Descobrindo o pensamento do Papa Bergoglio
É publicada a primeira biografia “intelectual”
de Bergoglio
Entrevista
com Massimo Borghesi*
Filósofo italiano
Alver Metalli
Vatican
Insider
03-11-2017
Massimo Borghesi, filósofo italiano
com uma longa carreira na cátedra universitária, estudos e publicações,
apresentará nos próximos dias ao público o resultado de uma obra que estava
faltando
E essa lacuna estava nas origens
de aproximações e desconhecimentos. Uma full
immersion nas fontes primárias que
alimentavam ao longo do tempo o modo de
ver e pensar daquele que hoje ocupa a cátedra mais alta da Igreja católica.
Para realizar sua pesquisa,
Borghesi recebeu uma ajuda decisiva, precisamente a do sujeito pesquisado, que
contribuiu com cinco gravações de áudio. "Através
de um amigo comum, Guzmán Carriquiry, vice-presidente da Pontifícia Comissão
para a América Latina, pude tirar proveito da gentileza do Papa Francisco e
enviar-lhe algumas perguntas", revela o autor. O resultado do trabalho
poderá ser conhecido dentro de alguns dias, apresentado pela editora Jaca Book com o título Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia
intelectual. Dialética e mística.
Na sequência, apresentamos algumas pistas do que o
leitor vai encontrar no livro de Massimo Borghesi, obtidas com a cumplicidade da amizade.
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MASSIMO BORGHESI Filósofo italiano autor da "biografia intelectual" de Papa Francisco |
O que o levou a fazer essa pesquisa sobre o pensamento do Papa?
Massimo Borghesi: O preconceito, sobretudo no ambiente intelectual e acadêmico, que
persiste sobre a imagem do pontificado. O
Papa Francisco teve que assumir o difícil legado de Bento XVI, um dos grandes
teólogos do século XX. Depois de um pontificado com uma forte marca no
plano intelectual, o estilo pastoral de
Bergoglio parecia demasiado "simples" para muitos, inadequado
para os grandes desafios do mundo metropolitano e secularizado. O Papa que veio do fim do mundo é
censurado, na Europa e nos Estados Unidos, de não ser "ocidental",
europeu, culturalmente preparado.
Quando você entendeu que não era assim?
Massimo Borghesi: Pessoalmente, eu tinha lido alguns textos de Bergoglio que tinham
chamado muito a minha atenção. Entre eles, alguns discursos da segunda metade
da década de 1970, quando Bergoglio era o jovem provincial dos jesuítas
argentinos. Eles me causaram uma boa impressão. O que me impactou sobremaneira foi o "pensamento" que dava
sustentação aos seus argumentos. Bergoglio dirigia-se aos seus irmãos
jesuítas que estavam vivendo uma situação dramática e dolorosa. A Argentina
dessa época era governada pelos militares, que praticavam uma sangrenta
repressão à frente revolucionária dos Montoneros. Em relação a este conflito, a Igreja estava profundamente dividida
entre os apoiadores do governo e aqueles que apoiavam a revolução.
Para Bergoglio, esta
fratura da sociedade também colocava em cheque a Igreja, que tinha sido incapaz
de unir o povo. Seu ideal era o catolicismo como coincidentia
oppositorum, como superação dessas
oposições que, quando radicalizadas, tornam-se contradições insuperáveis. Bergoglio expressava esse ideal através de
uma filosofia própria, uma concepção segundo a qual a lei que governa a unidade
da Igreja, assim como a social e a política, baseia-se numa dialética
"polar", em um pensamento "agonista" que mantém unidos
os opostos sem anulá-los ou reduzi-los forçosamente ao uno. Multiplicidade e unidade constituíam os
dois polos de uma tensão ineludível. Uma tensão cuja solução era confiada,
uma e outra vez, ao poder do Mistério divino que atua na história.
Esta
perspectiva que emergia nas entrelinhas dos discursos do jovem Bergoglio me
interessou imediatamente. Associado aos pares polares que o Papa coloca na Evangelii Gaudium constituía uma verdadeira "filosofia" própria,
um pensamento original. Tendo estudado minuciosamente a dialética de Hegel e, acima de tudo, a concepção da
polaridade em Romano Guardini, essa
perspectiva me interessou imediatamente. Era
evidente que Bergoglio tinha uma concepção original, um ponto de vista
teológico-filosófico que, curiosamente, não chamou a atenção dos estudiosos.
GUZMÁN CARRIQUIRY LECOUR Vice-presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina |
O Papa deu uma contribuição pessoal ao seu trabalho de pesquisa com
gravações que ele lhe enviou. O que lhe permitiu determinar essa contribuição?
