«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 2 de novembro de 2013

A surdez não se cura com gritos [Leia!]

Marcelo Ciaramella *
Página/12
18-10-2013

“A fome de 870 milhões de pessoas, num mundo de sete bilhões de habitantes, 
onde o potencial produtivo seria capaz de alimentar quase o dobro, 12 bilhões, 
é um dado tão arrepiante como incompreensível”
A FOME NO MUNDO
Repare no aumento da fome na África do Norte e no Oriente Médio!
Apesar de reduzir-se de 1 bilhão de famintos a cerca de 870 milhões, a fome é imensa no mundo!
Se fôssemos passageiros de um ônibus que percorre um caminho tortuoso, com um motorista surdo, em alta velocidade, seguramente entraríamos em pânico e começaríamos a gritar desesperados. Contudo, seguramente chegaria um momento em que nos daríamos conta de que gritar não resolve o problema e tentaríamos parar o motorista para descermos do ônibus ou substitui-lo. Os tempos atuais nos apresentam situações que ameaçam romper o equilíbrio do mundo e de nós que habitamos nele.

Sem cair em catastrofismos apocalípticos ou infundados, é razoável a preocupação com questões que se agudizam, apesar das contínuas advertências de organismos e pessoas conscientes dos problemas. Essas mensagens e advertências permanentes são como os gritos dos passageiros que advertem que se o ônibus não frear irá bater, haverá mortos e feridos, e o veículo se tornará sucata para vender. A ONU e suas agências, as ONGs, os movimentos sociais, as organizações ambientalistas ou altermundialistas, o Papa e outros tantos líderes mundiais vivem fazendo advertências, denunciando situações intoleráveis, enfatizando que este mundo se move em grande velocidade por uma faixa estreita. Contudo, os grandes responsáveis em nível mundial – os países ricos, as corporações multinacionais, os organismos financeiros – são como o motorista surdo que não solta o volante, nem escuta os gritos, nem se preocupa com os passageiros, nem muda de rota.

Em razão da Jornada Mundial de Alimentação, que nos apresenta “um dos desafios mais sérios para a humanidade: o da trágica condição em que ainda vivem milhões de pessoas famintas e desnutridas, entre elas muitas crianças”, o papa Francisco enviou uma Mensagem ao Diretor Geral da FAO [sigla inglesa de: Food and Agriculture Organization; traduzindo; Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura]. Sem dúvida alguma, a fome de 870 milhões de pessoas, num mundo de sete bilhões de habitantes, onde o potencial produtivo seria capaz de alimentar quase o dobro, 12 bilhões, é um dado tão arrepiante como incompreensível. “É um escândalo que ainda haja fome e desnutrição no mundo”, disse o Papa. A incumbência do sistema é acumular a qualquer preço. Os fortes prevalecem no desejo de acumulação e os fracos são as vítimas. A lei da selva tem sentido apenas na selva. Porém, o capitalismo neoliberal se sustenta basicamente na premissa do mercado como espaço absoluto, onde se decide o destino, onde mandam os fortes que não apenas se enriquecem, mas que também são os que colocam as regras para que esta dinâmica se perpetue.

O endividamento impagável dos países pobres – armadilha mortal induzida pelos países ricos – gera fome. Calcula-se que a África, atualmente, devolve em juros da dívida uma quantidade quatro vezes superiores ao que recebe em ajuda para o desenvolvimento. Os credores, em geral países ricos prestamistas, pressionam de acordo com seus interesses para que os países pobres arrecadem para pagá-los, exportando as matérias-primas que produzem. Desse modo – este seria outro elemento causal – os países endividados perdem sua soberania alimentar, ou seja, sua capacidade de aplicar ao consumo e necessidades próprias os alimentos que produzem, vendo-se obrigados a exportá-los. Não obstante, muitos países pobres tentam destinar produtos próprios ao consumo interno, mas o livre mercado os ameaça com produtos importados muito mais baratos. Poderíamos mencionar também a especulação financeira com os alimentos, em especial após a crise de 2008. Especular é buscar o lucro sobre o dar ao produto seu destino final. Especular com alimentos significa, muitas vezes, monopolizar ou retirar do mercado (e, inclusive, jogar no lixo) alimentos para manipular o preço de acordo com o próprio lucro e não com a necessidade. Para isto contribui também o uso de matérias-primas para fabricar combustíveis frente à prognosticada escassez do petróleo. Os agrocombustíveis cresceram em sua rentabilidade e isto potencializou a especulação. Apesar de contaminarem 35% menos do que os combustíveis fósseis, para aumentar as terras disponíveis para produzi-los, o desmatamento cresceu 25%. Continuamos na mesma situação.
“Algo precisa mudar em nós mesmos, em nossa mentalidade, em nossas sociedades”, destaca o papa Francisco, assinalando que um “passo importante é abater com decisão as barreiras do individualismo, do fechar-se em si mesmo, da escravidão do lucro a todo custo; e isto, não apenas na dinâmica das relações humanas, mas também na dinâmica econômica e financeira global”.

