É a economia, cara!

O ditador, a sua “obra”,
e o grande blefe do senhor Guedes

José Luís Fiori*

«Ainda é tempo de impedir que o fanatismo ideológico do senhor Guedes destrua 90 anos de história da economia brasileira, para atender ao interesse de um pequeno grupo de
banqueiros, financistas e agroexportadores,
passando por cima do interesse do “resto” da sociedade brasileira»

Bem antes das urnas eletrônicas, o Brasil viu um rinoceronte conquistar 100 mil votos e um chimpanzé chegar aos 400 mil. Nasceu assim, em 1959, o voto protesto, que colocou o Rinoceronte Cacareco como vereador de São Paulo. Anos depois, em 1988, o Macaco Tião ficou em terceiro na disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro.

IG São Paulo, 21-09-2014.
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GENERAL AUGUSTO PINOCHET (1915-2006)
Ditador do Chile de 1973-1990

É comum entre os economistas neoliberais elogiar o Chile e considerá-lo um modelo econômico que deve ser imitado. Mais do que isto, no Brasil do capitão Bolsonaro, é costume elogiar a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), que concedeu um poder quase absoluto a um grupo de jovens economistas – liderados pelo superministro Sergio de Castro – para aplicar, ainda na década de 1970, o primeiro grande “choque neoliberal” do mundo. Este transformou o Chile num verdadeiro “laboratório de experimentação” e numa espécie de “modelo de exportação” e propaganda das políticas e reformas liberais defendidas pela “Escola de Chicago”, que era o templo mundial do ultraliberalismo econômico naquela época. No entanto, a verdadeira história dessa “experiência econômica” chilena costuma ser falsificada, para induzir uma comparação que é inteiramente espúria, e um engodo que é inteiramente ideológico. Senão vejamos, ainda que de forma extremamente sintética, alguns dados importantes dessa história, começando por algumas informações mais elementares, porém indispensáveis para quem se proponha a fazer comparações entre economias e entre países.

No dia do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende – 11 de setembro de 1973 –, o Chile tinha apenas 10 milhões de habitantes, cerca de 1/21 da população brasileira, e tinha um PIB de U$ 16,85 bilhões, uma partícula de 1/130 do PIB brasileiro atual. O Chile não possuía petróleo nem autonomia energética, estava longe da autossuficiência alimentar, e além disso, não tinha indústria pesada, nem dispunha de setor produtivo estatal relevante que não fosse na indústria do cobre.

A economia chilena era quase inteiramente dependente da produção do cobre, e além deste, só exportava madeira, frutas, peixes e vinhos. Ou seja, dependia inteiramente das suas importações de petróleo e derivados, de produtos químicos, de materiais elétricos e de telecomunicações, de máquinas industriais, de veículos, de gás natural e de alimentos, quase tudo que era essencial para a reprodução simples da sociedade chilena. Por fim, o Chile era um país isolado, talvez o mais isolado do mundo, com pequena expressão demográfica, e nenhuma relevância militar ou geopolítica que não fosse para a Argentina, na Patagônia, e para a Bolívia e o Peru, na região do Atacama.

Pois bem, foi nesse pequeno país, com características econômicas, demográficas e geopolíticas extremamente simples, que se utilizou pela primeira vez o pacote das tais reformas que depois viraram um “mantra” repetido pelos governos neoliberais, em todo o mundo:
a) flexibilização ou precarização do mercado de trabalho;
b) privatização do setor produtivo estatal;
c) abertura e desregulação de todos os mercados, e em particular, do mercado financeiro;
d) abertura comercial radical e fim de todo tipo de protecionismo;
e) privatização das políticas sociais de saúde, educação e previdência; e finalmente,
f) privatização inclusive dos serviços públicos mais elementares, tipo água, esgoto, e de fornecimento de energia e gás.

No caso do Chile, este programa foi aplicado durante os 17 anos da ditadura militar, sem enfrentar nenhum tipo de oposição política ou parlamentar, e com total apoio de um ditador que assassinou 3.200 opositores, prendeu e torturou 38 mil pessoas e obrigou ao exílio mais de 100 mil chilenos. Para não falar do fato de que, de 1973 a 1985, o governo militar impôs “toque de recolher”, ou “toque de queda”, das 10 horas da noite às 6 horas da manhã, valendo para todos os chilenos, e não apenas para 30 ou 40 portadores de tornozeleiras eletrônicas. Ou seja, durante 12 anos, toda a população chilena foi obrigada a ficar fechada em suas casas, todas as noites, como se estivesse internada num campo de concentração, e se alguém fosse surpreendido na rua no horário proibido, podia ser preso ou fuzilado, sem direito de apelação.

