Para a Igreja, a hora é agora!
Não se conserva a verdade em naftalina
Carlo Molari
Teólogo
e padre italiano – ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de
Roma
Revista
“Rocca” – nº 22
15-11-2017
«Conservar
o depósito não significa manter as fórmulas e as doutrinas como elas
foram
expressas no passado, mas requer o desenvolvimento de todas as
virtualidades
contidas nos eventos aos quais as fórmulas se referem.».
Nesses
últimos tempos, o Papa Francisco
voltou várias vezes a refletir sobre o
caminho da verdade e do seu desenvolvimento na história. Sem dúvida, a SUA
PERSPECTIVA É EVOLUTIVA. Conservar o depósito não significa manter as fórmulas
e as doutrinas como elas foram expressas no passado, mas requer o
desenvolvimento de todas as virtualidades contidas nos eventos aos quais as
fórmulas se referem. O processo se
realiza adquirindo novos dados que envolvem ou a correção dos erros anteriores,
ou a sua coordenação com uma consciência nova.
A espécie humana, também, de
fato, está em evolução. Os sujeitos, através das relações e das experiências, mudam os modos
de pensar e renovam perspectivas, tornando-se, assim, capazes de profundas
mudanças culturais e espirituais. O Papa Francisco voltou a esse assunto em um
articulado discurso ao congresso organizado no 25º aniversário da constituição Fidei depositum, de João Paulo II (11 de
outubro de 1992), com a qual era publicado o Catecismo da Igreja Católica.
Ao Pontifício Conselho para a Promoção da Nova
Evangelização, o papa recordou que:
“Não é suficiente encontrar uma linguagem
nova para dizer a fé para sempre; é
necessário e urgente que, diante dos novos desafios e perspectivas que se abrem
para a humanidade, a Igreja possa expressar as novidades do Evangelho de Cristo
que, embora contidas na Palavra de Deus, ainda não vieram à tona”.
A
constituição Fidei depositum,
introduzindo o Catecismo, estabelecia também o horizonte do seu dinamismo: “Deve ter em conta as explicitações da
doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja. É
também necessário que ajude a iluminar,
com a luz da fé, as novas situações e os problemas que ainda não tinham surgido
no passado. O Catecismo incluirá, portanto, coisas novas e velhas (cf. Mt
13,52), porque a fé é sempre a mesma e
simultaneamente é fonte de luzes sempre novas”.
Nessa
perspectiva, o Papa Francisco desenvolveu uma reflexão sobre a evolução da
doutrina partindo da constituição dogmática do Vaticano II Dei Verbum, que disse: “A Igreja na doutrina, na sua vida e no seu
culto perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo aquilo em
que crê” (DV n. 8, Ev 1, 882).
“A
Palavra de Deus (comenta o papa) não
pode ser conservada em naftalina, como se fosse uma velha coberta a ser
protegida contra os parasitas! Não. A
Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, que progride e
cresce porque tende a um cumprimento que
os homens não podem parar. Só uma
visão parcial pode pensar o ‘depósito da fé’ como algo estático. O Espírito
Santo continua falando à Igreja e, para fazê-la progredir com entusiasmo, é
preciso se colocar em religiosa escuta”.
“Essa
lei do progresso, de acordo com a feliz fórmula de São Vicente de Lérins: ‘annis
consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate’ (consolida-se ao longo
dos anos, dilata-se no tempo, sublima-se com a idade, Commonitorium 23.9: Pl 50), pertence a uma peculiar condição da
verdade revelada na sua transmissão pela Igreja, e não significa, de modo
algum, uma mudança de doutrina”.
A
doutrina relativa à pena de morte
Como
exemplo concreto, o papa referiu-se à doutrina relativa à pena de morte, que
requer uma mudança do próprio Catecismo,
mesmo na sua última formulação. Na edição
de 1992, o parágrafo 2.266 dizia: “A doutrina tradicional da Igreja
reconheceu fundado o direito e o dever da legítima autoridade pública de
infligir penas proporcionais à gravidade do delito, sem excluir, em casos de
extrema gravidade, a pena de morte”.
A edição de 1997 especificava: “A
doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da
identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de
morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas
humanas de um injusto agressor. Contudo, se processos não sangrentos bastarem
para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve
servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições
concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa
humana. Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os
Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete,
sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os
casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito
raros, se não mesmo praticamente inexistentes’ (EV 56)” (n. 2.267).
