África
Uma região começa a ser reconhecida
Rodrigo Petronio
Escritor e Filósofo, professor titular da FAAP
“A
Razão Africana”, do historiador Muryatan S. Barbosa, supre lacuna relevante
sobre a produção intelectual do continente no mercado editorial brasileiro
MURYATAN SANTANA BARBOSA |
Em 2017, surgiu a coleção A África e os Africanos, da editora Vozes, coordenada pelos professores José D’Assunção Barros, Álvaro Nascimento e José Jorge Siqueira. Ela tem publicado autores brasileiros e estrangeiros seminais para a compreensão desse continente: Jean-Loup Amselle, Elikia M’Bokolo, Gwendolyn Midlo Hall, Marcel Dorigny, Bernard Gainot e Muniz Sodré.
No mesmo ano, o clássico Arte Africana de Frank Willett, talvez a melhor referência sobre o assunto, saiu em parceria entre a Imprensa Oficinal do Estado de São Paulo e as Edições Sesc. Some-se a isso o interesse crescente dos leitores brasileiros pela obra do filósofo camaronês Achille Mbembe, publicada pela editora n-1. Temos um painel muito positivo. E a esperança de que cresça ainda mais. Entretanto, ainda havia um elemento ausente: um panorama abrangente da produção intelectual africana atual.
Para suprir esta lacuna, a editora Todavia acaba de colocar no mercado A Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo, do historiador Muryatan Santana Barbosa, com orelha assinada por Rivair Macedo. Nascido em 1977 em Lund (Suécia), Muryatan é autor de Guerreiro Ramos e o Personalismo Negro (Paco, 2015), síntese da trajetória intelectual do sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982).
Professor adjunto do Bacharelado em Ciências e Humanidades, do Bacharelado em Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial, todos da Universidade Federal do ABC (UFABC), há anos Muryatan tem se dedicado ao pensamento africano e afrodiaspórico.
Inspirado em Marx e no
filósofo da ciência Gaston Bachelard (1884-1962), Muryatan segue dois
preceitos: 1. Investigar as matérias em seus
detalhes, de modo a “analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e
rastrear seu nexo interno”. 2. Recorrer ao descritivismo,
à medida que a “descrição é a finalidade da ciência”. Devido a isso, o
contorno metodológico é impecável, pois consegue mapear uma variedade
enorme de autores, obras e ideias, em dimensões continentais e em uma
perspectiva transdisciplinar. Livro publicado em agosto de 2020, com 216 páginas, pela editora Todavia
A
divisão interna da obra
1ª Parte: A primeira parte analisa o protagonismo das ideias de Edward Blyden e as origens do nacionalismo africano (1870-1917), o Entreguerras (1917-1939) e o papel da diáspora. Os primórdios desse pensamento mostra-se atrelado aos impasses da colonização e dos paradigmas europeus.
A
unificação dos intelectuais passa por projetos de descolonização, e por teorias
alternativas ao racismo e ao colonialismo.
Para tanto, era preciso formular uma personalidade africana.
Tomam forma então os conceitos de negritude e de pan-africanismo, hipóteses de uma possível unificação étnica, política e cultural do continente. Trata-se de uma defesa de valores civilizacionais e (a seu modo) modernos específicos da África. Essa primeira etapa realoca os papéis e as funções tanto da política quanto da cultura, que se tornam indissociáveis.
2ª Parte: A segunda parte se chama O Reino Político. E o subtítulo explica o teor desse segundo grande momento. Baseia-se na tese de que apenas por meio de forças políticas poderia haver a emancipação africana proposta pelos pensadores anteriores. Tomando como divisa as ideias de Kwame Nkrumah (1909-1972), presidente de Gana de 1960 a 1966, os intelectuais passam a colocar a política no centro de todas as demais ações, orientação que dominou a produção africana ao longo das décadas de 1950 e 1960. Fortalece-se nesse momento o socialismo e o marxismo africanos.
Contudo, essas teorias
críticas ressaltaram os limites das utopias pan-africanistas. E os intelectuais
se deparam então com alguns problemas.
Como
organizar uma sociedade pós-colonial?
A partir da hegemonia do neoliberalismo, nas décadas de 1980 e 1990, como evitar que os nacionalismos se convertam em uma rebalcanização neocolonial, como advertira Mbembe?
3ª Parte: Para sanar esses impasses, Muryatan concentra sua argumentação
final no conceito que nomeia a terceira parte da obra: o autodesenvolvimento.
O autodesenvolvimento passa a ser uma tônica dos intelectuais das últimas
décadas, representados em grande parte por economistas. Esse movimento se
assenta em uma tomada de consciência paulatina das especificidades e das
contradições do desenvolvimento e da modernidade africanos. A questão central?
Como
seria possível passar da economia política clássica africana a novas
estratégias de desenvolvimento, conciliando as democracias e o capitalismo
contemporâneos.
Esse projeto se alicerça em alguns desafios: diversidade econômica, industrialização autônoma, integrações regional e continental, aumento da qualidade de vida. E também contempla novas propostas: superação das “disparidades de gênero, raciais e étnicas”, sustentabilidade, e um tipo de desenvolvimento cada vez mais endógeno e democrático.
A capacidade de síntese de Muryatan torna sua obra obrigatória para qualquer um que pretenda se aprofundar em temas africanos. E também para aqueles que pretendam compreender as ideais contemporâneas de um ponto de vista complexo e policêntrico. Afinal, esse talvez seja o maior imperativo e o maior desafio para a construção de um novo pensamento para o século 21.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Aliás – Domingo, 28 de fevereiro de 2021 – Pág. H11 – Internet: clique aqui (acesso em: 03/03/2021).
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