No entanto, apesar de tudo isto, os resultados econômicos das políticas e reformas neoliberais dos “Chicago Boys” do ditador Pinochet foram absolutamente medíocres, para não dizer que foram catastróficas,
ao contrário do que pensa o “superministro” de Economia do capitão,
e do que diz toda a imprensa conservadora.

Para entender esse blefe ou engodo, vejamos alguns fatos e números mais importantes, pa ra não cansar os que não gostam muito de cifras e estatísticas econômicas e sociais. Mas antes de entrar nos números, é fundamental que os leitores separem o que foi a história da ditadura, entre 1973 e 1990, daquilo que ocorreu depois do fim da ditadura, entre 1990 e 2019. Além disso, dentro da história econômica da ditadura, é necessário distinguir dois grandes períodos: o primeiro, que foi de 1973 a 1982, e o segundo, de 1982 até 1990.
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SERGIO DE CASTRO
O superministro da Economia chileno durante parte da ditadura de Augusto Pinochet

Choque ultraliberal colocou o Chile de joelhos

Pois bem, foi no primeiro destes dois períodos econômicos da ditadura [1973 a 1982] que os “Chicago Boys” do general Pinochet aplicaram seu grande choque neoliberal, que culminou com uma crise catastrófica, em 1982, e obrigou o governo militar a estatizar o sistema bancário chileno, demitir o seu superministro da Economia e reverter várias das reformas que haviam sido feitas. Como aconteceu, por exemplo, com a volta atrás da desregulamentação do setor financeiro e da própria política cambial que vinha sendo praticada pelo Banco Central do Chile.

Para que se tenha uma ideia da magnitude desse desastre neoliberal, basta dizer que, em 1982:
1. o PIB chileno caiu 13,4%,
2. o desemprego chegou a 19,6% e
3. 30% da população chilena se tornou dependente dos programas de assistência social que foram criados ad hoc, para enfrentar a crise.
4. E assim mesmo, quatro anos depois, já em 1986, o PIB per capita chileno ainda era de apenas US$ 1.525, inferior ao patamar que havia alcançado em 1973.

No final da ditadura, o PIB real per capita médio do Chile havia crescido apenas 1,6% ao ano, um resultado muito próximo da estagnação econômica, ao qual se deve somar uma taxa de 18% de desemprego, e de 45% da população situada abaixo da linha de pobreza. No ano de 1990, o PIB per capita médio dos chilenos, calculado com base na paridade do poder de compra, era de apenas US$ 4.590, inferior ao do Brasil, que naquele momento, depois da “década perdida” de 1980, ainda era de US$ 6.680. Considerar isto um “sucesso” é, no mínimo, um caso de desfaçatez intelectual, quando não de deslavada propaganda ideológica.

O Chile só cresceu com a social-democracia

Agora bem, o que também nunca é dito pelos economistas neoliberais é que foi só depois do fim da ditadura, no período de quase 30 anos, entre 1990 em 2019, e em particular durante os 20 anos dos governos da “concertação” de centro-esquerda, formada por partidos de tendência social-democrata, que o PIB chileno de fato cresceu a uma taxa média de 7%, na década de 1990, e de aproximadamente 4,6% durante todo o resto do período democrático. Foi nesse período, e sob esses governos de centro-esquerda, que a renda média dos chilenos quintuplicou, alcançando o patamar atual dos US$ 25 mil, a maior da América Latina, enquanto o PIB chegava a US$ 455,9 bilhões, já no ano de 2017. Nesse período, os governos da concertação de centro-esquerda promoveram várias reestruturações tributárias que permitiram aumentar o investimento social do Estado, com:
a) a criação do seguro-saúde universal,
b) o seguro-desemprego e
c) o Pilar da Solidariedade.
Como consequência, a presença do Estado chileno voltou a crescer, sobretudo na área da infraestrutura e das políticas sociais de proteção, saúde e educação. E quando os analistas falam de um “milagre chileno”, referem-se a esse período democrático, e sobretudo aos governos de centro-esquerda que lograram reduzir o desemprego deixado pela ditadura, de 18% para 6 ou 7% em média, reduzindo a população situada abaixo da linha de pobreza, de 45 para 11%, o que transformou o Chile no país com o mais alto IDH da América Latina, e 38º na escala mundial.