O Compêndio do Catecismo publicado por Bento XVI em 2002, no número 469,
resumia: “A pena infligida deve ser proporcional à gravidade do delito. Hoje,
na sequência das possibilidades do Estado para reprimir o crime tornando
inofensivo o culpado, os casos de absoluta necessidade da pena de morte ‘são
agora muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’ (Evangelium vitae). Quando forem suficientes os meios incruentos, a autoridade deve
limitar-se ao seu uso, porque correspondem
melhor às condições concretas do bem comum, são mais conformes à dignidade
da pessoa humana e não retiram definitivamente ao culpado a possibilidade de se
redimir”.
Nesse
meio tempo, João Paulo II, na
mensagem de Natal de 1998, desejando o crescimento do consenso sobre as medidas
em favor do homem, indicara, entre as mais significativa, a de “banir a pena de morte” (L’Osservatore Romano, 28-29 de dezembro
de 1998, p. 7). Encontrando-se nos Estados Unidos um mês depois, repetiu o
desejo e o pedido: “A dignidade da vida
humana nunca deve ser negada, nem mesmo a quem causou um grande mal. A
sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar aos
criminosos a possibilidade de se revisarem. Portanto, renovo o apelo (...) para abolir a pena de morte, que é cruel e inútil”
(L’Osservatore Romano, 29 de janeiro
de 1999, p. 4).
O
Papa Francisco, hoje, refere-se tanto ao “progresso da doutrina por parte dos
últimos pontífices”, quanto à “mudança de consciência do povo cristão, que
rejeita uma atitude anuente em relação a uma pena que lesa pesadamente a
dignidade humana” e conclui com determinação: ela é “inadmissível”.
“Deve-se
afirmar com força que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que
humilha, de qualquer modo que seja perseguida, a dignidade pessoal. É, em si mesma, contrária ao Evangelho,
porque é decidido voluntariamente suprimir uma vida humana que é sempre sagrada
aos olhos do Criador e da qual só Deus, em última análise, é o verdadeiro juiz
e garante. Nunca homem algum, ‘nem sequer o homicida, perde a sua dignidade
pessoal’ (Carta ao presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte,
20 de março de 2015), porque Deus é um Pai que sempre espera o retorno do
filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e inicia uma nova vida. A ninguém, portanto, pode-se tirar não só a
vida, mas também a própria possibilidade de um resgate moral e existencial que
redunde em favor da comunidade”.
No
passado, o recurso a esse “remédio extremo e desumano” pareceu ser, na falta de
maturidade social e de instrumentos de defesa, “uma consequência lógica da
aplicação da justiça a que se deve ater”; até mesmo no Estado Pontifício,
muitas vezes, ela foi utilizada, “ignorando
o primado da misericórdia sobre a justiça”.
“Assumimos
as responsabilidades do passado e reconhecemos que aqueles meios eram ditados
por uma mentalidade mais legalista do que cristã. A preocupação por conservar
íntegros os poderes e as riquezas materiais levara a superestimar o valor da
lei, impedindo que se chegasse a uma maior profundidade na compreensão do
Evangelho. No entanto, permanecer neutros hoje diante das novas exigências para
a reafirmação da dignidade pessoal, nos tornaria mais culpáveis.”
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CARLO MOLARI teólogo italiano autor deste artigo |
O
papa especificou que não há contradição com o passado, porque a Igreja sempre
defendeu a vida humana desde o início até a morte natural; “é o desenvolvimento harmônico da doutrina”, que exige que se abra
mão dos argumentos “contrários à nova compreensão da realidade”.
“Nesse
círculo virtuoso, o diálogo revela a verdade, e a verdade se alimenta de
diálogo. A escuta atenta, o silêncio respeitoso, a empatia sincera, a
autenticidade de se pôr à disposição do estrangeiro e do outro são virtudes
essenciais a serem cultivadas e transmitidas no mundo de hoje.”
Mas
“toda a substância da doutrina e do
ensinamento” deve ser “orientada para a caridade que nunca terá fim”: “Sempre e em tudo deve-se enfatizar o amor
de nosso Senhor”. Como diz Paulo, “agindo de acordo com a verdade na
caridade, buscamos crescer em todas as coisas” (Efésios 4, 25). A fórmula
“agindo de acordo com a verdade” também poderia ser traduzida como “buscando a
verdade no amor” ou “realizando a verdade no amor”: o termo grego, de fato, é a
mesma palavra “verdade” conjugada como verbo, como se em português se pudesse
dizer: “verdadeando” [veritando, em
italiano] a existência na caridade, para expressar a ideia de que o amor sempre
torna verdadeira a existência.
Traduzido
do italiano por Moisés Sbardelotto.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 2 de novembro de 2017 – Internet:
clique aqui.
