Quem ensina o racismo às crianças?
Nós mesmos, ué
RITA LISAUSKAS*
Com a gente, claro, óbvio, com as mesmas pessoas que
as ensinam a comer e a andar
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Vídeo com teste aplicado no México sobre racismo entre crianças Tradução: "Bem, eu sou um pouco como este" |
No
mês das mães deste ano, eu participei de um evento sobre maternidade e havia,
no palco, várias mulheres brancas, formadoras de opinião (sabe-se Deus o que
isso significa), falando sobre os desafios da maternidade moderna ou coisa que
o valha. Eu, na plateia, estava sentada a duas ou três cadeiras de uma mãe que era negra. Lá pelas tantas,
quando abriram o debate para perguntas, essa
mulher contou que sua filha de pouco mais de 4 anos tinha acabado de ser
matriculada na escola e estava sofrendo o pão que o diabo amassou. Nos
primeiros anos em casa, ao lado da família, sempre ouviu o quanto era especial,
o quanto seus cabelos crespos eram lindos mas, na escola, ouvia o oposto de
crianças da mesma idade. Os coleguinhas de classe diziam que ela era feia. Que
seu cabelo era horrível. O que adianta
proteger e fortalecer a autoestima da minha filha se o mundo lá fora é assim,
tão cruel com as meninas negras?, perguntou às ‘formadoras de opinião’,
surpresas por terem sido retiradas a fórceps daquele mundo lavanda da
maternidade perfeitinha, onde estavam prontas para falar sobre tudo que não
incluísse esse assunto tão urgente.
A
primeira pegou o microfone e disse àquela mãe coisas no estilo
o-que-não-mata-fortalece, sua-filha-vai-ser-uma-guerreira-como-você enquanto as duas outras, em seu socorro,
soltavam algumas frases soltas no mesmo estilo
‘não-importa-o-que-os-outros-pensam-o-que-importa-o-que-você-carrega-no-coração’,
para a incredulidade da mãe e vergonha alheia de muitas, que não sabiam onde
enfiar a cara e ficavam procurando o botão eject
na cadeira onde estavam sentadas.
Minutos
depois, pedi a palavra e, tentando me desculpar, joguei uma pergunta à
audiência: Não seríamos nós os
responsáveis pelo inferno que vivia essa criança? Nós, os pais e mães das crianças brancas com as quais ela convive? Não
teria sido com a gente que elas teriam aprendido a dizer tamanhas aberrações às
crianças negras? Ou será que meninos e meninas já saem da maternidade
classificando “cabelo bom”, “cabelo ruim”, “nariz bom”, “nariz ruim”? Não precisamos prestar atenção, dobrar o
cuidado, perceber que fomos nós que ensinamos às crianças a tratar mal aquela
menina na escola?, perguntei.
Silêncio.
Todos
logo fizeram aquela cara de ‘não, eu não faço isso’, e a prosa mudou de rumo,
né, vamos falar outra coisa.
Corta
para semana passada.
Thaís Araújo, a atriz, disse mais ou
menos o mesmo que aquela mãe no evento de dia das mães, só que com outras
palavras e em um TEDx São Paulo**. Ela comentou que a cor do filho “é aquela que
faz com que as pessoas atravessem a rua”. Também não foi compreendida, mas foi
logo classificada de “mimizenta” e vitimista pelas redes sociais, sempre elas. Os adultos brancos, aqueles que dizem
sempre “não, nada a ver esse papo de racismo”
logo se uniram para desqualificar a fala da Thaís, fazendo memes
para ridicularizar sua afirmação. Alguma
reflexão sobre o assunto ou mea-culpa?
Não, nenhuma, não somos racistas, ora,
ora, somos uma nação miscigenada, blá, blá, blá, whiskas sachê.
Corta
para alguns dias atrás.
Uma
mulher que se diz socialite (o que é
socialite, afinal?) grava um vídeo praticando o crime de racismo. Repete
aquelas coisas todas que a menina do início do post ouve todos os dias na
escola, mas para outra menina negra: Titi,
filha dos atores Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank. No vídeo, a tal mulher chama a criança de “macaca”. Disse que a
guria é “horrorosa”, porque tem “cabelo de pico de palha”. Termina dizendo que é
“sua opinião” e que não tem medo da polícia e nem da Justiça. Não tem que ter
medo mesmo, estamos no País da impunidade.
Mas
agora me diz uma coisa: onde você acha
que as crianças aprendem a ser racistas?
Com a gente, claro, óbvio,
com as mesmas pessoas que as ensinam a comer e a andar. Com as mesmas pessoas que,
ao se deparar com um negro bem-vestido no elevador, “estranham” e verbalizam esse
“estranhamento” (???) na frente dos filhos. Com as mesmas pessoas que
atravessam a rua ao ver um negro bem-vestido ou mal-vestido, vai quê, né, tem
cara de ladrão! Com os telejornais que
sempre tratam o negro como “traficante” e o traficante branco como “adolescente
classe média da zona sul”. E com as novelas, que sempre colocam os negros como serviçais.
Sabe
de quem é a culpa? Nossa. De mais ninguém. Duvida? Assista a esse experimento sobre racismo feito com crianças mexicanas e
comece a pensar sobre as respostas. Dois bonecos, um branco e outro negro,
são colocados em frente a crianças de diferente raças. Uma entrevistadora
questiona as crianças, uma a uma: “Qual boneco é bonito? E qual é feio?” Elas elegeram os bonecos negros como
“feios”, “perigosos” e “não confiáveis”. Quando eram perguntadas o por quê
de tal escolha, não conseguiam dizer. Alguém
passou esse conceito para as crianças. Adivinham quem? Sim. Nós.
Clique sobre a imagem para assistir ao vídeo:
*
RITA LISAUSKAS é jornalista e escritora. Autora do “Mãe Sem
Manual”, Editora Belas Letras, é também colunista da Rádio Eldorado. É mãe do
Samuel e madrasta do Raphael e do Lucca.
** O TEDxSãoPaulo
tem como objetivo disseminar ideias e compartilhar experiências inspiradoras
para gerar discussões profundas e reflexões entre os participantes. O
TEDxSãoPaulo tem licença de TED, uma
organização sem fins lucrativos, que tem a missão de promover ideias. Hoje, as
palestras TED, ou TEDTalks, são referência mundial e vistas por milhões de
pessoas no mundo todo.
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