Cuidemos da democracia!
O perigoso para a democracia é excluir os outros
Rodrigo Turrer
Entrevista especial com Jan-Werner Müller
Cientista político alemão, professor na Universidade de Princepton (Estados Unidos) e autor, entre outros livros, de: “What Is Populism?” (2016) “Democracy Rules” (2021)
O cientista político
alemão Jan-Werner Müller acredita que o conflito está no cerne da democracia, e
ninguém deveria temer isso
![]() |
JAN-WERNER MÜLLER |
Quais
os efeitos que a onda populista da última década ainda podem ter sobre as
democracias?
Jan-Werner Müller: Não acho que seja uma onda. Não é um tipo de processo que agora funciona por si mesmo, como se não houvesse vontade política ou decisões humanas sobre o que fazemos ou não faremos. Meu entendimento é que até hoje, em nenhum lugar da Europa Ocidental, algum ator populista de direita ou de extrema direita realmente chegou ao poder sem o apoio de atores conservadores muito mais estabelecidos. Sejam partidos, sejam indivíduos proeminentes.
O populismo não é apenas criticar as elites ou ser de alguma
forma contra o sistema. É verdade que, quando em oposição, políticos e partidos
populistas criticam governos em exercício e outros partidos, mas para mim o
que é crucial é que eles tendem a alegar que eles e somente eles representam o
que muitas vezes chamam de “pessoas reais”. Temos duas consequências
prejudiciais para a democracia:
1ª) Os populistas vão alegar que todos os adversários são ilegítimos.
Isso nunca é apenas um desacordo sobre políticas ou mesmo sobre valores. Os
populistas tornam isso pessoal e moral. Essa tendência é o padrão.
2ª) Os populistas também irão sugerir que qualquer um que não concorde
com sua concepção das pessoas reais e, portanto, também tenda a não apoiá-los
politicamente - que com todos esses cidadãos você pode basicamente
questionar se eles verdadeiramente pertencem ao povo em primeiro lugar.
Já vimos isso com muitos outros políticos que vão sugerir que
as minorias já vulneráveis, por exemplo, não pertencem verdadeiramente ao povo.
Resumindo, para mim o populismo não é sobre antielitismo. Qualquer um de
nós pode criticar as elites. Não significa que estejamos certos, mas isso não é
em si nada perigoso para a democracia.
O que é perigoso para a democracia, e o que considero crítico para
este fenômeno, é basicamente a tendência de excluir os outros.
![]() |
Tradução do título: "O que é Populismo?" - Publicado em setembro de 2016 pela University of Pensylvania Press (Estados Unidos) |
Müller: Simplificando de maneira brutal, testemunhamos em muitos
países o que eu chamaria de dupla segregação:
a) as elites se retiraram do mundo social e político comum, e ao
mesmo tempo
b) as pessoas que estão na base da sociedade desistiram do sistema
político e não encontram partidos que promovam ideias, políticas com as
quais elas realmente se identifiquem.
Não estou dizendo que isso se aplica globalmente, o contexto europeu ou norte-americano é diferente do da América Latina. Há variações regionais importantes. Mas certamente em vários países é assim que ocorre.
Para piorar, a maioria dos conflitos hoje são caracterizados como culturais, sobre valores, sobre reivindicações das minorias. Até certo ponto, em alguns países, as minorias agora estão fazendo valer sua presença como não puderam fazer antes. Mas muita atenção é desviada de questões centrais por uma guerra cultural implacável, a ideia de que o país está sendo tirado de nós pelas “pessoas marrons e pessoas negras” que não são a verdadeira América e assim por diante. Mas estas não são apenas forças impessoais, uma globalização impessoal. Muitas vezes os conflitos estão sendo descritos como se fossem apolíticos, inevitáveis. Eles não são inevitáveis. São resultado da política e, portanto, de instrumentos que temos a mão para enfrentá-los, o que não quer dizer que algum dia iremos superá-los completamente. Essa é uma expectativa errada em uma democracia. O conflito é legítimo, essencial, mas depende de como você trata o conflito. Portanto, os meios e os instrumentos para abordá-los também devem ser políticos.
Você
diz que a democracia é dinâmica e fluida, mas quais são as regras básicas da
democracia que não podem ser quebradas?
Müller: A democracia tem a ver com conflito. As pessoas não conseguem lidar com isso e apelam a uma ideia comunitária um tanto kitsch de que é tudo sobre como superar nossas divisões, bipartidarismo e assim por diante. Mas se não tivéssemos conflitos, não precisaríamos de democracia, porque ela é simplesmente nosso aparelho para lidar com os conflitos, baseado no reconhecimento mútuo.
Mas é preciso reconhecer que o conflito existe, e o mais
importante, faz parte da política. O meu entendimento do populismo é que os
líderes, principalmente de direita, dirão que certas pessoas realmente não
pertencem ao povo ou ao sistema político de forma alguma. Essa é uma fronteira
importante. Você pode dizer todos os tipos de coisas desagradáveis sobre as pessoas.