Vaticano II com direito de resposta
Andrea Grillo
Professor do Pontifício
Ateneu Sant’Anselmo, em Roma,
do Instituto Teológico
Marchigiano, em Ancona, e
do Instituto de
Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua
Adista Notizie – nº 38
04-11-2017
«O
fato de o próprio papa ter tomado papel e caneta e pedido formalmente que o
cardeal Sarah retificasse todos os graves mal-entendidos oferecidos pelo seu
comentário constitui uma passagem decisiva do pontificado de Francisco e da
implementação do Concílio.»
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PAPA FRANCISCO assina o decreto em forma de motu proprio Magnum Principium Domingo, 3 de setembro de 2017 |
O
caso da carta de 15 de outubro, com
a qual o Papa Francisco pontualizou o conteúdo do motu proprio Magnum Principium [clique aqui para ler e baixar], tem algo de exemplar para a história da Igreja dos últimos
50 anos.
De
fato, depois de uma primeira fase de entusiasmo pela liturgia, o magistério
eclesial pós-conciliar, a partir dos anos 1980, começou, cada vez mais, a se
tornar desconfiado e quase a se desesperar com a liturgia e a reforma da
Igreja.
Ou,
melhor, foi se criando uma espécie de equação: assim como à Reforma litúrgica devia se seguir a reforma da Igreja,
assim também a resistência à liturgia significava, para muitos, a restauração
da Igreja pré-conciliar.
Especialmente
a partir do início do novo milênio, sobretudo por iniciativa direta e coerente
de Joseph Ratzinger – primeiro como
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, como Papa Bento –
lançaram-se as premissas desse “desespero
litúrgico”: com a Liturgiam
authenticam (2001), estabelecia-se o primado absoluto da língua latina
sobre as línguas faladas; com a Redemptionis
Sacramentum (2004), desconfiava-se da “assembleia celebrante”; com o Summorum Pontificum (2007), criava-se
até um “regime paralelo extraordinário” em relação à liturgia reformada.
A
tentativa de compreender essa tendência como “fidelidade ao Concílio Vaticano
II” soava como retórica vazia, que escondia
a remoção do próprio Concílio.
O
Papa Francisco, embora mantendo um perfil baixo sobre a liturgia até alguns
meses atrás, a partir de meados deste ano, compreendeu melhor que, nesse
âmbito, escondia-se uma das oposições mais insidiosas não tanto ao seu
pontificado, mas à implementação do Concílio Vaticano II, que parece ser o
coração do seu pontificado.
Assim,
depois de reiterar a irreversibilidade
da Reforma litúrgica e a vaidade de toda tentativa de “reforma da reforma”,
ele interveio com o Magnum Principium
para reabrir o terreno da “inculturação”
nas traduções dos textos litúrgicos.
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Cardeal Robert Sarah Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos |
A
tentativa paradoxal e quase cômica com a qual o cardeal Sarah se opôs a essa justa retomada do Vaticano II chegou a
propor, com a autoridade de prefeito da Congregação do Culto, uma interpretação
“autêntica” do Magnum Principium, que
gritava vingança ao céu, por contrariedade em relação ao texto oficial.
O fato de o próprio papa ter tomado
papel e caneta e pedido formalmente que o cardeal retificasse todos os graves
mal-entendidos oferecidos pelo seu comentário constitui uma passagem decisiva do pontificado de Francisco e da
implementação do Concílio.
Ele estabelece que:
* deve acabar a tentativa de reduzir o
Vaticano II a nada, como aconteceu muito frequentemente nesses últimos 30
anos, com a complacência de amplos setores da hierarquia;
*
a autoridade das Conferências Episcopais
não pode ser simplesmente passada por cima por parte do centralismo romano;
*
a tentativa desajeitada de fazer com que os textos digam aquilo que se quer
deve ser abertamente censurada, especialmente quando quem faz isso são
autoridades que deveriam usar responsavelmente o seu poder;
*
existe uma evolução do Magistério e
que, nem no centro nem na periferia, pode-se acreditar que se está autorizado a
continuar por inércia nas práxis anteriores;
*
a retomada de um diálogo profundo entre Igreja e mundo, entre fé e cultura, é uma passagem pastoral vinculante, que
ninguém, nem mesmo um prefeito, pode sonhar de evitar.
A
carta foi endereçada apenas ao cardeal Sarah. Mas, na realidade, ela fala a
todos aqueles que, no centro assim como na periferia, pensaram que poderiam
simplesmente fazer como se nada tivesse acontecido, perpetuando um estilo
eclesial tão irrelevante quanto autorreferencial, talvez disfarçando-se de
“Igreja em saída”, o que, certamente, a Sarah, não podemos repreender de modo algum.
Traduzido do
italiano por Moisés Sbardelotto.
Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 2 de
novembro de 2017 – Internet: clique aqui.
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