«A terra inabitável»
Choque de tempo
Ladislau Dowbor
Economista
Doutor em Ciências Econômicas pela Escola
Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da
Umesp
Um
livro que traz o futuro para o presente:
o
desastre não está longe, mas bem perto!
Edição brasileira publicada pela Companhia das Letras em julho de 2019 |
Wallace-Wells escreveu
um livro que está dando nas pessoas um tipo de “choque de tempo”. Todos
andamos preocupados com a MUDANÇA CLIMÁTICA, hoje com exceção de gente que
acredita que vacina gera autismo, que o planeta terra é plano, que o mundo foi
criado há alguns milênios no espaço de seis dias e crenças semelhantes. Mas as
nossas preocupações parecem se diluir numa noção imprecisa do tempo que
chamamos vagamente de “futuro”. Ou seja, sim, será uma catástrofe, mas é
no longo prazo, e até lá Deus sabe o que poderá acontecer, ou que tecnologia
salvadora vai aparecer. Neste livro, o autor traz o futuro para o presente.
Não é imagem. A partir da leitura, eu
me dei conta da dificuldade que temos em “sentir” o tempo que temos pela frente.
As catástrofes previstas para 2050 parecem muito distantes, quase
imprevisíveis, e as de 2100 quase míticas. No entanto, ao participar da
festa do primeiro aniversário do meu netinho Leonardo, me dei conta que em 2050
ele terá 30 anos, e que em 2100 ele terá a minha idade, desta pessoa que
está escrevendo estas linhas. Ou seja, a escala de tempo em que estamos
falando representa na realidade o curto espaço de uma vida. E se trata
deste menino que tenho aqui pela frente, com suas bochechas e sorriso
esperançoso.
A dimensão psicológica do tempo é
até divertida. Com os meus alunos, discuto na primeira aula do semestre que
artigo cada um terá de redigir. Para eles, como o artigo é para o fim do
semestre, o tempo que eles “sentem” ter para pesquisar e redigir o artigo
parece muito distante. No entanto, no pânico generalizado duas semanas antes da
entrega do artigo, olhando para trás, o semestre que estão concluindo parece
que encolheu radicalmente. Mesmo para mim, a crise mundial de 2008 parece que
foi ontem, estamos em plena discussão de medidas a tomar, mas o ano 2030, com
idêntica distância em anos, encontra-se na minha mente na neblina das vagas
possibilidades. No entanto, o tempo realmente existente é inexorável, e
avança com rigor e rapidez.
Edição original em inglês publicada por: Tim Duggan Books (Penguin), New York, 2019 |
Wallace-Wells trouxe para dentro do
tempo sensível e previsível 12 eixos de transformação, todos ligados à mudança
climática. Assim, traz os dados concretos das mortes que geram:
1) os
excessos de temperatura que já vivemos hoje,
2) da fome
ligada aos impactos sobre a agricultura,
3) das mortes
por inundações que se observam em muitas partes,
4) da
expansão das áreas de queimadas florestais,
5) da
articulação dos diversos subsistemas de intervenção sobre a natureza,
6) do
esgotamento da água doce,
7) da
mortalidade nos oceanos,
8) da
contaminação do ar,
9) do
surgimento de novas pragas,
10) do colapso
econômico,
11) dos
conflitos climáticos,
12) dos deslocamentos
sistêmicos.
O autor não é catastrofista,
simplesmente faz as contas, e em particular junta os dados que aparecem
fragmentadas em numerosas pesquisas dispersas, segundo as especialidades
dos pesquisadores e das instituições de pesquisa, como por exemplo os estudos
sobre as superbactérias resistentes, sobre a contaminação da água
pelos agrotóxicos, o derretimento das geleiras e assim por diante.
Juntou as peças e as articulou nos diversos ritmos de transformação. O
resultado é um mapa extremamente concreto e perceptível do nosso amanhã.