O que não se pode fazer é sugerir que certas pessoas, certas
minorias, certos partidos políticos não pertencem de forma alguma ao
debate ou ao sistema político.
Essa retórica tem consequências no campo terreno. O termo “agressão gotejante” da filósofa Kate Manne capta perfeitamente esse fenômeno. Não é por acaso que a violência em torno dos comícios de Trump aumentou.
![]() |
Tradução do título: "Regras de Democracia" - Publicado no último dia 6 de julho pela editora Farrar, Straus and Giroux, de Nova York, Estados Unidos |
A
polarização é o grande problema político de nossa era?
Müller: Não necessariamente. Qualquer um de nós pode criticar as decisões dos eleitores, e ter visões opostas sobre os rumos que devemos seguir. Isso é parte do jogo democrático. Nos últimos anos, tem havido uma tendência de culpar as pessoas – “foram as massas irracionais que trouxeram o Brexit sobre si mesmas, que trouxeram Trump sobre elas”. Tem sido muito conveniente para os liberais se entregarem aos clichês do século 19 de que todo mundo é irracional e facilmente seduzido pelo grande demagogo.
Outra tendência, é claro, é dizer que é tudo culpa de determinadas elites. Essas são perspectivas muito diferentes, com certeza, mas compartilham a suposição comum de que o problema é com grupos específicos de pessoas, sejam eles muitos ou poucos. Isso é politicamente problemático porque viola uma intuição básica sobre a igualdade democrática. As pessoas, em alguns casos, pelo menos, tendem a projetar o que acontece mais tarde de volta às origens. Um exemplo, as pessoas dizem: “Oh, na Europa Oriental, todos nós sabemos que essas pessoas são provavelmente mais não liberais e nunca compreenderam o multiculturalismo”. Mas, se você olhar para trás e ver o que realmente aconteceu há cerca de uma década, não é que Orbán ficou lá e disse: “Ei, vote em mim, vou desabilitar o império da lei, vou abolir o pluralismo da mídia, vou erguer uma plutocracia”. Ele não mencionou nada remotamente radical em sua campanha eleitoral que o levou ao poder pela segunda vez. Ele nem disse que mudaria a constituição. Uma vez que ele assumiu o poder, é claro, muitas coisas aconteceram, mas então, na próxima eleição, já é muito mais difícil para os eleitores chegarem a julgamentos verdadeiramente informados sobre algumas das coisas que acontecem, além do que muitas pessoas são basicamente impedidas de participar em primeiro lugar. Portanto, não estou dizendo que os eleitores nunca são culpados, mas acho que precisamos ser mais cuidadosos na forma como construímos essas histórias. E precisamos tomar cuidado para não alienar as pessoas do debate.
No
seu livro o senhor fala sobre a necessidade da persuasão e do diálogo aberto
para mudar a dinâmica atual do conflito nas democracias. Como dialogar com quem
defende uma ditadura militar ou a morte de alguém por causa de sua posição
ideológica?
Müller: Correndo o risco de ser pedante, deixe-me fazer uma distinção primeiro. Não quero dizer que é fácil envolver pessoas que possuem os tipos de pontos de vista que você acabou de fazer referência. E também não estou dizendo que há qualquer tipo de alta probabilidade de que se, apenas, nos envolvermos por tempo suficiente, conversarmos por tempo suficiente, as pessoas vão mudar, porque temos evidências suficientes de que, em muitos casos, isso não vai acontecer.
O problema não é o que as pessoas dizem de deplorável. Não acho que tenhamos que ser
sempre legais na política e adotar o discurso “puxa, não podemos usar palavras
como essa”.
O que não podemos é aceitar que as pessoas são irredimíveis.
Porque, neste caso, você basicamente diz que essas pessoas
estão por aí tão desesperadas que não faz sentido sequer tentar interagir com
elas. Isso é um erro, porque envolve um certo tipo de determinismo
que afetou tanto democratas quanto republicanos nos Estados Unidos. Não
devemos supor que não podemos mudar as pessoas. É difícil na prática, também é
verdade. Mas basicamente realizar a mesma forma de exclusão que os populistas
de extrema direita e dizer: você não faz parte da sociedade, não vamos falar
com você, não vamos incluir você no diálogo, isso é moralmente errado.
Infelizmente é compartilhado entre os principais partidos em alguns países,
então os democratas nos Estados Unidos têm sua própria forma de determinismo
porque simplesmente assumem que o desenvolvimento demográfico está sempre a
favor deles, você sabe, qualquer um que seja negro, ou minoria, virá para o
nosso rebanho. E, claro, isso é espelhado pelos Mitch
McConnells deste mundo e todas as pessoas que agora estão trabalhando
dia e noite em favor da supressão de eleitores e da subversão eleitoral,
porque eles dizem, “oh, se um estado estiver repleto de negros e imigrantes,
será horrível para os conservadores”.
O erro moral e político é simplesmente tomar isso como um dado em
todas as circunstâncias.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional / Entrevista – Domingo, 25 de julho de 2021 – Pág. A8 – Internet: clique aqui (acesso em: 25/07/2021).
Comentários
Postar um comentário