Contudo, será preciso existir um momento – talvez já estejamos nele – em que percebamos que gritar para um surdo não tem efeito. Se o surdo indiferente não lhe escuta, pelo menos é importante que lhe veja, e que seu caminho seja obstruído. São necessários os gestos, a rebeldia e a oposição. Algo disso vai surgindo – embora de modo caótico – nos “indignados”. Porém, como Igreja, talvez não os estejamos acompanhando, olhamos de fora como vimos de fora o mundo, antes do Concílio Vaticano II. Parece que no presente também nos é custoso nos envolver em buscas simbólicas da justiça global e em manifestações de rebeldia coletiva pacífica contra a causa última de tantas desgraças. É mais frequente ver a Igreja e seus membros envolvidos em manifestações públicas sobre temas relacionados à família ou a moral sexual. Como custa à Igreja canonizar (embora o povo, muitas vezes, já os venerem em sua religiosidade) os santos rebeldes, como Oscar Romero e tantos mártires latino-americanos.

Não basta a soma da moral individual, é preciso elaborar respostas coletivas. Não bastam os documentos da doutrina social, temos de pensar e executar ações diretas contra as causas da fome, descartando a violência, mas assumindo os riscos de gerar conflitos e de perder privilégios. Não podemos pensar que apenas as coletas ou os paliativos resolverão os gravíssimos problemas da fome. Para além de nossa fidelidade incondicional em estar perto dos que passam fome: “tive fome e me destes de comer” (Mt, 25), precisamos apoiar institucionalmente e participar das iniciativas que existem nas redes de economia social e solidária, o cooperativismo, o comércio justo, etc., buscando construir um novo paradigma, o da cooperação, da gratuidade, da reciprocidade, da solidariedade. Temos que acompanhar, apoiar e participar nos movimentos antiglobalização, o Fórum Social Mundial ou outras iniciativas regionais. Devemos superar também as barreiras confessionais e elaborar estratégias de construção social com todos os espaços sociais, religiosos ou leigos que busquem o mesmo. Muito possivelmente muitas destas iniciativas estejam prontas para germinar e muitas já vêm dando frutos. Porém, para que tenham um efeito decisivo, devem ter raízes coletivas.

Também penso que o conceito de “comunhão” na Igreja precisaria ir além da mera desobediência de suas normativas canônicas. A comunhão tem a ver com o amor e a ruptura da comunhão tem a ver com o pecado e a injustiça, em especial contra os pobres. Ser responsáveis pela fome e a miséria é um pecado muito mais grave contra a comunhão do que apoiar o sacerdócio feminino. Na Argentina, vemos ser jogados litros de leite como protesto pelo preço e se acumular, durante meses, os grãos nos depósitos. Seríamos capazes de colocar para fora da comunhão da Igreja os responsáveis destes atropelos, quando se confessam cristãos?

A surdez não se cura com gritos, é preciso se rebelar contra o motorista e evitar que o ônibus se transforme em pedaços, mas que siga sua viagem.

Tradução do espanhol pelo Cepat

* Marcelo Ciaramella integra o Grupo dos Sacerdotes na Opção pelos Pobres (Argentina).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sábado, 19 de outubro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/524820-a-surdez-nao-se-cura-com-gritos

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