O livro é muito bem
documentado. Todos os dados apresentados estão amarrados com 65
páginas de notas e fontes, felizmente reunidas no fim do texto, que se
torna ao mesmo tempo muito leve na leitura e solidamente referenciado. E
precisamos disso, pela própria fragilidade, que vimos acima, da nossa percepção
do tempo futuro. Esforços neste sentido não faltam, com James Lovelock
que nos deu a “hipótese Gaia”, que apresenta o nosso pequeno planeta como um
ente quase vivo no seu conjunto, com Buckminster Fuller que popularizou
a imagem da “espaço-nave terra” para salientar a sua fragilidade e a
necessidade de todos sermos tripulação que preserva, e não passageiros que se
servem. E temos a tão simbólica imagem dos astronautas que se referiram à “bolinha
azul” que viram do espaço, tão pequena e vulnerável. (pág. 227) Fortalecer o
imaginário ajuda.
Wallace-Wells não é um sonhador, e
se refere ao conceito de “aparato de justificativas” utilizado por Thomas
Piketty.
“Todas as alternativas terão de fazer face aos
interesses corporativos enraizados e ao viés ‘status-quo’ de consumidores
relativamente contentes com a vida que hoje levam”. (pág. 180)
“A mudança climática exige
compromissos políticos muito mais amplos do que a fácil participação com
simpatia retórica, confortável tribalismo partidário e consumo ético.” (pág. 186)
O que enfrentamos é “nada menos que um redesenho completo dos sistemas
energéticos, de transporte, das infraestruturas, da indústria e da
agricultura.” (pág. 179) E isto aponta para “a necessidade de se gerar
um sistema de governo global, ou ao menos cooperação internacional, para
coordenar tal projeto.” (pág. 178)
E as responsabilidades têm de ser colocadas
onde cabem:
“Atualmente, os ricos do mundo são donos
da parte de leão de culpa:
os 10% mais ricos produzem a metade de todas
as emissões...
As campanhas de desinformação e negação
das corporações constituem provavelmente um caso mais forte de vilania.
Uma performance mais grotesca de maldade
(evilness) corporativa
é difícil de ser imaginada,
e dentro de uma geração,
a negação sustentada por interesses do
petróleo
serão provavelmente vistas como uma das
conspirações mais odiosas
contra a saúde humana e o bem-estar
que tenha sido perpetrada no mundo moderno.” (pág.
149)
DAVID WALLACE-WELLS Autor de "A terra inabitável: uma história do futuro" |
Eu, naturalmente, gostei em
particular do capítulo intitulado “Crisis Capitalism”, em que o desvio
financeiro (“endless financialization”) e a resistência de
interesses corporativos aparece com força. O autor cita, entre outros, Paul
Romer, “Nobel” de economia e economista chefe do Banco Mundial segundo o qual
“a macroeconomia, esta ‘ciência do capitalismo’, era algo como um
campo de fantasia, equivalente à teoria das cordas, que já não tinha
qualquer legitimidade em dizer que descreve corretamente os funcionamentos da
economia real.” (pág. 165)
A ideologia nisso? Acho precisamos todos do choque de realismo que este livro
traz. Não se deve negar os avanços das últimas décadas, como não se
pode deixar de ver que os próprios avanços tecnológicos exigem mudanças
profundas em termos de organização política e da governança corporativa, que em
vez de avançar têm regredido. E para pensar as formas de reorganização das
regras do jogo nas nossas sociedades, nada como ter uma visão concreta e
realista dos desafios.
O nosso tempo nisso?
Trata-se “de um cálculo de cabeça bem limpa:
o mundo tem, quando muito, cerca de três décadas
para
uma descarbonização completa
antes
dos horrores realmente devastadores do clima começarem.
Não
há meio-termo no caminho da solução
para
uma crise tão ampla.” (pág.
214)
Três décadas. O meu netinho Leo terá
trinta e um anos.
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