Massimo Borghesi: Através de amigo em comum, Guzmán
Carriquiry, vice-presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, pude
tirar proveito da gentileza do Papa Francisco e enviar-lhe algumas perguntas. Depois de ler seus escritos, com efeito,
colocava-se a questão sobre a gênese de sua dialética polar. Era uma
leitura muito original da realidade que oferecia analogias com o tomismo
hilemórfico e dialético de Alberto Methol Ferré, principal intelectual
latino-americano da segunda metade do século XX. Mas Methol Ferré não estava na origem do pensamento de Bergoglio.
Os caminhos de ambos se encontram apenas no final dos anos 70, durante a
preparação da grande Conferência de Puebla da Igreja Latino-Americana.
Então,
de onde Bergoglio tira a sua ideia da
tensão polar como lei do Ser? Sobre este ponto, que é central, os artigos e
livros não ofereciam nenhuma pista. É como se Bergoglio quisesse manter o
segredo sobre a fonte do seu pensamento. É
aqui que as respostas do Papa se revelaram fundamentais. Graças a elas,
pude entender que o ponto de partida do
seu pensamento deve ser situado nos anos de estudos no Colégio San Miguel,
quando Bergoglio reflete sobre a teologia
de Santo Inácio através do modelo da “Teologia
do como se” e, sobretudo, através da
leitura, determinante, do primeiro volume de La Dialectique des Exercices Spirituels de Saint Ignace de Loyola
[A dialética dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola] de Gaston Fessard. A leitura "tensionante", dialética, que Fessard faz de
Santo Inácio está na origem do pensamento de Bergoglio. Para mim, foi uma
verdadeira descoberta.
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GASTON FESSARD Teólogo jesuíta francês que muito influenciou o pensamento de Papa Francisco |
Quais são as influências europeias mais fortes sobre o Papa, aquelas que
ele assimilou e deixaram uma marca na estrutura do seu pensamento?
Massimo Borghesi: Um dos resultados do meu livro foi precisamente estabelecer a grande
influência que os autores europeus, especialmente jesuítas, tiveram em
Bergoglio. Assim, desaparece a lenda do papa latino-americano, que não estaria
em condições de se medir com o pensamento europeu. O principal autor é, sem
dúvida, Gaston Fessard, jesuíta, um
dos mais geniais intelectuais franceses do século XX. Também Henri de Lubac, com a maneira de
conceber a relação entre Igreja e sociedade que ele propõe em Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme [Catolicismo. Os aspectos sociais do
dogma]. Fessard e Lubac são
protagonistas da Escola de Lyon. Ao segui-los, Bergoglio é, de certo modo,
um discípulo dessa escola. Tanto Fessard quanto Lubac aderem a uma concepção
dialética, herdada de Adam Möhler, o
grande fundador da Escola de Tübingen, para quem a Igreja é coincidentia oppositorum, unidade sobrenatural daquilo que no plano
do mundo é irreconciliável. É a mesma concepção que Bergoglio tem.
Além
dos dois autores jesuítas que acabamos de citar, há outro, também francês, que
influenciou Bergoglio: Michel de Certeau.
Ele também foi protagonista do cenário intelectual, especialmente nos anos 70.
Mas o De Certeau que interessa a Bergoglio é o dos anos 60, o estudioso da
mística moderna, de Surin a Fabro. O prefácio que ele escreveu para o Memorial
de Pedro Fabro, o grande amigo de
Santo Inácio, é um texto-chave na formação de Bergoglio. Seu ideal jesuíta da
vida cristã, do contemplativo em ação, tem o selo de Pedro Fabro.
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ROMANO GUARDINI Filósofo e teólogo ítalo-alemão que muito influenciou o pensamento de Bergoglio |
Há outros autores que sejam decisivos na sua formação, além dos
franceses?
Massimo Borghesi: A partir de 1986, o ítalo-alemão Romano
Guardini adquire um papel fundamental. Nesse ano, Bergoglio viaja para
Frankfurt, Alemanha, para fazer uma tese de doutorado sobre Guardini. Mas o
tema que ele escolhe não são as obras teológicas ou de caráter religioso, mas a
única obra inteiramente filosófica de Guardini: A Oposição Polar. Ensaio de uma filosofia do concreto vivo. É uma
decisão curiosa. Por que ocupar-se do
Guardini filósofo e não do teólogo?
