SIGNIFICADOS DE UMA CRUZADA FUNDAMENTALISTA
A
destruição da educação, da ciência e da cultura
pelo
governo Bolsonaro
Roberto Leher*
O
ultraneoliberalismo em processo, estruturado pelo bloco no poder a partir da
aliança com Bolsonaro, está plantando as bases de um novo contexto autocrático
que possui diferenças específicas com a ditadura empresarial-militar, entre as
quais o significado da radical recusa do pensamento crítico
ABRAHAM WEINTRAUB Atual Ministro da Educação do governo de Jair Bolsonaro |
É necessário reunir e
colocar em diálogo estudos, intelectuais, cientistas e ativistas sociais para
entender o que move o governo Bolsonaro em sua cruzada contra a educação
pública, a universidade, a ciência e a cultura. Este artigo pretende se somar a
outros esforços interpretativos, visto que, sem pronta ação política
consciente, a deterioração da democracia pode colocar a própria existência
das instituições acadêmicas e científicas em risco e, ainda mais, a
integridade dos direitos humanos dos que lutam pela cidadania.
Passados nove meses de
governo, os ataques à liberdade de cátedra e às instituições são tão reais e
numerosos que é inevitável constatar que são ações direcionadas. Advêm de crenças
e cálculos políticos do núcleo dirigente do governo, que, informado pela
extrema direita norte-americana, a exemplo de Steve Bannon e Donald
Trump, se percebe como portador da missão de destruir toda herança dos
valores da Revolução Francesa e remover da vida social as razões do Iluminismo
e do pensamento social nele originado. Aparentam ser arcaicas, mas
convergem com a crença ultraneoliberal que orienta os “cosmopolitas” de grande
parte do bloco no poder, de que todo construtivismo social, sobretudo por meio
de políticas públicas, deve ser suprimido por ferir o livre mercado. Entre
os empresários, 32% se declaram bolsonaristas convictos: votaram, aprovam
seu governo e concordam com suas declarações.[1]
Os círculos políticos mais
próximos ao presidente, entre os quais seus filhos e seitas religiosas,
recepcionaram esses objetivos hostis ao conhecimento de modo mais prático, com
base na constatação de que, entre os estudantes, apenas 3% podem ser
considerados “bolsonaristas” convictos. Os ditos líderes
religiosos neopentecostais, sobretudo, se somam a essa cruzada, pois
cientes de que a secularização da vida social não é boa para seus “negócios
espirituais” e seus intentos políticos.
Manifestação de estudantes contra os cortes no orçamento da Educação no Brasil. 15 de maio de 2019 |
Por
que professores e estudantes preocupam os ultraneoliberais
O governo sabe que
estudantes e professores, em sua imensa maioria, não votarão nele e, a rigor,
isso não chega a ser um problema. O que preocupa é a existência de um
segmento influente na sociedade potencialmente disposto a interagir com o povo
para discutir o mundo do trabalho, a economia, a educação, o meio ambiente e as
perspectivas de bem viver. No Brasil, as primeiras grandes manifestações
contra seu governo foram convocadas pela educação, como as de maio de 2019
(#15M, #30M). Nesses atos, trabalhadores da educação e estudantes
publicizaram suas razões para não querer um governo que combina:
*
ultraneoliberalismo (no sentido de combater tudo o que potencialmente
pode contribuir para a redução da desigualdade social),
* fundamentalismo
irracionalista – terraplanismo e, principalmente, negacionismo diante de
estudos científicos sobre as mudanças climáticas globais,
* o aumento
exponencial das queimadas na Amazônia e
* os indicadores
de desemprego e de precarização das relações de trabalho – e
* hostilidades
contra a própria juventude, por meio de impropérios vindos da Guerra Fria e
* mesmo por atitudes
racistas e homofóbicas.