Por fim, pouco a pouco, o legado mais dramático deixado pelas políticas e reformas neoliberais dos “Chicago Boys” do general Pinochet vem sendo revertido, como já aconteceu com a nova legislação trabalhista, que devolveu, pelo menos em parte, o poder de negociação que os sindicatos chilenos haviam perdido durante a ditadura militar. Além disso, os governos de centro-esquerda aumentaram significativamente os gastos públicos em saúde, criando o “Sistema de Garantia Explícita”, com o objetivo de expandir e universalizar, sobretudo, o FONASA, o braço público do Sistema Nacional de Serviços de Saúde chileno.
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PAULO GUEDES
O todo-poderoso ministro da Economia de Bolsonaro pretende seguir o desastroso
receituário ultraliberal que arrasou com a economia do Chile!

O ensino superior voltou a ser gratuito

No entanto, não há dúvida de que a reversão mais importante ocorreu no campo da educação, em particular no campo do ensino universitário. A maioria dos brasileiros ainda não sabe, nem muito menos o “moleque do senhor Guedes” que oficia de ministro de Educação do capitão, que o fim da gratuidade do ensino superior decretada pela ditadura militar chilena, no início dos anos 1980, acabou em janeiro de 2018, quando o Congresso Nacional chileno aprovou uma lei que reestabeleceu a gratuidade universal do ensino universitário do país, incluindo todas as universidades, públicas e privadas, algo sem precedente na história acadêmica da América Latina.

A tragédia da capitalização na previdência chilena

A comemorada privatização e capitalização da Previdência Social, criada pelos “Chicago Boys” do general Pinochet, na verdade se transformou num pesadelo para a maioria dos aposentados e dos idosos chilenos. Ao contrário do que propaga o senhor Guedes e seus apaniguados, a média das aposentadorias chilenas é hoje de 33% do salário recebido pelo trabalhador antes da aposentadoria, e 91% da população aposentada recebe em média a ridícula quantidade de US$ 200 ao mês, o que obriga 60% dos pensionistas a receber um complemento estatal, aprovado pelo governo Bachelet em 2008, para poder sobreviver. Por isso, talvez o Chile tenha hoje uma das maiores taxas de suicídio de idosos em todo mundo, e uma pesquisa de opinião pública, aplicada em 2018 – do CADEM – constatou que 88% da população chilena está insatisfeita e quer reverter e mudar o sistema atual de capitalização de Previdência.

Por fim, cabe sublinhar que mesmo durante a ditadura militar, jamais foi cogitada a privatização do cobre e da CODELCO, a única grande empresa estatal chilena, e a maior empresa produtora de cobre do mundo.
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PROTESTO DE APOSENTADOS NO CHILE
A capitalização e a privatização da Previdência serviram para lançar os idosos na pobreza

Resumindo nosso argumento:

I. Os resultados econômicos da ditadura do general Pinochet e dos seus “Chicago Boys” foram economicamente medíocres e socialmente catastróficos.

II. O verdadeiro “milagre chileno” – se é que houve – ocorreu depois da ditadura, no período democrático, e em particular durante os governos de centro-esquerda naquele país na maior parte do período entre 1990 e 2019.

E é uma perfeita asnice intelectual atribuir a estabilidade macroeconômica chilena atual ao “banho de sangue” promovido pelo general Pinochet, 
entre 1973 e 1990.

Mas apesar de que seja uma verdadeira aberração lógica comparar a economia brasileira com a economia chilena, a experiência do Chile pode servir de advertência às lideranças políticas, sociais e econômicas brasileiras, que não queiram repetir no Brasil a tragédia do “fascismo de mercado” do ditador Augusto Pinochet, uma das grandes excrecências humanas do século XX.

Ainda é tempo de impedir que o fanatismo ideológico do senhor Guedes destrua 90 anos de história da economia brasileira, para atender ao interesse de um pequeno grupo de banqueiros, financistas e agroexportadores, passando por cima do interesse do “resto” da sociedade brasileira.

*  JOSÉ LUÍS FIORI é professor titular de Economia Política Internacional, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do capitalismo” e do Laboratório “Ética e poder global”, do Nubea/UFRJ e pesquisador do Instituto e Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 13 de agosto de 2019 –Internet: clique aqui

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