Os saudosistas de um catolicismo medieval
Antes era melhor?
Massimo
Faggioli
Professor
de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University (EUA)
COMMONWEAL
13-11-2017
Não
é surpresa que a Idade Média substituiu o período moderno no novo cânone do catolicismo neotradicionalista; a
distância fornecida pelo tempo dá uma impressão
conveniente de estabilidade. O problema é como ele está sendo usado para
uma função puramente antimoderna; é
uma visão ideológica da história, e
um cul-de-sac [beco-sem-saída] muito perigoso, teológica e politicamente.
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SESSÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO Arte de Matthias Burglechner - século XVI |
No dia 31 de outubro deste ano, os
católicos e protestantes marcaram, com espírito ecumênico e em tom polêmico, o aniversário do começo da Reforma.
Poucos dias depois – 4 de novembro – veio a festa de São Carlos Borromeu, um dos grandes santos da
Contrarreforma, ou “Reforma Católica”, ou ainda do “catolicismo moderno
primitivo”, dependendo da interpretação histórico-teológica preferida dada a
este longo período.
Borromeu,
Santo Inácio de Loyola, São Felipe Neri e outros estiveram, certa vez,
associados com a “idade de ouro” do catolicismo confessional, mas hoje esta
época não parece tão dourada mais. Algumas
das reações contra o Papa Francisco parecem ser a expressão da (ou parecem
expressar um novo encantamento com a) cristandade
medieval.
O
debate atual sobre o pontificado de Francisco revela uma abordagem interessante
da história, especialmente entre os que acusam o papa de promover o caos nas
formas da instabilidade disciplinar e incerteza teológica entre os fiéis. Ele
pressupõe uma visão particular deste pontificado e do chamado “catolicismo do
Vaticano II”, em oposição à narrativa
histórica do período pré-Vaticano II como um tempo de estabilidade e certeza.
Há os que acreditam que o Vaticano II
marcou o início de uma era de crise e desafios existenciais no catolicismo.
Citam dados sobre a afiliação religiosa em declínio, a queda no número de
clérigos e religiosos e apontam para os escândalos sexuais e financeiros. Mas
é, na verdade, a mudança nos costumes sexuais que levam os críticos do Vaticano
II a ver o colapso do catolicismo como um fruto do Concílio. Além disso, a visão deles sobre os papas destes últimos
50 anos se solidificou:
* Paulo VI é visto como um enigma, uma vítima – na melhor das
hipóteses – de sua própria ingenuidade sobre a possibilidade de resgatar o
catolicismo do progressismo radical;
* João Paulo II é poupado da associação com o Vaticano II e o pós-Vaticano II por meio
de sua identificação com o anticomunismo e sua mensagem antiabortista;
* enquanto Bento XVI tem estado sujeito à
apropriação neotradicionalista.
* Quanto ao Papa João Paulo I – que serviu por
apenas 33 dias e de quem Francisco recentemente reconheceu as “virtudes
heroicas” e, portanto, encontra-se no caminho para uma possível santidade –,
resta saber se a Igreja descobrirá o “centrismo do Vaticano II” com o qual ele
se identificava.
Esta leitura apocalíptica do
Vaticano II não é novidade. Mas a forma como
os seus adeptos, hoje, veem a história pré-Vaticano II – especialmente o
período entre a Idade Média e a atualidade – é nova, e muito mais nostálgica.
Já
na época do Vaticano II, a oposição dos céticos ou antagonistas das reformas
conciliares tendem a separar os dois mundos: a Igreja pré-Vaticano II e a
Igreja do Vaticano II – uma marcada pela certeza e a outra pela incerteza;
tradição e estabilidade x reforma e revolução. Naquela época, durante os
debates conciliares e o começo da Igreja pós-Vaticano II, a Igreja pré-Vaticano
II era vista como mais simples, já que geralmente estava identificada com o
Vaticano I (na maior parte, com a noção da primazia papal e da infalibilidade),
com o Concílio de Trento e com a Igreja tridentina.
