse em 2019 até a não punição do general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que participou de manifestação política com o presidente, ato proibido pelo regimento do Exército.
Conquistas dos militares no poder
Apesar de não ser sua causa, a forma de governar de Bolsonaro amplia a crise na medida em que, por um lado, mina as instituições (sistema político, STF etc.) que já estavam fragilizadas e, por outro, concede benesses, em troca de apoio, para os militares, tais como tratamento especial no quadro da reforma da Previdência, ampliação dos cargos ocupados no governo, reestruturação da carreira militar (que implicou aumento salarial nos níveis hierárquicos mais altos) e ampliação dos gastos e investimentos do Ministério da Defesa, mesmo com o teto de gastos.
Bolsonaro e os militares hoje no governo não são o fato gerador da crise brasileira, e sim uma infecção oportunista que se apropria de um corpo doente. O Brasil já se encontrava no meio do redemoinho, lançado em várias direções, retorcido e deslegitimado pelos ventos que sopravam de outras paragens. Esse novo vento, na verdade, ampliou o redemoinho que já tinha ganhado forma em 2015.
De onde veio o vento desse redemoinho?
Esse “doido espetáculo” foi impulsionado pelo vento vindo dos Estados Unidos, que trouxe a bactéria perigosa geradora da instabilidade para o corpo brasileiro. Após a descoberta do pré-sal, os órgãos de inteligência norte-americanos, sobretudo a Agência Nacional de Segurança (NSA), vinham espionando a Petrobras e a presidenta Dilma Rousseff, conforme arquivos obtidos com o ex-analista da NSA Edward Snowden, em 2013. Mais recentemente, com o caso da Vaza Jato, ficou explícito que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos passou informações, de forma ilegal, para a Operação Lava Jato. Para muitos analistas, as primeiras informações sobre a corrupção na Petrobras e suas conexões com as empresas líderes da construção civil nacional, obtidas pela Lava Jato em Curitiba, teriam vindo do Departamento de Justiça, repassadas provavelmente pela NSA.
Com essas informações, a força-tarefa de Curitiba passou a utilizar mecanismos de flexibilização e/ou quebra do regramento jurídico para alcançar seus fins por meio da geração de instabilidade política (um dos elementos centrais de sua estratégia) e de vazamentos ilegais para a imprensa, para pressionar os agentes políticos e as instâncias superiores do Judiciário a prosseguir no combate à corrupção. Os fins (combate à corrupção e refundação do Brasil) justificariam os meios.
Esse vento norte-americano, que se tornou devastador, provavelmente poderia ter sido contido por mecanismos institucionais básicos em sua fase inicial de expansão. No entanto, ele ganhou força e foi alimentado por diversas forças sociais nacionais (frações da burguesia, políticos, burocracia estatal, classes médias, STF etc.) que procuravam alcançar seus interesses num contexto de crise econômica e política. Essas forças sociais achavam que, cada uma isoladamente, poderiam conter o vento ou direcioná-lo para destruir seus competidores, adversários e desafetos. Com isso, o redemoinho se formou e ganhou uma força inimaginável, e segue deixando um rastro de golpes institucionais (impeachment de Dilma, em 2016, e exclusão da candidatura de Lula, em 2018), de desestruturação de bases produtivas[2] e de degradação institucional.
Desde 2015, o Brasil vive uma trajetória caótica, sem rumo, com a deterioração e a perda de legitimidade das instituições, que continuam existindo materialmente, mas perderam a capacidade de reduzir incertezas e incentivar os avanços das ações humanas econômicas, sociais e políticas coordenadas. Com isso, impede-se qualquer padrão de formação de expectativas econômicas e políticas a respeito do devir, criando-se um encurtamento das decisões e dificultando-se os investimentos, a formação de consensos políticos mínimos e a configuração de um padrão de desenvolvimento inclusivo socialmente e sustentável ambientalmente.