Estudantes e professores que
rompem estereótipos e não aceitam lugares sociais predefinidos pelas ditas
elites podem influenciar outros jovens. O auditório disposto a escutar as
oposições pode se ampliar e, por isso, o núcleo familiar e seu entorno vêm
elevando o tom contra o “marxismo cultural”,[2] expressão repetida no Brasil a partir da formulação
de um ideólogo que possui abrangente influência no Ministério da Educação, Olavo
de Carvalho.
O
bolsonarismo não fala, apenas, para si mesmo
O presidente veicula seus
ataques com significativa ressonância nas redes sociais, sobretudo pelo
Facebook e outros meios ligados a essa corporação de dados e de operação que se
valem de comportamentos baseados na psicometria, como o WhatsApp. O modo como
esses núcleos difundem e direcionam suas mensagens ainda é pouco claro,[3] mas é seguro que as fake news
influenciaram as eleições brasileiras, a exemplo das técnicas utilizadas
pela Cambridge Analytica na eleição de Trump e no Brexit. De todo modo, essas
mensagens mantêm vivo o protagonismo dos “bolsonaristas convictos”.
É
imprescindível remover a ideia de que os círculos bolsonaristas falam para si
mesmos ou para a bolha. O silêncio conivente do bloco no poder demonstra que
nos sofisticados ambientes burgueses impera a lógica: deixar que a turma do
Bolsonaro faça o que tem que ser feito e recalibrar o Estado em prol dos
interesses de curto prazo do capital, sem que a alta finança tenha de sujar
suas próprias mãos com o desmonte de todas as medidas estatais contra a
desigualdade social e, especificamente, contra a universidade, a ciência e a
cultura. A apresentação de algumas premissas básicas pode contribuir para que o
fenômeno irracionalista, fundamentalista, antissecularista e hostil aos valores
do Iluminismo e aos direitos humanos possa ser tornado pensável como parte da
autocracia burguesa.
Freis franciscanos participam de protesto em Curitiba - maio de 2019 Imagem: Eduardo Matysiak/Futura Press/Estadão Conteúdo |
Premissas
básicas
1. O
presidente está atuando para desconstituir os nichos de inteligência do
aparato do Estado, removendo instâncias e protocolos técnicos e científicos
indispensáveis para a tomada de decisões com base no conhecimento científico.
Uma pequena lista de aparatos atingidos permite vislumbrar o alcance dessas
investidas:
* Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais;
* Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas;
* Conselho
Nacional do Meio Ambiente;
* Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística;
* Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis;
* Comitê de
Compensação Ambiental Federal;
* Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas;
* Fundação
Oswaldo Cruz;
* Agência
Nacional de Cinema;
* Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira;
* Instituto
de Pesquisas Econômicas Aplicadas;
* Comitê das
Atividades de Pesquisa e Desenvolvimento da Amazônia;
* Fundação
Nacional do Índio;
* Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária;
* Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; e
* Petrobras.
E, ainda, a extinção ou
redefinição da maioria dos conselhos e órgãos colegiados vinculados ao
Executivo, o sufocamento orçamentário do CNPq, Finep, Capes e das
universidades e institutos de educação tecnológica, sem esquecer o fato da
nomeação de reitores que não foram os escolhidos por suas comunidades, e a queda
vertiginosa dos orçamentos dos institutos de pesquisas vinculados ao Ministério
da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, acrescida do intento de suspender
os concursos para a contratação de novos servidores públicos a partir de 2020,
situação agravada em virtude da corrida às aposentadorias decorrentes da
contrarreforma da Previdência. O rol de instituições e instâncias coligidas
confirmam esse processo de reversão da complexificação de estruturas do Estado
erigidas desde 1950.