A
resposta é compreensível à luz do meu estudo. Para Bergoglio, a antropologia "polar" de Guardini é uma
confirmação de sua visão dialética e antinômica, apreendida através de Fessard
e De Lubac. A autoridade de Guardini confere um valor especial ao modelo de
pensamento que Bergoglio aplica aos campos eclesial e político-social. Ao mesmo
tempo, o modelo guardiniano amplia o bergogliano e permite aprofundamentos
inéditos. A partir dos anos 90, Guardini
torna-se um autor de referência. Encontramo-lo citado várias vezes na Evangelii Gaudium e na Laudato Si'.
Outro
autor chave é o grande teólogo suíço-alemão Hans Urs von Balthasar. Essa foi uma descoberta. A partir dos anos 90, quando já era bispo e
depois como cardeal, Bergoglio aproximou-se da grande estética teológica de Von
Balthasar, compartilhando seu enfoque, o primado que concede à beleza em função
da comunicação do bem e da verdade. A unidade dos transcendentais do ser
torna-se um ponto fundamental do pensamento teológico e filosófico de
Bergoglio. De Balthasar, Bergoglio toma
também as categorias para opor-se ao gnosticismo, ao esvaziamento da carne de
Cristo nos diversos "idealismos" espiritualistas. O ensaio sobre
Irineu, no livro Glória, impressionou
muito Bergoglio.
E
quero lembrar uma última influência: a obra de dom Luigi Giussani. Bergoglio era leitor – e em alguns casos, os
apresentou em Buenos Aires – dos livros de Giussani traduzidos para o espanhol.
Do seu ponto de vista, as principais
categorias do método educativo de Giussani – o encontro, o estupor, a
experiência, etc. – estão associadas à entrega gloriosa da "forma"
(Gestalt), como ensina Von Balthasar.
Tudo isso orientado para uma atitude missionária, evangelizadora, que situa o
cristão no horizonte da Igreja dos primeiros séculos: como há 2000 anos.
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HANS URS VON BALTHASAR Teólogo suíço-alemão que teve influência na mística de Papa Bergoglio |
Que peso têm, em seu pensamento, as fontes latino-americanas? Methol
Ferré, historiador e filósofo nascido no Uruguai, ocupa um lugar importante na
sua obra...
Massimo Borghesi: Entre as fontes latino-americanas, sem dúvida, colocaria na primeira
fila Lucio Gera e sua Teologia do Povo, a reformulação da
Teologia da Libertação feita pela Escola do Rio da Prata, com sua crítica ao
marxismo e sua opção preferencial pelos pobres. É um aspecto conhecido e
estudado do pensamento de Bergoglio. A Teologia
do Povo tem o mérito de redescobrir
o valor da religiosidade popular latino-americana, simbolizada pelo culto a
Nossa Senhora de Guadalupe, que supera os preconceitos da cultura iluminista.
Além
de Gera e dos teólogos próximos a ele, no entanto, há outros autores que são
decisivos para a reflexão de Bergoglio. Entre eles, Miguel Ángel Fiorito, seu professor de filosofia. Fiorito é quem o
introduz em uma redescoberta dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio através
da leitura do estudo inaciano de Gaston Fessard. Depois, o encontro com Amelia Podetti, a "filósofa"
argentina mais ilustre dos anos 70. Estudiosa de Hegel, Podetti desenvolve uma
reflexão sobre a inculturação da fé, sobre a relação entre centro e periferia,
sobre o papel da América Latina no novo contexto mundial, o que interessou
muito a Bergoglio.
Finalmente,
há o autor por excelência: Alberto
Methol Ferré, com quem compartilhou a experiência do CELAM entre 1979 e
1992 e é o intelectual mais lúcido da América Latina. Bergoglio e Methol estão
em perfeita sintonia. Meu trabalho analisa o pensamento de Methol Ferré, seu tomismo dialético, e isso juntamente
com a entrevista que você fez com Methol no livro O Papa e o Filósofo, é uma novidade no panorama cultural italiano. Methol Ferré e Bergoglio encontram-se,
compartilham a mesma perspectiva sobre a Igreja e a sociedade, têm os mesmos
autores de referência. Fundamentalmente um: ambos dependem da visão polar, dialética, de Gastón Fessard. Essa
fonte comum também explica sua proximidade ideal, filosófica, sua sintonia na
maneira de enfrentar os desafios da Igreja latino-americana desde a década de
1970. Bergoglio aprecia muitíssimo o "amigo" Methol, lê seus artigos
em Víspera e Nexo, e está
impressionado com sua geopolítica eclesial, compartilha seu ideal de “Pátria Grande”.
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ALBERTO METHOL FERRÉ Filósofo uruguaio com grande influência no pensamento de Papa Francisco e que compartilha com ele várias ideias e conceitos |
Há aquisições finais do seu estudo, de síntese, que reafirmam o que foi
escrito até agora sobre o Papa Bergoglio?