A reconfiguração do capitalismo brasileiro
Se por um lado essa crise impede o devir, por outro ela vem possibilitando uma profunda reconfiguração do capitalismo brasileiro, capitaneado, em boa parte, pela burguesia em seu projeto de desmanche da Constituição de 1988 e das capacidades governamentais (empresas e bancos estatais, instrumentos de intervenção direta do Estado na economia e criminalização das políticas públicas verticais), para abrir novos espaços de acumulação e recuperar as taxas de lucro das quinhentas maiores empresas não financeiras privadas de capital aberto que caíram entre 2011 e 2015. (Gráfico 1)
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GRÁFICO 1 |
Para isso, os setores dominantes brasileiros se unificaram, desde o golpe parlamentar de 2016, passando pelo governo Temer, até o governo Bolsonaro, com seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em torno do juízo de que a única alternativa para destravar a acumulação seriam as reformas neoliberais (previdenciária, trabalhista, administrativa, teto de gastos) e as privatizações (Eletrobras, venda de ativos da Petrobras etc.), que repassavam o ajuste dos custos da crise de acumulação para os trabalhadores, pois, para eles, os entraves ao crescimento seriam fruto das políticas de ganhos reais do salário, da ampliação das políticas de proteção e dos gastos públicos com as políticas universalizantes (saúde e educação), decorrentes da Constituição de 1988.
Não por acaso, a burguesia brasileira apoiou fortemente o candidato Bolsonaro e seu ministro da Economia neoliberal, defensor das privatizações e das reformas pró-mercado. Nesse sentido, a redução da atuação do Estado brasileiro na economia, por meio da venda de ativos públicos e das privatizações de suas empresas, tem sido alardeada pelo governo Bolsonaro, pelos setores dominantes brasileiros e pelos economistas de mercado como o caminho do nirvana para o crescimento econômico e o desenvolvimento social.
Quem é que ganha nessa “crise”?
O problema é que o nirvana nunca chega para todos. Pelo
contrário, o Brasil permanece no redemoinho, numa profunda crise econômica,
social e institucional. A questão é que...
... esse redemoinho tem sido funcional para a mega e a grande
burguesia brasileira (maiores empresas) aumentarem seus lucros desde 2016.
Cabe observar que o bloco no poder do capitalismo brasileiro (frações da mega e da grande burguesia), com a crise de 2015 e 2016 e com os efeitos destrutivos da Lava Jato, passou por importantes modificações, com:
* o aumento do poder dos
segmentos comerciais (varejo e serviços, sobretudo os médicos),
* com a manutenção do poder dos
segmentos bancário-financeiro,
* com a forte redução dos
segmentos industriais, exceto aqueles intensivos em capital baseado em commodities
(petróleo e gás, siderurgia, papel e celulose, mineração, produtos alimentares
etc.), e
* com o aumento do poder da burguesia agropecuária, que sempre teve um papel sobredeterminado no que diz respeito à sua participação política no Congresso.
Esse aumento no poder das empresas (capital) diante dos
trabalhadores, com a mudança do padrão de acumulação em curso, sob patrocínio
da burguesia brasileira, tem sido funcional para a grande e a megaburguesia
brasileira (maiores empresas) em recuperar sua lucratividade e criar espaços de
acumulação. Como isso foi possível, mesmo com o PIB crescendo muito pouco
entre 2016 e 2020? Isso aconteceu em virtude:
1) de um profundo processo de concentração e
centralização de capital, sobretudo no setor de comércio e serviços. Ou
seja, as grandes empresas estão comprando ou ganhando mercado das pequenas e
médias empresas;
2) da redução do custo da força de trabalho
(direto e indireto, vinculado à reforma trabalhista), que tem implicado na redução
dos salários diretos e indiretos dos trabalhadores;
3) da elevação dos preços das commodities
desde 2017;
4) da desregulamentação ambiental e trabalhista,
para facilitar a expansão da agropecuária e do extrativismo em novas
fronteiras; e
5) do processo de privatização, que está abrindo novos espaços de acumulação.
No que tange à fração da burguesia agropecuária, chama atenção a trajetória de crescimento das taxas de lucro das quarenta maiores empresas do setor (com dados disponíveis) desde 2015, sobretudo em 2020, quando a taxa alcançou o patamar de 21% (Gráfico 2), muito superior às taxas do setor bancário-financeiro, que foi de 13,5%, sendo as mega e as grandes empresas as que obtiveram as maiores taxas de lucro.
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GRÁFICO 2: Taxa de lucro de 40 empresas do setor agropecuário: 2015-2020 (%) |
Esses resultados das taxas de lucro da mega e da grande burguesia e suas frações (agropecuária, industrial intensiva em commodities, comercial e de serviços) reforçam o apoio dos setores dominantes brasileiros às medidas de reformas pró-mercado, mesmo que isso implique apoiar o governo Bolsonaro com todos os seus problemas e a dificuldade de ser controlado pela burguesia.