2. As medidas
econômicas dirigidas pelo topo do bloco no poder aprofundam a simplificação
tecnológica (em termos de pesquisa e desenvolvimento) das cadeias produtivas no
Brasil, ao mesmo tempo que a indústria 4.0 ganha novas dimensões nos países do
núcleo central. Esse quadro projeta rápido encolhimento do trabalho complexo
no Brasil, inclusive na área de petróleo e gás, com a cessão onerosa com
fragmentação de operações e desnacionalização dos operadores e, ainda, a venda
de refinarias e o desmonte da indústria naval, medidas que, em conjunto,
aceleram a desindustrialização, sem a
contrapartida de avanço no setor de serviço de alta complexidade, que, ao
contrário, é cada vez mais dependente de importações. O crescimento do
agronegócio, a expansão dos rebanhos, as novas fronteiras para as mineradoras e
o lucro pujante dos bancos, concomitantemente, permitem amalgamar esses
segmentos do bloco no poder ao governo que lhe serve.
3. As
transformações estruturais na economia, desindustrialização, terceirizações,
trabalho intermitente, turbinados pela reforma trabalhista, corroboram que a educação mercantil pode
seguir sendo o eixo das políticas para a educação superior no Brasil. As
organizações privadas representam 88% do total das instituições de ensino
superior, com mais de 75% das matrículas, e 57% dos estudantes frequentam
corporações sob controle financeiro. O Censo da Educação Superior do Inep
de 2018 confirma que a maior parte das novas vagas no país já é de cursos a
distância, igualmente sob o controle de um pequeno grupo de fundos de
investimentos que detém aproximadamente 65% do total das matrículas na
modalidade.
4. Não há
incompatibilidade e conflito explícito das medidas de esvaziamento da
inteligência de estruturas do Estado com o bloco no poder. Todas as
principais frações burguesas apoiam a Emenda Constitucional n. 95/2016, que
impõe uma lei de ferro sobre os aparatos que incorporam inteligência no Estado,
sobretudo universidades, institutos de pesquisa e aparatos de ciência e
tecnologia, conformando, por meio do estrangulamento econômico, a força
material da ideologia.
RICARDO SALLES Ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro recebe o "prêmio" Exterminador do Futuro pela sua péssima atuação à frente desse ministério. Durante uma audiência pública na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, um jovem manifestante se dirigiu à mesa do ministro Ricardo Salles e entregou a ele uma escultura. Na obra, um homem de terno segurava uma placa sobre um toco de árvore derrubada; na base: Ricardo Salles. Enquanto entregava o "prêmio" e saia, retirado pelos seguranças, o jovem se manifestou. “Ministro, eu queria fazer uma entrega para você, ministro. Esse prêmio é o Prêmio Exterminador do Futuro para o ministro Salles”, afirmou. |
5. O
bolsonarismo representado pelo núcleo ideológico – ministérios da Educação;
Relações Exteriores; Meio Ambiente; Mulher, Família e Direitos Humanos –
imbuído das fábulas do dito guru familiar [Olavo de Carvalho] está
impregnado da crença de que possui a missão de realizar uma cruzada de
combate ao “marxismo cultural”, o que o coloca em confronto aberto com os
princípios constitucionais relativos aos direitos fundamentais e aos princípios
que regem a educação e a ciência no Brasil:
* Escolas
cívico-militares (Decreto n. 9.465, de 2 de janeiro de 2019),
* o intento
de retirar de Paulo Freire o título de patrono da educação brasileira,
* a censura
à dita ideologia de gênero,
* a
tentativa de conferir às universidades uma função tecnocrática e utilitarista (Future-se),[4] desvinculada
das ciências sociais e das humanidades, são novas feições da autocracia
burguesa no Brasil de hoje.
6. A
confluência das classes dominantes com o governo as coloca em linha com as
ideologias que o estruturam. Embora pareça rude para alguns poucos constrangidos,
essa aliança as torna coniventes com a política de afastamento da juventude
expropriada e explorada da influência secular, laica e iluminista das
universidades públicas. De fato, o apoio do bloco no poder ao governo é um
incentivo à desconstituição de qualquer medida em prol da redução das
desigualdades sociais e educacionais, especialmente a consolidação da
ampliação da obrigatoriedade escolar, somente possível com a reformulação do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, responsabilizando a União por um percentual mais
alentado do que os 10% atuais, passando para, pelo menos, 40% do total, medida
considerada inaceitável pelo ministro da Educação. A Lei de Cotas, um
alvo dos segmentos médios que o apoiam, é ressignificada pelo governo como coitadismo.