Antes
do Concílio Vaticano II não havia estabilidade
A
verdadeira narrativa histórica da era pós-Vaticano II ainda precisava tomar
forma. Porém o trabalho dos historiadores nestes últimos 50 anos tornou o
quadro da Igreja pré-Vaticano II mais complicado do que fariam aqueles chocados
pelo Vaticano II. O período pré-Vaticano
II, na realidade, não era mais estável – em termos teológicos, sociais e
políticos – do que iriam ser os anos pós-Vaticano II. Por exemplo, embora o
Concílio de Trento (1545-1563) possa
ter ajudado a centralizar o poder no papado e “romanizado” o catolicismo (na
liturgia e em outras áreas), ele também
levou a um longo período de crises na aplicação das reformas introduzidas.
Para alguns, como o
estabelecimento de seminários para a formação presbiteral, mais de um século se
passaria antes que a maior parte das dioceses a implementasse. Roberto Bellarmino, um dos
teólogos mais importantes do período pós-Trento, enviou ao Papa Clemente VIII
um memorando na virada do século XVII indicando que o concílio havia sido um
fracasso e que se fazia necessário um outro concílio.
Em
seguida, houve as guerras religiosas que
devastaram a Europa até 1648 (terminadas por um tratado de paz internacional
que humilhava o papado ao reduzir o seu papel no mundo), bem como a luta
católica feroz interna sobre “o que aconteceu em Trento” (o conflito entre o
padre veneziano e estadista Paolo Sarpi
e o jesuíta romano Pietro Sforza
Pallavicino é particularmente ilustrativo), que só se encerrou na segunda
metade do século XX com a “História do
Concílio de Trento”, obra em quatro volumes de Hubert Jedin.
A corrupção na Roma papal condenada por
Lutero fora dissipada somente no final do século XVII, sob os papados de
Inocêncio XI e Inocêncio XII – isto é, quase
dois séculos depois da viagem de Lutero a Roma. Em outras palavras, os anos
pós-Trento não exemplificam, na verdade, a noção de um cristianismo
perfeitamente estável.
Os anos pós-Vaticano I
dificilmente são um exemplo melhor. Este período ficou marcado não só pelo pequeno
cisma dos católicos que se recusaram a aceitar as novas doutrinas a respeito do
poder papal, mas também – e isso é o mais importante – pela tragédia mais grave na história intelectual
moderna do catolicismo: a purga antimoderna iniciada em 1907 sob o comando de
Pio X (hoje São Pio X) e o serviço secreto do Vaticano que ele criou para
espionar os teólogos. A declaração da infalibilidade papal era uma resposta
a – mas não uma solução para a – perda do poder temporal e do isolamento
internacional do Vaticano. Depois, seguiu-se a ascensão do marxismo e a
cooperação católica com o nacionalismo, levando à Primeira Guerra Mundial, ao
fascismo e ao nazismo. A cooperação dos católicos franceses na Action Française
levou Pio XI dispensar o jesuíta Louis Billot de seu título de cardeal em 1926.
Estas coisas parecem sinais de
estabilidade?
Vejamos também o que o
futuro Papa João XXIII disse em suas visitas a paróquias e dioceses pela Europa
nas décadas de 1920 e 1930, primeiro como secretário de seu bispo no norte da Itália, depois como
enviado papal para angariar verbas a missões no começo dos anos 20 e,
finalmente, como diplomata papal na Bulgária. Nesse país, ele ficou surpreso
com o estado miserável da disciplina eclesiástica, especialmente com respeito à
obediência e à castidade entre o clero. Sobre um padre que tinha, de fato, uma
família, o futuro papa observou: nisi
caste, saltem caute – “se não se
consegue ser casto, pelo menos tenha cautela”. O debate sobre o celibato não é um fenômeno pós-Vaticano II; antes do
concílio, alguns grupos de bispos exigiam que se abordasse a questão. Não só
foram ignorados, mas a petição deles foi
expurgada do registro oficial do Vaticano II, como descobriu há poucos anos
o historiador da Igreja brasileiro José Oscar Beozzo.
Portanto, o constructo de um
período tumultuado pós-Vaticano II versus
a calmaria dos períodos pós-Trento e pós-Vaticano I parece menos credível. E talvez isto explique o
neomedievalismo de certas vozes dentro do catolicismo americano, uma espécie de
duplicação das certezas do passado. Não são só os tuítes de uns poucos tradicionalistas radicais católicos, mas algo
que parece estar acontecendo no nível intelectual também. Tive essa impressão
com algumas das obras que li nos últimos cinco anos ou mais.