Com Bolsonaro, a burguesia permanece no mando (projeto de desestruturação dos direitos sociais, de desmanche da Constituição de 1988, de privatizações e da constitucionalização do neoliberalismo), mas sem comando, em virtude do aumento dos conflitos num contexto de crise institucional em curso. Ou seja, as reformas e as privatizações seguem como rolo compressor, mas sem o controle de parte da burguesia, como visto no processo de privatização da Eletrobras.
Cabe observar que a adoção desse projeto da burguesia dificilmente
seria viável politicamente, da forma como vem sendo realizado, em condições
institucionais normais.
Portanto, os golpes foram funcionais para mudar o padrão de acumulação. Nesse sentido, o vento mais intenso do redemoinho em que o Brasil se encontra é provocado pela sanha dos setores dominantes brasileiros, sobretudo das frações vinculadas ao agronegócio e à finança.
Assim como em outros momentos históricos, a classe dominante
brasileira “burlou [e burla] de maneira permanente e recorrente as leis
vigentes, sacadas a fórceps de outros quadros históricos”[3] e adota
uma resistência “ultraintensa à mudança social”, voltando-se de forma
“sociopática” para “a preservação pura e simples do status quo
[defesa de privilégios e do lucro a qualquer custo]”.[4]
Esse novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder econômico e político dos segmentos primários, intensivos em commodities e bancário-financeiro, abrindo espaços para a intensificação da exploração dos recursos naturais e da força de trabalho. Setores dominantes brasileiros não recuaram em seu projeto de desmanche, o que impede a construção de uma conciliação política entre setores sociais amplos.
Nesse sentido, o campo progressista tem de construir um
programa mais ousado (o caso do Plano Biden), que foque os investimentos
públicos:
* em infraestrutura urbana,
* em educação e saúde (bens
públicos) e
* em desenvolvimento ambientalmente
sustentável, que deverão, em parte, ser financiados por forte elevação dos
impostos sobre o 1% mais rico (aumento do IPTU, do ITR, dos dividendos, das
heranças etc.).
O 1% mais rico deve ser nosso foco político – somente assim a
esquerda vai se conectar com a demanda eleitoral antissistema da população.
E não adianta fazer um programa ousado e depois girar completamente, como Dilma em 2015.
Sem o apoio da população, o campo progressista pode até ganhar a próxima eleição em 2022, mas não conseguirá governar nem levar o jogo até o fim do tempo determinado institucionalmente. Em outras palavras, não conseguirá tirar o Brasil do redemoinho, para que seja possível uma nova travessia, que incorpore socialmente a população e construa um desenvolvimento sustentável ambientalmente.
N O T A S
[1] Ao longo do livro Grande sertão: veredas, Guimarães
Rosa utiliza uma frase emblemática e cheia de simbolismo que vai nortear essa
grande obra: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”.
[2] A desestruturação das bases produtivas e institucionais
brasileiras interessa, sim, aos agentes externos, especialmente aos
norte-americanos e seu Estado nacional, pois isso (a) possibilitou a abertura
da exploração do pré-sal para as empresas estrangeiras; (b) contribuiu para a
ampliação de vendas de equipamentos para essa exploração por empresas
estrangeiras, como a norte-americana Halliburton; (c) desestabilizou o
engajamento do Brasil nos arranjos configurados pelos Brics; (d)
desestabilizou a presença das empresas de construção civil nacional (Odebrecht,
OAS, Camargo Corrêa) na América Latina e África, abrindo espaços para novos
entrantes; (e) permitiu a compra da Embraer pela empresa norte-americana
Boeing; e (vi) possibilitou o acordo de uso da base de Alcântara pelos Estados
Unidos.
[3] Francisco de Oliveira, “Jeitinho e jeitão: uma tentativa de
interpretação do caráter brasileiro”, Piauí, out. 2012, p. 10.
[4] Florestan Fernandes, A sociologia numa era de revolução social, Zahar, Rio de Janeiro, 1962, p. 211.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Capa – Edição 168 – 1 de julho de 2021 – Internet: clique aqui (acesso em: 15/07/2021).
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