Até o que as bancadas parlamentares de centro-direita reivindicam como
positivo, a ampliação das universidades e institutos federais, está
inviabilizada pelos draconianos cortes orçamentários e contingenciamento de
recursos decorrente da referida EC 95, elaborada justamente pelas frações
financeiras dominantes.
7. A
crença de que os militares seriam uma força racionalista capaz de reverter as
tendências ideológicas fundamentalistas não está se confirmando: ou foram
demitidos dos postos-chave do MEC, ou dirigem estruturas desidratadas
orçamentariamente e estão sofrendo forte deslegitimação política e simbólica,
excetuando-se os segmentos militares provenientes da direita associados à área
de segurança interna e ao setor de infraestrutura.
Vistos em conjunto, os itens
anteriores denotam que o ultraneoliberalismo em processo, estruturado pelo
bloco no poder a partir da aliança com Bolsonaro, está plantando as bases de um
novo contexto autocrático que possui diferenças específicas com a ditadura
empresarial-militar, entre as quais o significado da radical
recusa do pensamento crítico.
A ditadura estruturou todo
um aparato jurídico para afastar professores e estudantes críticos ao regime
das universidades (Ato Institucional n. 5/1968; Decreto n. 477/1969) como meio
para incorporar aqueles que, em nome da ciência, se dispusessem a edificar a
inteligência no aparato de Estado necessária ao capitalismo monopolista,
ampliando a pós-graduação e consolidando empresas públicas com domínio
tecnológico em áreas estratégicas: aeroespacial, satélites, engenharia pesada,
agricultura, energia etc. O contexto atual é outro:
O
conhecimento tem de ser expurgado de suas bases científicas,
tidas como
irrelevantes para parte dos setores dominantes ou
como
obstáculo ao apoio estatal ao padrão de acumulação capitalista dependente e,
para a base
social do bolsonarismo,
uma ameaça
ao modo de vida pretendido pelo fundamentalismo.
Conclusão
Quando sob feroz ataque, os
que estão nas trincheiras podem não compreender a estratégia que preside as
investidas que os desconcertam. As indicações feitas no presente texto sugerem
que o problema não é a falta de conhecimento do que fazem as universidades e
os centros de pesquisa:
Para as
frações do bloco de poder que sustentam o governo,
o que as
universidades fazem não tem nenhuma relevância.
A rigor, zombam da
ciência feita no Brasil não por desconhecimento, mas por projeto, por interesse
de classe. Os professores, os estudantes universitários e os cientistas não
estão sozinhos nesses infortúnios. É toda a educação
pública que está em jogo. E é toda a área de cultura que não se coaduna
com a autocracia em processo. Por isso, vale retomar o início do presente
texto.
As coalizões democráticas,
desde que com alianças realistas e não ilusórias, são a única forma de reverter
a destruição das bases que podem estruturar projetos de nação em que caibam
todos os povos e que sejam comprometidos com o bem viver, em prol do
conhecimento, comum a todos os que possuem um rosto humano e que não pode ser
mercantilizado.
NOTAS
1. Reginaldo
Prandi, “Os 12% do presidente – em que lugar da sociedade habita o bolsonarista
convicto?”, Jornal da USP, 13 set. 2019.
2. Marc-Olivier
Bherer, “O ‘marxismo cultural’, fantasma preferido da extrema direita”,
Movimento – Crítica, teoria e ação, 17 set. 2019.
3. Francisco
Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente, “É hora de se debruçar sobre a
propaganda em rede de Bolsonaro”, El País Brasil, 28 out. 2018.
4. Roberto
Leher, “‘Future-se’ indica a refuncionalização das universidades e institutos
federais”, Le Monde Diplomatique Brasil, 2 ago. 2019.
* ROBERTO LEHER é
professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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