Entre
o “Defending Constantine”, de Peter
J. Leithart, e o “The Unintended
Reformation”, de Brad Gregoryi, parece
que até mesmo o pensamento teológico está tendendo em direção à cristandade
medieval. (Não se trata apenas de uma síndrome católica, como ilustram as
tensões entre as comunidades “tradicionais” e “modernas” ortodoxas orientais
nos EUA).
Houve
também uma série de artigos publicados em First
Things sobre a necessidade de se redescobrir uma cristandade viável e,
claro, uma cosmovisão dedicada, expressa por Rod Dreher em “The Benedict Option”. Em artigo recente
de Ross Douthat dedicado à Reforma Protestante, podemos claramente ver o
enquadramento da Reforma como notoriamente próximo ao pré-Vaticano II (e à
cultura anti-Vaticano II da Fraternidade Sacerdotal São Pio X) – um
“Weltanschauung católico”, isto é, um
enquadramento do nosso tempo na genealogia dos “erros modernos”: a Reforma
que destrói a unidade da cristandade ocidental e que inaugura o liberalismo
social, político e teológico que, finalmente, nos deu Donald Trump. Um fascínio renovado com o medievalismo
teológico também parece relacionado com a reação de setores particulares do
cristianismo anglo-europeu, do catolicismo branco americano a desafiar a
perspectiva da chamada “América pós-cristã” e a solicitação de um paradigma
teológico que sustente uma ordem mundial “pós-liberal”.
Na
qualidade de católico europeu italiano que se mudou para os Estados Unidos em
2008 e que tem lecionado e escrito sobre o catolicismo, penso ser impossível
superestimar a influência clara da
imaginação medieval católica no catolicismo americano em comparação a todas
as outras igrejas católicas no mundo. Esta influência é poderosa, vista não
apenas na arquitetura dos campi universitários, mas na maneira como a Igreja
deste país quer ser percebida “pelo mundo” em geral. Além do cânone teológico
que abrange os séculos entre Agostinho e Tomás de Aquino, parece haver bastante
espaço tanto para o antimodernismo quanto para o pós-modernismo.
Sempre
houve um movimento contrário ao Vaticano II, mas também tem existido um
“catolicismo aconciliar” mais sutil –
como se o Vaticano II nunca tivesse acontecido ou que
errou
em muitas coisas (a narrativa antimoderna), ou que o Vaticano II é
um
passé e nada tem a nos dizer hoje (a
abordagem pós-modernista).
Mas
agora parece haver menos espaço para o que a teologia católica (incluída a
teologia política)
foi entre o
período moderno inicial (Erasmo incluído) e a nouvelle théologie
que
levou ao Concílio Vaticano II.
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MASSIMO FAGGIOLI Especialista em História da Igreja & Teologia Católicas |
Além
disso, o chamado movimento de “reforma
católica”, do final do século XV em diante (incluindo Trento), parece ter se
tornado demasiado moderno para os que leem a hermenêutica ratzingeriana da
“continuidade versus descontinuidade” como uma rejeição, pura e simples, de
qualquer desenvolvimento histórico-teológico na tradição católica, esquecendo-se que Bento XVI falou sobre
“continuidade e reforma”.
O “ressourcement” [retorno às fontes] como
antimodernismo e anti-histórico,
e o pós-modernismo como pós-tradicional
e pós-histórico: tal polarização de visões da história da Igreja é um dos
aspectos particulares da recepção teológica do Vaticano II nos Estados Unidos. O Papa Francisco não causou esta involução
intelectual, mas, hoje, ele precisa lidar com ela. Veja-se a reação
negativa às suas recentes declarações sobre a pena de morte; as reações contra Amoris Laetitia surgem aqui também.
A redução da tradição
católica a um catolicismo medieval imaginário tem consequências significativas
para a vida intelectual da Igreja Católica nos Estados Unidos, e para a maneira
como ela percebe e responde “politicamente” às mudanças sociais e cultuais dos
últimos 50 anos. Não é surpresa que a Idade Média substituiu o período moderno no novo
cânone do catolicismo neotradicionalista; a distância fornecida pelo tempo dá
uma impressão conveniente de estabilidade. O problema é como ele está sendo
usado para uma função puramente antimoderna; é uma visão ideológica da
história, e um cul-de-sac [beco-sem-saída]
muito perigoso, teológica e politicamente.
Traduzido do inglês por Isaque Gomes Correa, com correções de Telmo José Amaral de Figueiredo. Acesse a versão original deste
artigo, clicando aqui.
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