Massimo Borghesi: As aquisições são muitas. Em primeiro lugar, como já dissemos,
esclarece-se a gênese e o fio condutor do pensamento de Jorge Mario Bergoglio.
E é a primeira vez que isso acontece. São
desmentidas as opiniões daqueles que, por preconceito ou por falta de
documentação, continuam repetindo que Francisco não tem qualificações para
exercer o ministério petrino.
Bergoglio é portador de um pensamento original,
dependente de uma tradição do pensamento "católico" dos séculos XIX e
XX, a de Adam Möhler, Erich Przywara, Romano Guardini, Gaston Fessard e Henri
de Lubac.
Alguns
desses autores são jesuítas, outros não. É
uma tradição ilustre que precisamente o magistério de Francisco hoje permite
redescobrir e valorizar. Uma tradição que desmente aqueles que – penso
sobretudo nas críticas contra a Amoris
Laetitia – pretendem atribuir ao Papa uma teologia praxística, relativista
e permissiva.
Na concepção
"polar" de Bergoglio, a Verdade e a Misericórdia não podem ser
separadas, assim como o belo-bom-verdadeiro, à luz da unidade dos
transcendentais. Aqueles que criticam Francisco por suposto subjetivismo e modernismo
mostram que não conhecem seu pensamento. Assim como também não conhecem o seu pensamento aqueles que o acusam de reduzir a fé à
questão social e esquecer o primado do kerygma.
Pelo contrário, Francisco – como afirma explicitamente
na Evangelii Gaudium – quer recuperar o primado do kerygma sobre o
desvio ético da Igreja nas últimas décadas e, ao mesmo tempo, quer um forte
compromisso dos católicos no social.
Ele não faz nenhuma
redução: são dois polos de uma tensão que caracteriza o católico. Em relação ao compromisso
político, a transcendência, o “primeirear” da fé e da graça sobre qualquer
declínio histórico, é essencial. O Papa
tem uma concepção "mística" que afirma a abertura do pensamento em
relação a qualquer fechamento ideológico e sistemático, e isso em função da
ação do "Deus sempre maior".
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PAPA FRANCISCO Em oração... |
Como ficam as críticas feitas a Bergoglio criticando-o de ser
"populista-peronista"?
Massimo Borghesi: Aqueles que as fazem, evidentemente, não o conhecem bem, ou as fazem
sabendo que estão errados. O Papa é um
crítico da absolutização da economia capitalista desvinculada de qualquer lei
ética, assim como foi imposta na era da globalização. Mas ele não é
"populista". Sua simpatia pelo
peronismo, devida à atenção dada à questão social, não deve ser confundida com
as ideias salvíficas próprias de uma política ideológica.
É
interessante, desse ponto de vista, a valorização que Bergoglio faz na década
de 1990 de A Cidade de Deus de Santo Agostinho. Ele propõe Agostinho como um modelo atual para criticar os modelos
teológico-políticos que comprometem a Igreja com o poder, seja da direita, seja
da esquerda. Sobre este assunto, a posição de Bergoglio está totalmente em
sintonia com a leitura de Agostinho que Ratzinger faz. O livro esclarece muitos pontos da reflexão de Bergoglio que até agora
tinham ficado na sombra do público europeu, constituindo-se em fonte de
controvérsias. Nisso reside, espero, a utilidade do mesmo.
L I V R O
Autor: Massimo Borghesi.
Título: Jorge Mario Bergoglio. Una biografia de intellettuale. Dialettica e
mistica.
Introdução de: Guzmán Carriquiry Lecour
Editora: Jaca Book (Milão – Itália)
Publicação: 09 de novembro de 2017
* MASSIMO BORGHESI è professor titular de Filosofia Moral na Faculdade de Letras e Filosifia da Universidade
de Perugia (Itália). De 1992 a 1996 foi professor de História da Filosifia Moral na Faculdade de Magistério da
Universidade de Lecce. Ensinou, de 1981 a 2007, Estética, Ética, Teologia Filosófica, na Pontifícia Universidade
São Boaventura em Roma onde foi, de 2000 a 2002, diretor da “Cattedra
Bonaventuriana”. Desde 2008 é docente di Filosofia
e Religião na Pontifícia Universidade Urbaniana (Roma). É membro do
conselho científico e do comitê editorial de editoras e revistas (Studium, Atlantide, Humanitas, Revista de antropología y cultura cristianas).
Foi membro, de 1993 a 2002, do conselho de redação da revista “Il Nuovo Areopago” e colaborador, de
1994 a 2012, da revista internacional “30Giorni”.
Traduzido
do italiano por André Langer. Acesse
a versão original desta entrevista, clicando aqui.
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