Começando a Semana Santa
Se este é um homem
Enzo Bianchi
Teólogo, biblista e fundador da Comunidade de Bose (Itália)
Sim, Jesus foi
condenado pelo poder religioso sobretudo porque libertava o homem das imagens
perversas de Deus e foi morto pelo poder imperial totalitário porque era “perigoso”
Cena em que Pilatos apresenta Jesus, após ser torturado, dizendo: "Eis o homem!" (evangelho segundo João 19,5) |
Entramos na semana que os cristãos chamam de “santa” porque é a semana que expressa a fé dos seguidores de Jesus, esse galileu que com palavras e vida quis nos falar sobre Deus e nos entregou uma mensagem muito humana. De várias maneiras (ritos, orações...) os cristãos lembram especialmente os últimos dias de Jesus, sua paixão e morte, e afirmam que o amor vivido por esse homem venceu a morte. Gostaria, se for capaz, de tentar expressar que significado pode ter para todos, mesmo para os não cristãos, a memória de eventos ocorridos há cerca de dois mil anos.
Segundo o quarto Evangelho, Pilatos, o procurador romano,
durante o processo apresenta Jesus torturado à multidão que quer sua morte com
as palavras: “Eis o homem!”, um homem fraco e maltratado com violência pelos
soldados, um homem escarnecido, desprezado e desfigurado, aquele homem que
está sempre presente na história e que devemos ver no pobre, no oprimido, na
vítima do poder, naquele que nada conta neste mundo.
Aquele espetáculo da véspera da Páscoa no pretório é o espetáculo
de que ainda somos espectadores na nossa atualidade.
Não se trata de alimentar visões de dor, mas simplesmente de ter consciência de que aquela paixão, aquela história de injustiça e violência mortal continua ainda hoje, e que cada um de nós deve dizer: “Eis o homem!”. Eis a humanidade! E também pensar: “Se este é um homem ...”, naquela condição desumana que gostaríamos de não ver ou ver com resignação. Essa é também a epifania do que significa estar na desumanidade, estar nas profundezas da alienação, ser um descartado nessa corrida que o mundo leva sem se questionar sobre a violência, o abuso, a guerra e a injustiça de que é capaz. Nos séculos passados, a cristandade, precisamente para não se responsabilizar pela violência que perpetrou sobre os homens, inventou o deicídio atribuindo-o aos judeus, impedindo assim de ver naquela de Jesus nada além da paixão de um inocente perseguido.
A releitura, a meditação sobre a paixão de Jesus não nos leva a concluir que estamos a salvo do sofrimento, mas nos revela que pode haver uma confiança que não deixa na mão mesmo quem sofre, que pode haver uma forma de viver o amor que é dado e que se recebe mesmo quando somos atingidos pelo poder do ódio, que podemos nos nutrir de esperança mesmo no aparente fracasso. E devemos reconhecer que outros humanos, homens e mulheres como Jesus, souberam viver assim sua “paixão”.
Sim, Jesus foi condenado pelo poder religioso sobretudo
porque libertava o homem das imagens perversas de Deus e foi morto pelo
poder imperial totalitário porque era “perigoso” e, devemos admitir, como
tantos outros ainda hoje!
Mas para todas essas vítimas da história é nosso dever lembrar que
a capacidade da humanidade de amar, de esperar, de perdoar pode brilhar nos
caminhos do sofrimento para romper o círculo infernal do ódio e da violência.
O relato da Paixão de Jesus termina com as palavras “começaram a brilhar as luzes do sábado” (Lc 23,54), um novo dia na história da humanidade.
Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. O artigo original foi publicado pelo jornal italiano “La Repubblica” (Roma), em 29 de março de 2021.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 30 de março de 2021 – Internet: clique aqui (acesso em: 30/03/2021).
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